Fome de pessoas integrais – De Ezilda Melo, Karelayne Coelho e Wendel Machado
Por Ezilda Melo, Karelayne Coelho e Wendel Machado – 13/03/2016
“Bebida é água! Comida é pasto! Você
tem sede de quê? Você tem fome de quê? A gente não quer só comida. A
gente quer comida, diversão e arte. A gente não quer só comida. A gente
quer saída para qualquer parte. A gente não quer só comida. A gente quer
bebida, diversão, balé. A gente não quer só comida. A gente quer a vida
como a vida quer. Bebida é água! Comida é pasto! Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê? A gente não quer só comer. A gente quer comer e
quer fazer amor. A gente não quer só comer. A gente quer prazer pra
aliviar a dor. A gente não quer só dinheiro. A gente quer dinheiro e
felicidade. A gente não quer só dinheiro. A gente quer inteiro e não
pela metade. Bebida é água! Comida é pasto! Você tem sede de quê? Você
tem fome de quê?…”[1]
Tem-se fome de comida porque é
naturalmente orgânico para qualquer ser humano. Comer é essencial para
que se tenha força para desenvolver qualquer atividade, como também é
imprescindível para continuar vivo. Pode-se comer desde a mais suculenta
e cara refeição até os restos orgânicos despejados no lixão. Há quem
coma somente vegetais e legumes, comidas orgânicas (que estão na moda e
são caras); há quem coma também carnes, peixes, crustáceos, leguminosas,
doces, enlatados, refrigerantes e toda a espécie de nociva à
saúde existente no supermercado mais próximo. Seja qual alimento for
estará classificado como proteína, carboidrato, gordura, vitamina e sais
minerais. A CF, em seu artigo 6º, garante como um dos direitos sociais o
direito à alimentação. Alimentar-se bem está totalmente interligado ao
fato de se ter saúde, que também é um direito social previsto no mesmo
artigo já mencionado.
Então, questiona-se: mas por que comer
comidas orgânicas está na moda? E seria por isso que elas são mais
caras? Primeiramente, analisa-se a atual conjuntura: o crescimento de
ONGs em defesa dos animais e por um planeta mais sustentável nas últimas
duas décadas, aliado às constantes (e cada vez mais conclusivas)
pesquisas acerca dos alimentos produzidos em escala industrial e seus
riscos à saúde fizeram amadurecer em nós a vontade de preservar o
Planeta e cuidar da nossa alimentação. Isto, imediatamente, faz crescer o
interesse por produtos orgânicos. Ocorre que, com pequena produção e
todas as burocracias enfrentadas pelos produtores para legalizar seus
produtos, automaticamente há a elevação no preço da alimentação
orgânica, fazendo com que ainda seja um grande empecilho para que se
alimente apenas dela ou que ela esteja presente na mesa de todos os
brasileiros. Dito isto, vale salientar as recentes denúncias acerca da
comercialização de falsos orgânicos, o que também colocou em descrédito
os produtos que poderiam ainda estar sendo vendidos num preço melhor nas
feiras livres, sem o selo de inspeção, mas que se garantiam serem
orgânicos.
Apesar de todas as burocracias ainda
enfrentadas pelos produtores de orgânicos para conseguirem o selo de
inspeção de seus produtos no Brasil, o Governo Federal reconhece a
importância de uma alimentação livre de agrotóxicos, pesticidas e
antibióticos e que proteja o meio ambiente. Embora ainda não haja um
grande esforço para tornar isto realidade, em 2014 o Governo Federal
(através do Ministério da Saúde, da Secretaria de Atenção à Saúde e do
Departamento de Atenção Básica) lançou o Guia Alimentar para a População
Brasileira, com o intuito de conscientizar a população brasileira sobre
os cuidados com a alimentação e de apresentar ao Brasil a sua “cultura
gastronômica”, privilegiando alimentos nativos e encontrados em
abundância em cada região do País. Na apresentação do Guia, uma
afirmação muito importante:
“As principais doenças que atualmente
acometem os brasileiros deixaram de ser agudas e passaram a ser
crônicas. Apesar da intensa redução da desnutrição em crianças, as
deficiências de micronutrientes e a desnutrição crônica ainda são
prevalentes em grupos vulneráveis da população, como em indígenas,
quilombolas e crianças e mulheres que vivem em áreas vulneráveis.
Simultaneamente, o Brasil vem enfrentando aumento expressivo do
sobrepeso e da obesidade em todas as faixas etárias, e as doenças
crônicas são a principal causa de morte entre adultos. O excesso de peso
acomete um em cada dois adultos e uma em cada três crianças
brasileiras.” [2]
Ora, então significa que o Governo
Federal conhece os problemas da má alimentação no Brasil? Conhece e
reconhece suas deficiências, uma vez que há tantos projetos cheios de
boas intenções, que no fundo só visam se aproveitar das verbas federais,
como foi o caso o Manifesto lançado por um grupo de chefs brasileiros
(“Eu como cultura”, lançado através do Instituto ATA), pelo
reconhecimento da gastronomia nacional como cultura e pedia que
ingredientes, receitas e pesquisas relacionadas à cultura gastronômica
brasileira recebessem incentivos vindos da Lei Rouanet recentemente. Por
sorte, o manifesto não obteve êxito e a Lei não foi modificada a favor
de um projeto que tem amplas condições de mover-se por si só, a começar
pela promoção, através dos próprios chefs, de eventos gastronômicos
acessíveis que valorizem os ingredientes e as receitas das regiões
brasileiras. Com o dinheiro arrecadado e campanhas populares para
doações, o projeto teria perfeitas condições para adentrar as camadas
mais humildes da sociedade, pois não se pode esperar que o Estado, nas
condições em que se encontra, banque com todas as melhores intenções por
aí.
