A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela lei 12.528 de 18 de novembro de 2011 e a Presidente Dilma designou os seus sete qualificados integrantes - Cláudio Fonteles, Gilson Dipp, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Maria Cardoso da Cunha, em decreto datado de 10 de maio de 2012. A Comissão tomou posse em solenidade realizada no Palácio do Planalto em 16 de maio de 2012, em cerimônia conduzida pela Presidente Dilma e que contou com a presença dos ex-presidentes José Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso, Luis Inácio Lula da Silva. Assinalou, deste modo, uma perspectiva de Estado e não de governo das funções e responsabilidades da Comissão. O que cabe dizer sobre o significado e o papel desta Comissão?
A Comissão da Verdade insere-se na problemática do que se denomina de Justiça de Transição. Diz respeito, na passagem de regimes autoritários para a democracia, pelas distintas formas por meio das quais uma sociedade lida com um passado de repressão. Justiça de Transição, na modalidade das Comissões de Verdade, tem sido parte da agenda latino-americana e igualmente da africana, em especial da África do Sul, cuja Comissão da Verdade e Reconciliação logrou encerrar o apartheid, associando verdade, perdão e anistia.
Comissões de Verdade, no contexto da Justiça de Transição, têm basicamente como objetivo estabelecer uma verdade sobre graves violações de direitos humanos ocorridas na vigência de regimes autoritários. São concebidas como uma instância ad hoc da democratização da sociedade por um prazo determinado, como é o caso da brasileira (2 anos). São compostas por personalidades como as indicadas pela Presidente Dilma, com qualificações apropriadas para as funções de buscar a materialidade dos fatos. Podem resultar da iniciativa de organizações internacionais, como foi o caso da Comissão de El Salvador, que provém dos acordos de paz negociados pela ONU. Podem originar-se de atos de um legislativo democrático, como é o caso da brasileira. Caracterizam-se por partir do pressuposto que uma Comissão da Verdade pode oferecer mais benefícios para a vida democrática de uma sociedade do que a judicialização de processos políticos.
Comissões de Verdade têm escopo maior ou menor, tendo em vista as distintas especificidades dos fatos que singularizam os processos de transição política de regimes autoritários para a democracia, nos vários países que viveram esta dinâmica. Entre eles a prévia rigidez e a escala de radicalismo autoritário e se uma transição resultou de uma ruptura brusca ou de um processo de reforma gradualista. Esta última hipótese caracterizou a longa transição brasileira que, nas suas marchas e contra-marchas, resultou do experimentalismo de uma "abertura", iniciada na Presidência Geisel, fruto de uma percepção dos riscos da entropia do regime e, de outro, da oposição ao regime emblematizado na corajosa liderança de Ulysses Guimarães, que foi se aproveitando dos espaços criados pela "abertura" para promover a restauração democrática. Entre estes espaços os dados pela revitalização da política que se beneficiou com a lei de anistia de 1979 do retorno dos asilados, e os provenientes da glasnost da liberalização da imprensa.
A Comissão Nacional da Verdade tem antecedentes na experiência brasileira, cabendo lembrar que o marco zero da memória organizada sobre o legado da repressão foi o desdobramento das atividades da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, respaldadas com destemor inigualável em tempos sombrios de encolhimentos do espaço público, pelo Cardeal D. Paulo Evaristo Arns e que levou ao Relato, publicado em 1985, Brasil: Nunca Mais.
Do ponto de vista mais amplo da política, o primeiro item da agenda no trato do passado da discricionariedade foi o da remoção da dimensão jurídica-institucional do assim chamado "entulho autoritário" que punha em suspenso o estado de direito, ensejando a violação dos direitos humanos. Este tema da agenda do passado, imbuído da preocupação com o futuro institucional da democracia culminou com a Constituição de 1988.
A Comissão da Verdade representa a continuidade do prévio esforço na lida com um passado de violação de direitos humanos. Tem, assim, antecedentes institucionais que foram devidamente apontados pelo Senador Aloysio Nunes Ferreira no seu parecer sobre a matéria no Legislativo. São eles: (i) Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos (lei 9.140 de 1995, de iniciativa do governo de Fernando Henrique Cardoso) que foi uma exitosa experiência de reparação aos familiares de mortos e desaparecidos durante o período de 1961 a 1985 e (ii) a Comissão de Anistia (lei 10.559 de novembro de 2002), que vem propiciando, desde a Presidência Lula, várias medidas indenizatórias de reparação a pessoas atingidas por atos arbitrários cometidos antes da promulgação da Constituição de 1988.
