Mostrando postagens com marcador Tribunal do Júri; Direito e Arte. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Tribunal do Júri; Direito e Arte. Mostrar todas as postagens

sexta-feira

Entrevista para a Editora Empório do Direito para divulgação da obra "Arte, emoção e caos no Tribunal do Júri de Ariano Suassuna"

 




1. Qual a proposta do livro "Arte, Emoção e Caos no Tribunal do Júri de Ariano Suassuna", republicado recentemente pela Studio Sala de Aula?

O presente livro tem como objetivo analisar a instituição do Tribunal do Júri e seus personagens do ponto de vista filosófico, jurídico e artístico. Para tanto, verificou-se o Direito como discurso jurídico complexo e transdisciplinar e como uma Obra Aberta. Percebeu-se o Direito pelo paradigma da emoção, subjetividade e incerteza, ao invés da razão, certeza e objetividade, usando para tanto a Teoria do Caos. O Direito foi visto como processo de espetacularização, para tanto usou-se a exploração midiática dos crimes de competência do Tribunal do Júri. Identificou-se as intersecções entre o Tribunal do Júri e a Literatura, no “Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna. Metodologicamente a estrutura do presente livro, deu-se em formato de uma peça teatral, sendo composta por um prólogo, três atos e o epílogo. Enveredou-se pelo campo do Direito e Arte, especificamente no dialogismo entre Direito e Literatura, como proposta de perceber o processo criativo-artístico construído na representação do Tribunal do Júri na obra de Ariano Suassuna. Dentre autores de diversas formações científicas, propõe-se um estudo sobre os personagens do Tribunal do Júri, com base numa investigação legislativa brasileira do Código de Processo Penal, como também em Nietzsche, através do método apolíneo-dionisíaco, e em Ariano Suassuna, na obra “Auto da Compadecida”.

2. Quais as motivações para escrever sobre este tema?

As motivações surgiram diante de um vazio na literatura jurídica que não coloca a Arte, a Emoção e o Caos como significativos para o Direito. Portanto, estudar o instituto do Tribunal do Júri a partir dessa tríade vem ao encontro de procurar novas vertentes de explicar o fenômeno jurídico numa visão transdisciplinar.

3. Conte como foi o processo de pesquisa para escrever.

A pesquisa se originou da Dissertação de Mestrado que defendi em setembro de 2014 na Universidade Federal da Bahia, sob orientação do Prof. Nelson Cerqueira. Depois, fiz uma revisão, reescrevi algumas partes, refleti sobre outras questões, o que culminou no presente livro. Também durante a pesquisa tive a oportunidade de assistir a penúltima aula espetáculo de Ariano Suassuna, em julho de 2014, uma semana antes do seu falecimento.

4. Quais as principais conclusões adquiridas com a obra?

Neste trabalho teve-se como escopo analisar que o discurso jurídico é construído e interpretado, tendo como parâmetro principal de interpretação, a emoção.  Entendeu-se o Direito enquanto processo criativo, através do qual cada personagem exerce papel importante, em que o leitor ou espectador exerce o ato de interpretar e julgar. Ao invés de analisar o Direito pelo paradigma da razão, tecnicismo, objetividade e certezas, analisou-se pela emoção, subjetividade e incertezas. Percebeu-se que o Tribunal do Júri é um teatro vivo, onde promotores, advogados, magistrados e jurados participam ativamente, ao decidirem pela absolvição ou condenação, numa dança viva em que se deparam com a possibilidade de estabelecer um feixe de relações com base em suas emoções pessoais, muito próximo do conceito de Obra Aberta de Eco. No discurso do Tribunal do Júri, o orador é tomado pela palavra e conduzido por ela a lugares distantes. O bom intérprete no palco do teatro jurídico é aquele que sente o que foi dito pelas partes conflitantes no ringue que a oratória propicia. Concluiu-se que a emotividade dá-se na racionalidade do Tribunal do Júri

Abaixo a apresentação de Alexandre Coutinho Pagliarini, o Prefácio de Paulo Ferreira da Cunha e o Posfácio de Alexandre Morais da Rosa.


