Deixo para vocês essa reflexão:
Jack Balkin, o bandido e o mocinho: o final não é feliz
Por Ezilda Melo
No artigo “The ‘Bad Man’, the Good, and the Self-Reliant[1]“,
Jack Balkin desconstrói as visões polares e duais sobre quem é o homem
mau, o bandido, o criminoso, sobre quem é o homem bom e o
auto-suficiente.
Professor de Direito Constitucional da
Yale Law School, Balkin, no artigo citado, indaga sobre a teoria
jurídica, seus conceitos ambíguos e seu discurso, que tem um conteúdo
velado e dissimulado, que precisa de uma leitura a contrapelo, de uma
decomposição ou desmontagem, e aponta para a necessidade de uma
reconstrução contextualizada.
Neste sentido, reflete-se sobre a
construção já estigmatizada sobre quem é o homem mau. De prontidão,
pode-se responder que é o criminoso. Portanto, é lugar comum analisar a
maldade como sinônimo de descumprimento da lei. Peguemos o exemplo do
assaltante do ônibus 174[2]
no Rio de Janeiro. O rapaz de pré-nome Sandro ficou conhecido quando
fez passageiros reféns por um longo período de tempo, e teve a ação
deflagrada por vários erros sequenciados da polícia e seu aparato
estatal. Esse rapaz, antes de ser o bandido da história, teve um passado
indigno, onde sequer ouviu a expressão “dignidade da pessoa humana”,
tão bem quista no universo teórico da nossa constituição e da doutrina
jurídica moderna.
Sandro é cria e criador de um mundo. Um
breve resumo sobre sua vida: ainda criança, filho de pai desconhecido,
teve a mãe assassinada, na sua frente, aos seis anos de idade. Morador
de rua, escapou da Chacina da Candelária no Centro do Rio de Janeiro.
Como tantos outros moradores de rua, que assolam as cidades brasileiras,
que passam seus dias vagando em busca de uma sobrevivência animalesca,
cometeu vários furtos e roubos e era usuário de crack. Sandro é uma
espécie de um processo estrutural de (des)organização social, baseada em
classes, a observar pelos dados fornecidos pelo IBGE, a partir da
renda per capita.
Nosso Estado Democrático de
Direito existe na teoria bem inventada e construída de fontes nacionais,
repetidoras de estrangeirismos que não se amoldam à nossa realidade, e
nas diferenças entre princípios e regras. Na prática, em razão do grave
abismo social, entender uma pessoa como a de Sandro, somente a partir da
ótica do mau, do homem que representa ojeriza para os demais cidadãos,
aqueles que podem ser vítimas de um criminoso, pronto para atacar as
suas presas na selva darwinista da cidade grande.
Sandro não ficou preso na cadeia. Morreu
no caminho para a delegacia, dentro do carro da polícia. No entanto,
não se surpreenda, espécie igual a Sandro vai direto para a cadeia, um
lugar construído para esse tipo de pessoa. Duvida? É só visitar um
presídio: a realidade está lá, nua e crua. Tem rostos, cores e traços de
um mosaico social antagônico e surreal.
Carnelutti[3]
diz que “todos os homens possuem incrustados em si o germe do bem e do
mal, e o desenvolvimento de um ou de outro depende, em muito do
tratamento que recebem ao longo da vida”. Em que pese a força que a
sociedade exerce na formação institucional de nosso ser, que inicia seu
processo de construção ainda no seio familiar, cada um de nós tem uma
natureza, uma lei individualizada e singular do ser. Não existem dois
iguais. Não existe igualdade, existe desigualdade. Não existe ordem,
existe desordem e caos[4].
Em razão disso, Balkin rejeita a afirmação consagrada do que é o homem
mau, rejeita a ideia sobre a qual o homem é bandido, pura e
simplesmente, como um conceito dado. Ele rejeita esse pré-conceito,
baseando-se na convicção de que para compreender a lei, também temos de
compreender as diferentes variedades do caráter humano e suas
motivações. Neste sentido, a novidade é que Balkin desconstrói o
lugar-comum da marginalidade, desconstrói o estereótipo de homem mau e
nos faz verificar se, de fato, a exemplo de Sandro, o que é um homem
bandido e criminoso.
Balkin vai mais longe. Desconstrói o
lugar do homem bom, baseando-se em Thoreau, afirma que “o único lugar
para o genuinamente ‘homem bom’ é na cadeia”. Verificando que da espécie
humana, clarificam-se indivíduos de várias faces, ele nos fala dos
modelos de homens: aqueles são covardes, corajosos, conformistas,
rebeldes, e tantos outros, independentemente do fato de que a natureza
de tudo é socialmente construído. Visões consagradas de que o legislador
é um homem bom, é totalmente rechaçada por Balkin. Ele nos fala,
justamente, o contrário: os homens maus vão promulgar leis perversas
como instrumentos de dominação dos outros.
Além disso, Balkin trata do conceito de
auto-suficiente, que é aquele homem que decide violar a lei no interesse
de um bem maior. Portanto, Balkin, questiona o lugar consagrado do
legislador e diz: a lei pode e deve ser violada. Os motivos ensejadores
dessa violação podem ser por motivação ímpia e insensível; violação em
razão da coragem de levantar-se para que o resto da população saiba que a
lei é injusta; e violação da lei porque a julgam incompatível com seus
olhos, com seu modo de ser.
Nessa desconstrução, pergunta-se: Sandro não é mau? Nossos legisladores é que são?
Responda. Cada resposta muda o final dessa reflexão.
[1] http://digitalcommons.law.yale.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1260&context=fss_papers
[2] http://www.youtube.com/watch?v=tv55oDw5VJI
[3] http://ensaiosjuridicos.files.wordpress.com/2013/04/asmiseriasdoprocessopenal.pdf
[4]
ARONNE, Ricardo. Razão e Caos no Discurso Jurídico e outros ensaios de
Direito Civil-Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado
Editora, 2010.