Direito Fundamental à Água? Quando o Brasil vivencia “Vidas Secas” e a água não brota das leis – De Ezilda Melo e Wendel Machado
Saiu no site da Empório do Direito:
Ezilda Melo e Wendel Machado – 04/03/2016
“Admirava as palavras compridas e
difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas
sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas”.
Graciliano Ramos
Não é novidade para qualquer cidadão
atento, quanto mais para os militantes do Direito, que de um modo muito
amplo a Constituição Federal de Brasil de 1988 traz imediatamente em seu
artigo primeiro, como princípio fundamental do Estado: “a dignidade da
pessoa humana”. Deste mandamento decorre toda uma ramificação de
direitos e garantias que perpassam o texto constitucional e irradiam
para moldar um complexo jurídico capaz de possibilitar o cumprimento do
conteúdo axiológico aí expresso. Assim, encontram estabelecidas as
diversas gerações (ou dimensões) de Direitos Fundamentais que são
caracterizados, nos dizeres de Karl Loewenstein, como “[…] princípios
superiores à ordem jurídica positiva…”. Nesta perspectiva, os direitos
fundamentais são plenamente afetos à própria existência humana,
guardando estrita relação de essência com Direitos Humanos que, como
afirma Dirley Cunha Jr., pretendem conferir “a todos, universalmente, o
poder de existência digna, livre e igual”.
No contexto das Ciências Naturais a
proposição de água como bem indispensável à manutenção da vida humana é
indiscutível. É inteiramente perceptível, até mesmo pelo senso comum,
que sua escassez inviabiliza a existência de vida saudável. Por uma
aplicação de silogismo simples, pode-se concluir facilmente que essa
relevância implica em essencialidade à condição humana e que,
certamente, é um bem que se encontra nesta categoria de direitos
essenciais firmados na dignidade do homem.
“(…) Tinham deixado os caminhos
cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a
lama seca e rachada que escaldava os pés”.
Ainda que se possa chegar a tal
conclusão com tamanha celeridade, beirando a obviedade, o reconhecimento
dessa premissa é envolta em incertezas e controvérsias que se
perpetuaram por muitos anos sem chegar a um consenso pacífico, pois,
seja no campo internacional ou interno, não há a clara e inequívoca
definição da água como direito essencial. Mesmo não havendo menção
expressa, aplicando o conceito de Loewenstein, este direito fundamental
existe e goza de tanta força vinculativa quanto qualquer outro da mesma
categoria. Entretanto, o que aqui se debate não é a letra da
Constituição, mas a defesa desse direito frente às ações e políticas
públicas.
Hodiernamente, o tema voltou a ganhar
relevância pela crise hídrica que incide sobre as várias regiões do
Brasil que convive com a estiagem duradoura, a mesma velha conhecida do
semiárido nordestino desde tempos longínquos. Já nos idos do Império se
debatia a questão de distribuição de águas do Rio São Francisco, sem que
isso também fosse muito além dos debates e de obras não conclusas. A
grande diferença, desta vez, é que há estiagem onde antes havia
abundância: de água e, principalmente, de poder econômico. O problema
então se generaliza: todo o país vivencia “Vidas Secas”.
Não por coincidência, “Vidas Secas” é a opus magna
de Graciliano Ramos, publicada originalmente em 1938. O romance que é
centrado na experiência da seca pela família de Fabiano, segue o
itinerário da desconstrução dos carácteres de humanidade das personagens
frente a um sertão com aridez de solo e de vida. A falta de água é a
própria ausência de vitalidade, de seres que se arrastam pelas
planícies, em que as crianças são destituídas do primeiro elemento
identitário: o nome. Como se houvesse uma forma de coisificação
semovente as crianças não são nomeadas. A vida desta família então se
desprende do senso de humanidade e muito mais do valor da dignidade. Os
caminhos percorridos são “terra sem lei”, onde a única manifestação
estatal é a autoridade policial arbitrária. São seres. Existem apenas
para suas vidas. Estão absortos de um arcabouço social que lhes permita
amparo. Há Direito, mas não há direitos. Mesmo o mínimo existencial é
subvertido. São homens porque há Direito, mas sua fala é reproduzida
através de grunhidos, pois não há direito a voz. Apenas existem. A água
do sertão existe, mas também há a cerca, a propriedade, o limite do
poder estabelecido. Há poder e controle porque há Direito. Direito
sempre há, mas não há defesa do Direito, nem dos direitos. Ainda aí
afora encontramos Fabianos, Sinhas Vitórias, Baleias, e, principalmente
meninos sem nome, em todos os lugares e partes. A realidade narrada no
livro nunca atribuiu topônimo: é universal, pode ser qualquer lugar,
qualquer instante. Não é como um código legislativo que perece; é
a-temporal como as obras-primas são. A arte é eterna, já o direito
legislado é momentâneo, datado, tem prazo de validade.