APRESENTACAO[1]

 

            “O presente livro se origina de dissertação de mestrado defendida na tradicional Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – UFBA”. Este seria o modo mais vetusto – e chatíssimo! – de dar início a este prefácio; mas aqui não me utilizarei de tal sisudez porque tudo foi tão diferente... Logo, se eu apresentasse algum indício de que aqui eu viria a ser o formal da história, provavelmente não teria sido convidado para prefaciar um escrito que foi apresentado na forma de peça teatral, o que o diferencia – de cara! – das dissertações de mestrado apresentadas diante de bancas formadas por juristas formalistas ou não abertos à interlocução entre Direito e arte. A propósito, de agora em diante não mais escreverei direito com inicial maiúscula porque senão teria de também usar um “a” maiúsculo para a palavra arte!

            Quando criança, logo que pensava em direito, vinha-me à cabeça a cena de algum filme americano em que se digladiavam acusação e defesa para transformar um mero evento ocorrido no mundo físico em fato jurídico a ser levado em conta pelo Tribunal do Júri em seu processo mental decisório.

            Tribunal do Júri... uma coisa leva à outra: passo então a pensar em dois advogados da minha cidade natal, Pouso Alegre, Sul de Minas Gerais. Os nomes deles eram Marçal Etienne-Arreguy e Rômulo Coelho. Ambos gostavam de tomar umas e outras. Marçal fazia isso logo antes de entrar em cena de modo sempre fulminante e arrasador no Tribunal do Júri. Rômulo fazia o mesmo, só que depois da sessão. Marçal era mais intelectual; aliás, Marçal foi o homem mais inteligente que conheci em Pouso Alegre, falava francês com a fleuma de um Voltaire. Rômulo era mais técnico e mais astuto. Marçal gritava contra a promotora recém concursada, dizendo-lhe “auto lá promotora, pela ordem senhor juiz-presidente, esta senhora foi minha aluna e eu não lhe ensinei isso na Faculdade de Direito; que ela respeite-me!”. Rômulo apelava para a emoção e, para levar o Júri às lágrimas numa certa ocasião em que atuava como assistente de acusação, narrava que “aquele mecânico João acordava sempre às seis da manhã para ir consertar carros na oficina, e, antes de voltar para casa doze horas depois, lavava as suas mãos encardidas para poder acariciar o rosto e os cabelos loirinhos de sua filha Maria, de treze anos, até que num triste entardecer não pôde repetir este gesto porque encontrou Maria estuprada e morta por este canalha que se encontra aqui sentado no banco dos réus”. De fato, a promotora novata tremia ao ouvir os berros de seu sábio ex-professor, e isso produzia efeitos no Júri, assim como também de fato todos os jurados populares choravam ao imaginar Maria morta e estuprada nos braços pesarosos de seu desesperado pai João.

            “O Tribunal do Júri é um teatro vivo!”; estes são dizeres da Ezilda Melo, a menina-mulher que defendeu a dissertação e que a transformou neste maravilhoso livro. Na oportunidade da defesa, cheguei bem cedo à UFBA, cumprimentei a banca composta por Nelson Cerqueira – da área da literatura – e pelos juristas Sebastian Borges de Albuquerque Mello e o meu amigo Alexandre Morais da Rosa. Beijei e abracei Ezilda e coloquei-me sentado exatamente em frente à sua lateral direita. Ela estava altiva, linda, toda de vermelho (lady in red): uma maravilha, que beleza...

            Beleza devia ter sido escolhida pela autora do livro também como uma das palavras chave que compuseram a dissertação original, não só por conta dos atributos internos e externos de Ezilda, mas por causa do que ela escreveu em si. Digo isso porque a audácia de se correlacionar direito e arte numa dissertação de mestrado não é talento que possa ser posto à prova por muitos; portanto, Ezilda é única se eu levar em conta que nunca vi nem ouvi falar que alguém tenha defendido dissertação ou tese de direito na forma metodológica de peça teatral: e ela teve essa cara de pau, e fez isso de modo estupendo.