Bem, depois de feita a digestão,
consequentemente termina-se o caminho percorrido pelo alimento e o mesmo
se transforma em lixo expelido naturalmente pelo corpo humano. Esse
lixo vai para algum lugar, que geralmente são os esgotos públicos.
Noutros casos mais graves, falta saneamento básico e esse lixo pode
acarretar doenças.
Existe, portanto, um ciclo do alimento,
que começa com a sua produção e termina com a sua expulsão do corpo.
Quanto mais natural for o alimento, melhor absorvido será pelo corpo
humano e fará bem à saúde. Quanto mais industrializado ou modificado
artificialmente mais prejuízos acarreta ao ser humano.
Vive-se num país democrático onde se
elege, de acordo com as opções que se tem para votar, em representantes
políticos, estes por sua vez têm grande importância para a construção
das leis, como também por sua execução. Um legislativo que aprova
benesses para grandes indústrias de alimentos e não se preocupa com os
venenos que chegam à população é o mesmo legislativo que não apresenta
proposta de resolução dos esgotos a céu aberto; é o mesmo que não se
importa se a comida que faz mal durante anos causará um câncer ou outra
doença, porque não se interessa pelas pessoas agoniadas nas filas do
SUS. Por isso, a fome que se tem é de pessoas integrais nos cargos
públicos. Integral no aspecto mais amplo que se dá à expressão que hoje é
famosa entre os adeptos de uma alimentação saudável. Um ser humano
integral se preocupa com os problemas da sociedade.
O Estado, portanto, é consciente das
necessidades da população, sobretudo neste caso em que não se alimentar
bem pode gerar consequências terríveis para o próprio Estado. Então, por
que o investimento na prevenção ainda é tão pouco se comparado ao que o
poder público gasta com tratamento dessas mesas pessoas que ele já
assumiu que se alimentam mal? Se os representantes políticos de fato
fossem integrais, teríamos grandes e eficientes incentivos à melhor
alimentação (refere-se, sobretudo, ao uso de agrotóxicos, à produção
aceleradíssima de transgênicos e à pecuária desastrosa desse país, que
desmata e gera milhares de gases poluentes – tudo está sendo produzido
de maneira equivocada no Brasil ou – pior ainda – de maneira a
beneficiar grandes empresas ou empresários). Como não se segue padrões
que hoje já se sabe que dão certo (como é o caso dos incentivos aos
pequenos produtores na França, como é o caso dos produtos de denominação
de origem, que podem ser comercializados inclusive sob modelo
exportação e trazem muitos lucros para o País – vejam o caso da falta de
incentivo dos órgãos públicos ao queijo de cabra de uma certa Fazenda
na PB, que poderia competir no mercado externo sem deixar nada a desejar
com os bons queijos franceses). Aqui, prefere-se gastar fortunas com a
saúde pública, prefere-se pensar que está-se de fato investindo
corretamente quando não se opta pelo incentivo ao agricultor, mas pelo
remédio contra o câncer causado por uso de agrotóxicos e que, muitas
vezes, não estão disponíveis nos hospitais, devido à quantidade absurda
com que são a cada dia mais requisitados. Será que não sairia muito
mais barato negociar com pequenos produtores de orgânicos, incentivando a
agricultura de subsistência e dando aparato financeiro para famílias
que vivem com tão pouco (eis um programa social que traria retorno: o
incentivo à produção agrícola orgânica) a estar-se sempre fechando
acordos com grandes representantes farmacêuticos para tratar males
muitas vezes intratáveis e nos tornando reféns de nossa teimosia?
Não se aguenta viver mais de pão e
circo, essa política já não surte efeitos há séculos. Nem só de pão e
vinho também. Diz o adágio que o tempero para a comida é fome e que
quando se está com ela se come até pedra. Não é à toa, que no século dos
corpos talhados pelas academias, vive-se de dietas restritas com uso
muito prolongado de suplementos vitamínicos para ganho de massa
muscular. Tem-se fome de pessoas integrais que invistam em educação.
Está-se sobrando calorias nas contas de quem tira da população em
benefício próprio. Por isso, não se espante em saber que há pessoas que
morrem pela boca ou de fome.
Uma poesia que integra esse ensaio:
Fome Integral
Por Wendel Machado
Por Wendel Machado
Sobre a mesa,
Campesinas refeições,
Pequenas colheres:
Feijão e farinha,
Grande fome,
Falta o pão
Sobram valores
princípios.
Sobre a mesa,
A pena e a lei,
Fartas porções
Legisladores e intérpretes
Célebres banquetes:
Nos pratos carnes, queijos,
Grana, fama.
Na vida:
fome integral,
falta integral,
carência integral!
No sonho:
Pessoas íntegras,
Viver integral!
Campesinas refeições,
Pequenas colheres:
Feijão e farinha,
Grande fome,
Falta o pão
Sobram valores
princípios.
Sobre a mesa,
A pena e a lei,
Fartas porções
Legisladores e intérpretes
Célebres banquetes:
Nos pratos carnes, queijos,
Grana, fama.
Na vida:
fome integral,
falta integral,
carência integral!
No sonho:
Pessoas íntegras,
Viver integral!
Notas e Referências:
[1] ANTUNES, Arnaldo; FROMER, Marcelo; BRITO, Sérgio. Comida.
[2]
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.
Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população
brasileira / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à saúde,
Departamento de Atenção Básica. – 2. ed. – Brasília: Ministério da
Saúde, 2014.