“(…) Eles estavam perguntadores,
insuportáveis. Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de
saber? Tinha? Não tinha…”
A intertextualidade nos permite observar
que mesmo que a gênese de tal colapso tenha explicações geográficas e
climáticas, a aridez escancara a infertilidade jurídica para a defesa de
virtudes primárias, enquanto se embriaga na mera proliferação de textos
legais. A falta do Direito para além da letra da lei não garante acesso
à água por parte da população. Não basta que haja o elemento natural em
si; há um caráter adjetivo a ser lembrado: água digna, ou seja, de boa
qualidade, potável, própria para o consumo humano em sentido plural.
Aqui se vê que, mesmo com previsão de instrumentos para defesa dos
direitos difusos e coletivos, há de se questionar a efetividade de sua
proteção e que aqueles que deveriam oferecer proteção, são apenas
perpetuadores da situação estabelecida.
Não se pode furtar, também, à percepção
de que, como um bem sujeito a escassez, há um valor econômico intrínseco
e, por isso, está submeto aos ditames da propriedade e do mercado.
Assumir tal acepção aduz à necessidade de formular uma gestão racional
que vise à eficiência, especialmente no que diz respeito à atuação da
Administração Pública em relação à gestão das águas sob sua competência,
afinal eficiência é um dos princípios insculpidos no art. 37 da Carta
Magna. Não é ilógico pensar, então, que há o estrito compromisso do
gestor com os recursos hídricos, do mesmo modo como outros bens por si
geridos, não apenas porque também constitui bem público, mas porque é
essencial à vida. Poderia, sem risco de equívoco, mesmo dizer que há uma
função social da água.
A função social da água é o entendimento
de que esta não pode ser aplicada sem que se tenha em consciência que é
um bem de interesse público e, seu uso indiscriminado e sem parâmetros,
constitui violação à própria sociedade como organismo global. Sua
função social é revestida da universalização do seu acesso, mas ainda
negação à gestão irresponsável para que não seja admitido que ‘cerca’ – a
manifestação do poder dos detentores dos recursos – não provoque a
seca.
“(…) Um dia… Sim, quando as secas
desaparecessem e tudo andasse direito… Seria que as secas iriam
desaparecer e tudo andaria certo? Não sabia…”
Provimento jurídico algum parece ser
capaz de gerar a distribuição hídrica em equilíbrio, isso porque o dever
ser está aquém das necessidades da materialidade ontológica; a
deontologia não se basta em si. Contudo, o dever ser é capaz de mudar a
realidade do ser, isso porque as condutas condicionadas pelas normas são
executadas na realidade sensível. Assim, a questão da seca, é também
questão jurídica, porque as normas jurídicas deveriam ser capazes de
promover e vincular a adoção de posturas determinantes para a promoção
da dignidade da pessoa humana. Em primeiro momento, há a vinculação da
atuação Estatal, já que os Direitos Fundamentais não são meramente
programáticos, são, sobretudo, obrigatórios em ações e política públicas
que os tragam ao campo da vivência material de maneira efetiva. Depois,
porque também é interesse público, ou seja, é a própria sociedade que
consagra a dignidade humana e a ela mesma cabe sua promoção, e nisso
inclui a defesa da água como parte do meio ambiente, mas também como um
direito social, assim como a saúde, o trabalho.