            A autora analisa o instituto do Tribunal do Júri tendo em mãos os elementos constitutivos da teoria do caos: emoção, subjetividade e incerteza. Tais elementos constitutivos são contrários aos que compõem a teoria positivista de Hans Kelsen e Otto Pfersmann (e minha própria, posto que sou o tradutor deste último em língua portuguesa), quais sejam: razão, certeza e objetividade. Aliás, defendem Kelsen e Pfersmann[2] que a vontade (decorrente do uso da razão) é a base da teoria positivista do direito. A partir de sua base de análise, sem dúvida, a autora trilha um caminho que só pode transcorrer pela teoria do caos num discurso transdisciplinar e complexo que considera o direito como obra aberta; isso significa que Ezilda acertou a estrada e chegou ao destino que havia escolhido. Caso tivesse tomado a estrada positivista, ela teria comprado uma passagem para Paris num avião que fora parar em Tóquio.

            Em certo momento, questiona-se a autora se o teatro que se faz no discurso jurídico – pela defesa e pela acusação – é uma linguagem pela qual o direito caminha para o convencimento dos destinatários da verdade construída: os juízes. Respondo eu que sim; com Lourival Vilanova e Paulo de Barros Carvalho, ouso dizer que direito é linguagem à medida que só terão relevância jurídica os eventos do mundo físico que tiverem sido vertidos em linguagem segundo as normas do próprio direito, de modo que, para a linguagem do direito, a morte da vítima Maria (filha de João) ocorreu no momento em que o Tribunal do Júri condenou o réu – e não no instante do estupro e do estrangulamento em si. Assim, a verdade sempre decorrerá de um relato juridicamente relevante – mas teatralmente vertido em linguagem.

            Emotividade e racionalidade se fundem no Tribunal do Júri; esta é a principal conclusão a que chega este livro em que Foucault foi a base para a análise do discurso jurídico, Nietzsche o fundamento do método apolíneo-dionisíaco e Ariano Suassuna – com o seu incomparável Auto da Compadecida – o pano de fundo para a teatralidade intrínseca ao Tribunal do Júri real.

            Defesa de dissertação assim só podia ter ocorrido na Bahia, o Estado que inventou o Brasil: terra de Castro Alves, da beleza, da emoção, do caos urbano que causa incertezas e da magia da poesia. E já que a Bahia é marcada por tantos elementos e tantas linguagens, em homenagem à imaginação dessa grande autora Ezilda Melo, termino a apresentação de seu livro assim:

“Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa
rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.

'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos — beijá-la.

Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! — tu és a virgem das campinas!
"Virgem! — tu és a flor da minha vida!..."
[3]

 

PREFÁCIO:

Prefácio de Paulo Ferreira da Cunha[4]

LIBERTANDO O DIREITO

 COM ENGENHO E ARTE

 

 

 

Foi para mim um prazer ler esta obra, e é um gosto prefaciá-la.

Este livro insere-se já num tempo novo, um momento significativo de viragem. E uma viragem que anuncia (e já representa) um corte epistemológico muito sério e regenerador. Alguns diriam "pós-moderno", mas tal expressão parece já estar um pouco antiquada, pelo que a evitaríamos.

Há, do princípio ao fim deste texto, não um polvilhar de novidades para doirar o conjunto e eventualmente épater le bourgeois. Há um sopro diferente de renovação, mas o texto já se coloca num outro lugar, já contempla a juridicidade de uma diversa perspectiva.

Não é o adorno do novo sobre o velho, não são odres novos para vinho antigo, é já vinho e odres novos, e com toda a legitimidade que os velhos, vinho e odres.