A Comissão da Verdade, ao dar sequência ao que já foi feito pelas duas Comissões acima mencionadas em relação a um passado de repressão, tem como objetivo examinar e esclarecer graves violações de direitos humanos a fim de efetivar um direito à memória e à verdade histórica. Suas atividades não terão caráter jurisdicional ou punitivo. Isto significa que a Comissão nem pune, ou seja, não é Justiça de Transição retributiva - o que atende à lei de anistia que o STF considerou válida - nem indeniza, inclusive porque da Justiça de Transição de Reparação trataram a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia. Nos termos do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, a Comissão ocupar-se-á do período que se estende de 18 de setembro de 1946 à promulgação da Constituição de 1988. Entretanto, como bem observou o Senador Aloysio Nunes Ferreira no seu parecer, o foco de sua atuação, pela própria natureza da vida política brasileira, recairá sobre as circunstâncias que cercaram a vigência do regime autoritário.
A Comissão da Verdade deverá cumprir funções de relevo, inerentes à agenda de uma Justiça de Transição. Vou tentar, a seguir, sumariá-los, apontando a sua função de Justiça, a sua relação com o tema da anistia, as características da verdade que buscará apurar e o que diferencia a Memória, da História.
No que diz respeito à função de Justiça, lembro que a Comissão, para esclarecer fatos e circunstâncias de graves violações de direitos humanos ocorridos nos aparelhos estatais e na sociedade poderá receber testemunhos. A amplitude destes testemunhos numa Comissão da Verdade será necessariamente mais abrangente do que num processo judicial, que é um dos méritos de sua concepção. A Comissão da Verdade fará, assim, se bem conduzir os seus trabalhos, uma justiça asseguradora das múltiplas vozes do sofrimento das vítimas e dos seus familiares, oriundas de graves violações de direitos humanos, seja quem for que os houver cometido. Restituirá institucionalmente dignidade às suas vítimas, por obra, para falar com Hannah Arendt, do poder redentor da narrativa e da diferença entre o descrever e o ouvir.
O papel da Comissão não se confunde com o da anistia. Anistia é palavra de origem grega, significa esquecimento e tem proximidade semântica e não apenas fonética com amnésia. A anistia se coloca desde Atenas, depois da vitória da democracia sobre a sangrenta oligarquia dos 30, sob o signo da utilidade política de apaziguamento das tensões de uma sociedade e não sob o signo da verdade. É um esquecimento juridicamente comandado, de atos cometidos de natureza penal, não um perdão. Este esquecimento comandado, que alcança atos do governo e dos que a ele resistiram, foi juridicamente reconhecido como válido pelo STF. Não exclui, no entanto, a afirmação de um direito de titularidade coletiva da cidadania brasileira da Memória factual de graves violações de direitos humanos. Para assegurar este Direito, a Comissão foi criada ensejando, ex lege, um espaço próprio, que não é o do Judiciário e do Direito Penal, para apurar fatos e circunstâncias que são fundamentais para o futuro da democracia.