Debater crise hídrica sob essa
perspectiva é perceber que se deve regar o próprio Direito para que
enxergar além das fronteiras das leis; apreender que os Direitos
Fundamentais permanecem porque guardam estrita relação com a existência
humana e que são basilares porque reconhecemos como o mínimo para a
manutenção daquilo que é humano em nós. Debater a água no direito é ter a
noção de que “Vidas Secas” é logo aqui e também, ainda que não somente,
problema jurídico, pois se envolve poder e controle, é jurídico também.
A falta de água no Nordeste[1]
e em outras regiões insere-se perfeitamente numa questão
político-jurídica. Politicamente, o discurso do combate à seca ainda
elege muitos dos representantes populares e, juridicamente, a
Constituição Federal além de garantir esse direito fundamental, deveria
ter criado meio assecuratório de concretização. O Brasil tem grandes
mananciais aquíferos. As pessoas têm o direito de permanecer nas regiões
que se identificam cultural e socialmente. Portanto, a grande batalha
que se deve travar é fazer com o direito à água seja de todos.
Efetivamente, de todos. Juridicamente, portanto, a Constituição Federal
garante o direito à água como um direito fundamental, que deve ser
efetivado[2]. Mas, na prática o estio permanece secando corações e entristecendo o país.
Uma poesia para o tema que pode ser trabalhada em sala de aula:
Ser tão vida seca[3]
Suor, calor,
Cansaço, fome,
Terra árida onde cresce o atraso e o desamor.
Cansaço, fome,
Terra árida onde cresce o atraso e o desamor.
Terra Seca,
Seca Terra,
Vidas Secas,
Secas Vidas.
Vidas secas, como a terra seca
Que seca as vidas.
Seca Terra,
Vidas Secas,
Secas Vidas.
Vidas secas, como a terra seca
Que seca as vidas.
No pingo do meio-dia,
Com o sol escaldante,
A quentura nos consume,
Dentro de um forno ardente e quente,
Capaz de secar nossa última semente.
Com o sol escaldante,
A quentura nos consume,
Dentro de um forno ardente e quente,
Capaz de secar nossa última semente.
Terra Seca,
Seca Terra,
Vidas Secas,
Secas Vidas.
Secas de uma vida
Que secou pelas secas da vida.
Seca Terra,
Vidas Secas,
Secas Vidas.
Secas de uma vida
Que secou pelas secas da vida.
Terra seca que dá risada,
Alegra-se nos pingos que caem da chuva.
E o agricultor fica feliz vendo sua terra molhada,
Sabendo que não vai morrer sua vaca malhada.
Alegra-se nos pingos que caem da chuva.
E o agricultor fica feliz vendo sua terra molhada,
Sabendo que não vai morrer sua vaca malhada.
Terra Seca,
Seca Terra,
Vidas Secas,
Secas Vidas.
Terra Seca que floresce
no orvalho da madrugada.
Seca Terra,
Vidas Secas,
Secas Vidas.
Terra Seca que floresce
no orvalho da madrugada.
Outro artigo relacionado com a temática:
Notas e Referências:
[1]
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes;
prefácio de Margareth Rago. 5ª edição – São Paulo: Cortez, p.343: “O
Nordeste, assim como o Brasil, não são recortes naturais, políticos ou
econômicos apenas, mas, principalmente, construções
imagético-discursivas, constelações de sentido. (…) O Nordeste, na
verdade, está em toda parte desta região, do país, e em lugar nenhum,
porque ele é uma cristalização de estereótipos que são subjetivados como
característicos do ser nordestino e do Nordeste. Estereótipos que são
operativos, positivos, que instituem uma verdade que se impõem de tal
forma, que oblitera a multiplicidade das imagens e das falas regionais,
em nome de um feixe limitado de imagens e falas-clichês, que são
repetidas ad nausem, seja pelos meios de comunicação, pelas artes, seja pelos próprios habitantes de outras áreas do país e da própria região”.
[2]
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos Fundamentais: uma teoria
geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. Ed.
rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.
[3] Poesia de Ezilda Melo.
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