A sensação de legitimidade da démarche empreendida dá-lhe segurança. Estávamos e ainda estamos a precisar muito de estudos jurídicos inovadores que não sejam tentâmens pomposos ou em bicos-de-pés, trabalhos a um tempo com segurança e sem petulância, com naturalidade. Com segurança e com honesto estudo. Com robustês e agilidade. Afinal, com engenho e arte, como diria Camões. É este um caso. Só que é esta uma segurança não alicerçada meramente no cabedal do passado, mas ancorada igualmente no tipo de trabalhos que se farão no futuro, sem complexos. Não os únicos, mas dando-nos uma amostra iluminadora de uma das formas, modelos, gêneros dos que se farão...

Obviamente que longe de nós saudar simplesmente a novidade pela novidade. Esse é um dos mais correntes e medíocres pecados da nossa contemporaneidade e da crítica normal. Não. O que está aqui em causa é já um livro de um novo tempo e para um novo tempo.

Virá certamente o dia em que movimentos, correntes, escolas, que foram vanguardistas, que ainda o são, virão a ser ou atirados para o caixote do lixo da História ou incorporados no novum que haja entretanto nascido. O que o livro da Professora Ezilda Melo nos traz é uma antecipação dessa triagem, especialmente com a incorporação sem pompa e com a maior naturalidade do que é bom e está bem, aí onde o encontrou, como diria Van De Velde.

Com efeito, poder-se-ia dizer que este livro, que começa o seu título precisamente por um alargamento do tema Direito & Literatura (Law & Literature), enquanto Direito e Arte, e que logo no título ainda remete para a Emoção (inter alia) e um grande autor como Ariano Suassuna, conhecido sobretudo pelas Letras, se insere precisamente nessa subárea da Filosofia do Direito. Mesmo assumindo-se como de Direito e Arte, não deixaria este escrito de se encontrar, pelo seu conteúdo, mais ligado ao Direito & Literatura.  Ora as relações entre uma e outra coisa (quer se fale de Arte em geral quer de Literatura em particular) foram progredindo desde o posicionar-se o Direito contra a Arte e a Literatura (quantos processos absurdos e inquisitoriais a obra de arte inovadora não suscitou!), em muitos casos, até uma reconciliação integradora, a que já se chamou "Direito com Literatura", depois de várias fases intermediárias.

Mas assim já não é. Já não estamos, nesta obra, quer ela queira quer não (quer ela o desejasse quer não: as obras não são dos seus autores, mesmo durante a feitura, e muito menos depois...), no domínio estrito dessa subárea jurisfilosófica apenas. Pelo contrário, e mais além, encontramo-nos num mundo novo: no terreno vasto e a perder de vista de um Direito, mais que pensado e repensado, libertado[5]. Que obviamente é Direito com Literatura e Arte, e naturalmente convoca a emoção e dá voz e vez aos artistas e à forma mentis artística. E tão naturalmente que o estilo flui sem esforço, e tão obviamente assim é que já nem nos damos conta assim tanto disso.

Sentimo-nos assim transportados a um oásis do direito futuro no nosso tempo e ainda no nosso direito. Não que se trate de ficção ou futurologia. Mas pelo estilo que antecipa a habitualidade de tópicos e formas de abordagem que não são ainda habitualmente os nossos.

Não esperamos dos juristas mais habituados a uma reverência rígida e cadavérica uma adesão muito grande a esta obra, mas ela prescinde bem dessa adesão. Há contudo certas obras de viragem que podem ter virtualidades inusitadas, e insuspeitadas: quais sejam as de prepararem o terreno para a conversão de juristas mais clássicos, mas inteligentes e no fundo inquietos e insatisfeitos, a novos ventos.

Para isso são necessárias obras solidamente engastadoras do futuro no passado. Capazes de mostrar que o seu autor poderia, se quisesse, ter as maiores honras no cursus honorum corrente e tradicional, em sintonia com o estilo rebarbativo imperante, mas que, anão aos ombros de gigantes como diria São Bernardo, foi capaz de subir mais alto e ver mais longe. Achamos que a Professora Ezilda Melo conseguiu isso: prova que é uma jurista perfeitamente formada no arsenal do passado, mas que não se contenta com ele, e sabe que navegar é preciso.

