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quarta-feira

Prefácio do Livro "Feminismos, Artes e Direitos das Humanas" - Prof. Dra. Gisela Bester



Prefácio do Livro "Feminismos, Artes e Direitos das Humanas" - Prof. Dra. Gisela Bester



PREFÁCIO

Gisela Maria Bester

            O convite que recebi para coorganizar – e depois para prefaciar – esta magnífica, inovadora e surpreendente obra, remete-me à generosidade da Professora Mestra Ezilda Melo, mais uma grande amiga que a vida me deu, daquelas amizades que nascem em torno da produção, da recriação e da disseminação do conhecimento, meio no qual vivemos, sobrevivemos e nos encontramos. Por sinal, este é um livro de encontros! Encontro de pessoas, de destinos e de aspirações; encontro de identidades humanas (de gênero e sexuais), assumidamente ideológicas ou sem esta preocupação; convergências de lutas contra o machismo, o patriarcalismo, o sexismo e a misoginia; confluência de ideais, e de ideias defensoras dos direitos humanos das mulheres adultas, das adolescentes e das crianças meninas. Disto tudo, desta sinergia, é formado o livro intitulado “Feminismos, Artes e Direitos das Humanas”.
            Tudo nesta obra é diverso! É diferente o seu mote, assim como diversas são as peças que a compõem. O fio condutor, desde o início, foi o de montarmos um livro apenas com produções de mulheres, sobre mulheres. Não importava a área do conhecimento, pouco importando também as não-áreas, mas sim e apenas o livre pensar, o livre criar, a vazão que se pudesse dar a qualquer conteúdo com significados, embalado em forma acadêmica ou não. Tudo diverso, como diverso é o mundo das mulheres, como a diferença que há dentro da própria diferença, como de resto diferentes entre si são todos os seres humanos. As humanas aqui reunidas, femininas, feministas ou nada disto, tiveram, por isso mesmo, com essa libertação do academicismo, a oportunidade de apresentarem-se, na qualidade de coautoras, com as credenciais que bem quisessem, mais com biografias (algumas romanceadas, ou poetizadas) do que com bibliografias ou minicurrículos. Mulheres de carne e osso, para além de corações e mentes, desvelaram, assim, seus berços, seus percursos, algumas tessituras e as urdiduras das trajetórias que até aqui as trouxeram. Por isso, também fica o convite à leitura das descrições que cada uma das autoras escolheu fazer de si mesma, cada caso configurando um mundo à parte, por si só cheio de belezas. Estes universos, identificados com criatividades várias, estão registrados na lista de autoras.
            Em obra diversa, diverso também há de ser o seu prefácio. Assim, peço licença poética, e também metodológica e epistemológica – eu mesma do quadro das metodólogas –, para escrever em estilo o mais livre possível, acompanhando já desde aqui os ares da liberdade criativa que marcam este nosso livro.
           Obra libertadora. Deixou vir, acolheu, e doravante deixa-os ir, livremente apresentados, poemas e contos, sonetos e cordéis, entrevistas e fotografias, artigos científicos e prosas, crônicas e resenhas, pinturas e peças teatrais... Tudo vale, tudo dá vazão a emoções, a pensamentos, a ideias, a sentimentos, a conhecimentos, até agora represados, contidos nos corações, nas gargantas, nas memórias, ou em caixas de guardados, ou, ainda, até já publicados antes, cuja reprise siga sendo útil e instigante. Ninguém censurou ninguém. Nem uma de nós podou nem uma outra sequer. O que mandaram, esta obra (re)colheu. E a colheita foi rica e farta, como todos e todas verão. Logo, é com esse mesmo olhar liberto e acolhedor que concito os leitores e as leitoras a apreciarem o que se segue. Conteúdos reunidos neste continente! Continente das almas, cheias ou vazias, dos desejos e dos sonhos, do realizado e do por(vir). O onírico e o real. O belo, em tudo. Leiam-nos! Sorvam-nos em nossas essências, aqui decantadas em letras, em tintas, em lentes.