Qual é a natureza e o papel desta verdade que cabe à Comissão apurar? Não é a verdade jurídica que caracteriza a judicialização de processos políticos. É, para recorrer novamente ao ensinamento de Hannah Arendt, a verdade factual dos fatos e eventos, que é a verdade da política. Esta se caracteriza porque o seu oposto não é o erro, a ilusão ou a opinião mas sim a falsidade de ocultação ou a mentira na manipulação dos fatos. Por isso os seus modos de asserção não são os de evidência da verdade racional, mas sim o desvendamento dos fatos pelo testemunho e pelo acesso à informação escondida, que a lei 12.527 sobre o seu acesso, de 18 de novembro de 2011 propicia. A função da Comissão Nacional da Verdade é, assim, a de impedir o esquecimento por apagamento de rastros da violação de direitos humanos. Por isso, para a execução de seus objetivos, tem as competências necessárias. Estas permitirão à Comissão adensar o seu relatório final com base no já feito previamente no Brasil e no mundo sobre o legado da repressão em nosso país. Este “relatório circunstanciado” final, contendo as atividades realizadas, os fatos examinados, as conclusões e recomendações, atenderá em primeiro lugar, do ponto de vista da afirmação da democracia, a importância do princípio da transparência do poder. Este princípio é constitutivo de um regime democrático que se baseia no exercício em público do poder comum posto que, o que é do interesse de todos deve ser do conhecimento de todos. É por isso que numa democracia a publicidade é a regra e o sigilo é exceção. Não é fácil assegurar a visibilidade do poder, mesmo numa democracia, pois como ensina Bobbio, num ensaio luminoso, é difícil a debellatio do poder invisível.
O relatório da Comissão, assim se espera, indicará as maléficas consequências, para vida política, do cripto poder, seja no Estado, seja na sociedade, que age na sombra, tanto porque se oculta quanto oculta, isto é, esconde, pelo sigilo, o que fez. Neste sentido a abrangência do escopo da Comissão da Verdade contribuirá para a defesa da democracia que é um dos componentes de uma Justiça de Transição com uma amplitude que escapa a um processo penal de individualização de responsabilidades.
A isto cabe agregar que a verdade factual e a sua busca com objetividade e imparcialidade pela Comissão Nacional da Verdade será, se bem conduzida, uma contribuição para a História. Não é, no entanto, a História, que porém dela depende, porque o escrever e o interpretar da História não podem alterar a matéria factual.
Explica, neste sentido, Hannah Arendt que, cada geração tem o direito de escrever a sua História, o que permite rearranjar os fatos de acordo com a sua perspectiva, mas isto não comporta tocar a própria verdade factual.Daí a diferença entre revisão da História, que busca fatos novos e novos elementos para fazer progredir a pesquisa e a reflexão, e revisionismo que, de forma partidarizada, nega fatos comprovados, como é o caso, para dar um exemplo paradigmático do revisionismo inerente à denegação do Holocausto. Neste sentido a avaliação do regime autoritário, em matéria de violação de direitos humanos, não será mais uma questão de opinião mas de fatos abrangentemente apurados pela Comissão Nacional da Verdade.
Concluo com uma última consideração. Os trabalhos da Comissão da Verdade, se forem bem conduzidos, como se espera, constituirão um local de memória da verdade factual da violação dos direitos humanos no Brasil no período que lhe incumbe averiguar. Representarão, na linha da Justiça de Transição, uma institucionalizada vontade de memória coletiva cidadã dos males do desrespeito aos direitos humanos. A memória, no entanto, não é História, pois escolhe, seleciona e é vivida no presente, com a preocupação do futuro.
A memória da repressão e o direito à verdade do sofrimento de suas vítimas é tanto uma comprovação de que não se manda impunemente quanto é sem dúvida um componente indiscutível daquilo que caracterizou o regime autoritário em nosso país. Este, no entanto, tem outros aspectos e o escrever e o interpretar da sua História requer tomar em conjunto outras facetas do período, na coerência narrativa de uma síntese do heterogêneo. Com isto, o que estou querendo dizer é que a avaliação histórica do período e de suas circunstâncias é uma indagação que passa por pesquisas e reflexões que não têm a característica da coisa julgada da verdade jurídica num processo penal. Explico-me com dois exemplos: o Estado Novo de Getúlio Vargas e a gestão presidencial de Floriano Peixoto foram períodos de significativas violações de direitos humanos em nosso país. Estas violações são parte constitutiva destes dois períodos que, no entanto, têm outras dimensões que a História vem examinando e explicando, de maneira mais ou menos positiva, e que não tem a natureza da verdade jurídica da coisa julgada.
Em síntese, a factualidade para a qual contribuirá a Comissão da Verdade é o limite da liberdade de interpretação, porém a realidade histórica é esquiva. Por ser humana, é equívoca e inesgotável, como observou Raymond Aron, ao tratar dos limites da objetividade histórica.
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* Celso Lafer é professor da Faculdade de Direito da USP
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