Naveguemos, pois, com esta obra, e mais longe...

Este livro deu-me uma grande alegria, porque me transportou para um mundo futuro do Direito com cultura, com arte, com literatura, com ciências sociais, não como postiços para impressionar alguns, mas como parte de um saber jurídico global, holístico e até pós-disciplinar, para lembrar os estudos do catalão Mayos, aliás também grande amigo do Brasil.

Por coincidência, esta sensação, este estado de espírito, parece-nos abeirar-se muito da aproximação à noção de valor em Johannes Hessen. Porque, com a leitura desta obra, nos quedamos com uma sensação de plenitude: uma felicidade calma, não de contemplação acrítica e de adesão cega, mas a sensação de que as coisas estão bem e fazem sentido.

Não sei que valor concretamente se encarna nesta obra. Mas certamente algo terá a ver com a Justiça, que é um pleno, perpétuo e contante suum cuique. Aqui há um dar o seu a seu dono num estudo de Direito, mas um Direito que convive com a vida, real e epistémica, com naturalidade e com sentido da complexidade e vastidão do Mundo... Porém, sente-se aqui também, ao menos, um latejar em pano de fundo de verdade e de beleza...

Um Direito destes, remetendo para tais valores, é o Direito por que andamos lá fora a batalhar: de um novo paradigma fraterno e humanista[6].

Fraterno no sentido político de ir até mais além (conciliando-as) a liberdade e a igualdade, que separadas só fabricam infernos.

Humanista quer no sentido social de Humanidade e humanização, como no sentido epistémico de enciclopédica, racional e jubilosa nova Renascença, de cultivo dos cânones que valem a pena cultivar, como os clássicos, e de profunda inovação, com obstinado rigor leonardiano, com a magia de um Rafael que tira a estátua da sua prisão de mármore...

É numa prisão, não de mármore mas de granito, sólido e escurecido pela patine do tempo, que tem vivido o Direito nos seus tempos de clausura: primeiro objetivista romanista e depois de subjetivismo burguês, em todos os casos materialistas. O Direito que se nos anuncia não renuncia a um vasto património, a uma História fascinante, mas encontra-se mais além...

Disse uma vez Ariano Suassuna: "Arte pra mim é missão, vocação e festa". Poderá um dia não diríamos o Direito vivido e sofrido, mas ao menos o Direito pensado, estudado e em criação sê-lo também?

É nessas caminhadas que se insere este livro. Por vezes acreditando tanto no caminho que tememos aqui e ali vá depressa demais... Mas não vai. Já vamos todos atrasados.

 

 

POSFÁCIO:

Posfácio de Alexandre Morais da Rosa - Doutor em Direito (UFPR). Juiz de Direito (TJSC). Professor Adjunto (UFSC e UNIVALI)

 

 

Ousadia é a marca do livro de Ezilda Cláudia de Melo. Transitando pelo Direito protagoniza a colocação do mestre Ariano Suassuna no ambiente kafkiano do julgamento em plenário de Júri. A partir do “Auto da Compadecidade” e seus personagens, resgatando suas falas e defesas, de alguma forma as profanando, também, desloca os sentidos que podem ser invocados, a cada momento, no jogo de argumentos que é o julgamento em plenários, com suas reviravoltas e surpresas. O livro antes opera uma discussão entre uma compreensão apolínea e dionísica do mundo. Nessa dicotomia, contudo, não podemos suportar, por ser demais, a morte que se avizinha em Dionísio e seu excesso, bem assim tolerar a vida arrumadinha e certinha de Apolo, dentro da luz e da ordem, por ser de menos. A ambivalência Apolo-Dionísio parece ser o estratagema de quem consegue sustentar seu desejo, embora não seja, claro, fácil. O discurso jurídico, por sua vez, apresenta-se na forma racional, apolínea, cheia de consciência, ordem e progresso. E é muito chato. Aprendemos com Luis Alberto Warat que o discurso da ciência é importante, ainda que não possa dar conta de tudo. Há um resto de desejo que sempre nos move adiante. O discurso com Dionísio concede o para além do prazer, da ordem do gozo. A promessa de um dia sermos feliz, embora seja sempre um sonho a se realizar, pois nunca chega. Do livro que o leitor pode ter acesso, talvez a primeira leitura não faça Justiça a todo o enredo. É preciso certo tempo para poder o saborear...