            São dizeres, são sofreres, são quereres. São saberes. São somas, são subtrações, são multiplicações, e também divisões. Disso a vida é feita! Há perdas, há conquistas, há recomeços, como há inícios. Do nada, que nada nunca é. Ou do tudo, que tampouco tudo é. Entre vazios e plenitudes, com esperanças e desesperanças, cantando o amor ou chorando o desamor, as mulheres expressaram-se. Contaram de si, das outras, da filha, da mãe, da irmã, da vizinha, da tia, da avó, da sogra, da neta, da nora, da professora, da dona do bordel, da puta, da religiosa, da governadora, da presidenta. Falaram dos homens, também. De quando são filhos. Dos companheiros (de quando o home é o macho), dos feminicidas. E das companheiras. Há percepções. Diversas. Sobre tantos universos. Cada uma um mundo em si. Constelações de dores e de alegrias, de conquistas e de frustrações, de derrotas e de vitórias, de perdas e ganhos. Estrelas. Todas estrelas. De algum céu.
Claro que ostra feliz não faz pérola! Claro, meu admirado, já ido, mas permanente, Rubem Alves! Toda a dor, doída e sofrida, precisamente por isso, pode transmudar-se em beleza. Depende de nós. De cada uma. Não tenho nenhum apego ao sofrimento ou defendo a dor, mas digo apenas que este livro reúne muitas belezas. No caleidoscópio que se formou, a partir das tantas criações aqui reunidas, certamente que as desconstruções de umas, ou de seus mitos, de seus heróis, de suas heroínas e de suas crenças, podem significar-lhes catarses, assim como fecundidades para outras, inspirações para muitos e para muitas outras, incentivos a novos despertares de consciências, inspirações para tanta coisa boa que ainda podemos fazer no mundo, por nós mesmas e por toda a humanidade. Erro. Por todos os seres vivos! Dizem que os exemplos arrastam, não é mesmo minha querida amiga Rayka Vasconcelos?!
            O mundo é desordem. Por isso, neste livro não tem ordem alfabética. Porém, no meu entender, o mundo é desordem organizada no espaço. Por isso, entropia. Afinal, alguma harmonia é preciso. Ser altamente entrópico, como sou, custou-me, por exemplo, soltar um livro sem nele fazer uma minuciosa revisão (de forma e de português), mas cedi, deste também meu ofício de revisora, diante da riqueza do “em bruto”, que significa vida viva, vida em movimento, vida formada, e não reformada, significando, por último mas também em primeiro lugar, criação não deformada pelas normas técnicas. Assim, nesta proposta, cada autora responde por seus produtos, em forma e em conteúdo.
            Digo, por fim, como já disse em outra ocasião, que as mulheres, quando chamadas, brotam! Brotam de todos os lados, acodem de todos os cantos, com suas forças de gigantes. Aparecem e somam. Crescem. Dão galhos e folhas. Ramificam-se. Espalham-se. Florescem. Depois frutificam. E depois, vêm as sementes. Para novamente, brotar. Mulheres que brotam. São vocês. Somos nós. Fica aqui minha homenagem final a todas as coautoras deste livro, com esta imagem belíssima, que por pura sintonia fina cruzou minha vida com a da amiga Patrícia Medina, em uma bela noite tocantinense de março de 2016. Era um evento da OAB, onde fiz minha fala sobre mulheres que brotam, em um auditório lotado, em forte maioria pelas próprias, e em seguida ela iniciou sua palestra, sobre a ética do cuidado, às mulheres advogadas, com esta imagem: justamente de mulheres que brotam. Imaginem se tivéssemos combinado... Cuidemo-nos. E brotemos. Sempre.