            Somos legatários de Luis Alberto e Warat na interlocução entre Direito e Literatura. Por isso seguirei Warat em Dona Flor e Seus dois maridos[7]. Autorizado pelo autor, no início de seu livro, seguirei parafraseando/copiando sem aspas, tornando a leitura mais escorreita: mais gostosa. Warat percebe em Dona Flor a heroína da poligamia dos significados e do imaginário erotizado que sobreviveu/resplandeceu frente a tantas tentativas de castração, feitas em nome de uma cultura aparentemente sem manchas. E a castração é, sobretudo, a poda do desejo, cabendo-nos questionar o tido por inquestionável. Em Vadinho o solto, preguiçoso, cara de pau, jogador e perdulário que vai até o fundo dessa malandra experiência que é estar vivo; sentindo-se parte desse mundo louco da razão. Já Teodoro Madureira é o meticuloso, insosso, dono de uma cultura sem surpresas, um homem que nunca sai de suas gavetas, tedioso, que pede permissão e hora para amar, dono de uma mania cartesiana de etiquetar tudo. Com Vadinho tudo pode ser misturado, o prazer surge, ressurge, renasce, mistura irresponsabilidade com desejos, fantasias, malandragem. O jogo de incertezas. Vadinho é capaz de mostrar o sentido erótico da vida, transformando o racional em erótico. Dona Flor deseja o novo, a vida em movimento. Com Teodoro Madureira a vida perde seu movimento, seu brilho, seu ardor. Torna-se a univocidade de atos e de desejos, repetidos no dia-a-dia. Respeitam-se tanto que nem se relacionam e, sem mistura não há relação. Vadinho faz aparecer a necesssidade/possibilidade de se desejar o novo, o desconhecido, o resgate da sedução. Invocando o carnaval diz que talvez possamos concentrar em Vadinho o carnaval e a folia, e em Teodoro Madureira a quaresma, os dias em que nossas vidas funcionam como uma oficina de controles inúteis, mas que servem, per se para justificar sua existência e bem alimentar os que nela mandam. Assim é que com Vadinho existe a presença constante do inesperado. Seu retorno da morte é o símbolo de como, pelo fantástico, podemos manter uma relação adúltera como real. É o marido sem o espírito da legalidade que a mulher sonha ter, para temperar a alquimia de ternura e segurança do desejo instituído. A volta de Vadinho permite a Dona Flor romper os ímpetos do desejo com o dever, aceitando o adultério como condição natural do casamento. É que não existe democracia sem marginalidade (adultério), sem uma louca cavalgada, o delírio febril, os ais do amor que vêm da experiência comum da gente, surgida nos momentos primordiais do cotidiano.

Existem coisas que se fazem e que não se pode ver”, diz Teodoro Madureira a Dona Flor, enquanto apaga a luz para amá-la. Toda uma cultura do pecado, que marca gerações desde o momento em que se concebe. A maioria de nós, filhos do segredo. Opondo Teodoro Madureira e Vadinho encontram-se definidos, para o imaginário de Dona Flor, os lugares do dever e do prazer. O prazer por prazer e por obrigação. Warat considera que o amor, em nossas sociedades, é burocrático e repressivo por apresentar um excesso de deveres. E o amor será um exercício democrático do prazer, quando se liberar de suas proibições e inocentar o prazer realizado fora do dever. 

Esse livro demonstra, faz aparecer, o paradoxo entre o prazer/fruição e os deveres reproduzidos pela sociedade gregária de uma moral cristã que ajusta nossos desejos ao modelo de ordem e legalidade racionalizado, escamoteando os sentimentos: o amor e a sedução. Ariano Suassuna apostou na salvação milagrosa. Não sei se teremos as mesmas chances. Enquanto isso, no binômio Apolo-Dionísio e Teodoro Madureira/Vadinho, tenhamos coragem para sustentar nossos desejos. É o que resta. E não é pouco.

 



[1] Alexandre Coutinho Pagliarini – Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP.

[2] PFERSMANN, Otto. Positivismo jurídico e justiça constitucional no século XXI. 1 ed. Tradução e coordenação: Alexandre Coutinho Pagliarini. Prefácio: Jorge Miranda. Apresentação: Francisco Rezek. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 63.

[3]Antônio Frederico de Castro Alves (Baiano de Curralinho, nascido a 14 de março de 1847. Morreu em Salvador em 6 de julho de 1871). Foi um dos mais importantes poetas brasileiros. Disse uma vez: "Considero-me um poeta. Integrado no meu tempo. Cantei a natureza, a mulher, o amor e vivi a causa do meu século: entreguei-me inteiro à causa dos escravos". Castro Alves viveu pouco, porém, intensamente. É patrono da cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras. O poeta, que sofria de tuberculose, morreu prematuramente aos 24 anos. A cidade onde nasceu, hoje, chama-se Castro Alves.

 

[4] Paulo Ferreira da Cunha. Membro do Comité ad hoc para o Tribunal Constitucional Internacional. Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

 

[5] Mais recentemente, desenvolvemos esta última ideia no nosso livro Iniciação à Metodologia Jurídica. 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2014, máx. p. 165 ss.. E em Libertar o Direito. Do Problema Metodológico-Jurídico do nosso Tempo, "International Studies on Law and ducation", vol. XIX, http://www.hottopos.com/isle19/27-36PFC.pdf

[6] Para uma fundamentação e história destes conceitos: AYRES DE BRITO, Carlos. O Humanismo como Categoria Constitucional. Belo Horizonte: Forum, 2007. Idem. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 3.ª reimp. da 1.ª ed., 2006, p. 216 ss.; BITTAR, Eduardo C. B.. O Direito na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005. Idem. Razão e Afeto, Justiça e Direitos Humanos: Dois Paralelos Cruzados para  Mudança Paradigmática. Reflexões Frankfurtianas e a Revolução pelo Afeto. in Educação e Metodologia para os Direitos Humanos. São Paulo: Quartier Latin, 2008; CARDUCCI, Michele. Por um Direito Constitucional Altruísta, trad. port., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003; CARNEIRO, Maria Francisca. Direito, Estética e Arte de Julgar. Núria Fabris Editora: Porto Alegre, 2008; KUENG, Hans. Das Christentum. Wesen und Geschiche. trad. do fr. de Gemeniano Cascais Franco. O Cristianismo. Essência e História. Lisboa: Círculo de Leitores, 2012, p. 673 ss.; RESTA, Eligio. Il Diritto Fraterno. Roma/Bari: Laterza, 2002; STOLLEIS, Michael. Vormodernes und Postmodernes Recht, in “Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno”, Universidade de Florença, vol. 37, 2008; WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma Nova Cultura no Direito, 3.ª ed., São Paulo: Alfa-Omega, 2001 (1.ª ed. 1999); ZAGREBELSKY, Gustavo. Il Diritto Mite. Turim: Einandi, 1992. E o nosso livro Geografia Constitucional. Sistemas Juspolíticos e Globalização. Lisboa: Quid Juris, 2009, máx. p. 289 ss..

[7] WARAT, Luis Alberto. A ciência Jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985.