 

Artigo aprovado para o CONPEDI Portugal

https://www.conpedi.org.br/wp-content/uploads/2017/06/ARTIGOS-APROVADOS-VII-ENCONTRO-INTERNACIONAL-BRAGA-PORTUGAL.pdf

Sob o tema Interconstitucionalidade: democracia e cidadania de direitos na sociedade mundial – atualização e perspectivas, o evento acontece nos dias 7 e 8 de setembro na cidade de Braga em Portugal.


DIREITO, ARTE E LITERATURA
T
AUTO DA COMPADECIDA, CRIMINOLOGIA E FEMINISMO: CONTRIBUIÇÕES DA LITERATURA PARA O DIREITO -  Ezilda Melo


Ainda compõe programação do CONPEDI, nos dias 11 e 12 de setembro, após o encerramento do VII Encontro Internacional do CONPEDI Portugal, será promovido pela CEDU em parceria com o Grupo Compostela um workshop sobre as dimensões jurídicas do caminho português de Santiago de Compostela, intitulado “Folletos del I Laboratorio Jurídico sobre Cultura y Desarrollo sostenible”.
Trata-se de uma atividade acadêmica, interdisciplinar e internacional destinada a interessados em direito cultural, proteção e promoção do patrimônio cultural e seu impacto no desenvolvimento local, combinando conhecimentos teóricos com em torno da observação do Caminho de Santiago.
As inscrições deverão ser realizadas até 15 de agosto seguindo as orientações constantes no site do Grupo Compostela (CLIQUE AQUI), sendo que as vagas são limitadas (45 vagas).

sábado

Jack Balkin, o bandido e o mocinho: o final não é feliz.

Jack Balkin, o bandido e o mocinho: o final não é feliz.
                                                                Ezilda Melo[1]
 
No texto "The 'Bad Man', the Good, and the Self-Reliant", Jack Balkin, nos convoca a refletir sobre quem é o homem mau, o bandido, o criminoso, sobre quem é o homem bom e o auto-suficiente.
Como Professor de Direito Constitucional da Yale Law School, Balkin nos convida a indagar sobre a teoria jurídica e os seus conceitos ambíguos, que tem um conteúdo velado, dissimulado, que precisa de uma desconstrução, decomposição ou desmontagem, apontando para a necessidade de uma reconstrução contextualizada.
 
Neste sentido, quem é o homem mau? Aparentemente, é o criminoso. Peguemos o exemplo do assaltante do ônibus 174 no Rio de Janeiro. O rapaz de pré-nome Sandro ficou conhecido quando fez passageiros reféns por um longo período de tempo, e teve a ação deflagrada por vários erros sequenciados da polícia e seu aparato estatal. Esse rapaz, antes de ser o bandido da história, teve um passado indigno, onde sequer ouviu a expressão "dignidade da pessoa humana", tão bem quista no universo teórico da nossa constituição e da doutrina jurídica moderna. Fazendo uma análise de quem foi Sandro, podemos fazer um breve resumo da seguinte forma: ainda criança, filho de pai desconhecido, teve a mãe assassinada na sua frente aos seis anos de idade. Morador de rua, escapou da Chacina da Candelária no Centro do Rio de Janeiro. Como tantos outros moradores de rua, que assolam nossos país, que passam seus dias vagando em busca de uma sobrevivência animalesca, cometeu vários furtos e roubos, e também usava crack. Sandro é uma espécie natural de um processo de estrutura de organização social, que se baseia em classes, a observar pelos dados fornecidos pelo IBGE, que nos classifica a partir da renda per capita.
Nosso Estado só lembra de Sandro quando ele comete crime. Ele só não foi para a cadeia, porque morreu dentro do carro da polícia. No entanto, não nos surpreendamos, espécime igual a Sandro vai direto para a cadeia, um lugar construído para esse tipo de pessoa. Quem mais vai para a cadeia no Brasil? É só visitar um presídio: a realidade está lá, nua e crua.
Hoje, a moderna teoria do Direito Penal, nos fala sobre a co-culpabilidade do Estado. E não é que é verdade? Claro. Carnelutti, em "As Misérias do Processo Penal", nos esclarece que: "todos os homens possuem incrustados em si o germe do bem e do mal, e o desenvolvimento de um ou de outro depende, em muito do tratamento que recebem ao longo da vida". Alguém dúvida? Em que pese a força que a sociedade exerce na formação institucional de nosso ser, que inicia seu processo de construção ainda no seio familiar, cada um de nós tem uma natureza, uma lei do ser. Em razão disso, Balkin rejeita a afirmação consagrada do que é o homem mau, de que o homem é bandido, pura e simplesmente, como um conceito dado. Ele rejeita essa metáfora baseando-se na convicção de que para compreender a lei, também temos de compreender as diferentes variedades do caráter humano e suas motivações. Neste sentido, o que é que Balkin traz de novidade? Ele desconstrói o lugar-comum da marginalidade. Ele desconstrói o estereótipo de homem mau e nos faz verificar se, de fato, a exemplo de Sandro, ele é um homem bandido e criminoso?
 
Balkin vai mais longe. Desconstrói o lugar do homem bom, baseando-se em Thoreau, afirma que "o único lugar para o genuinamente 'homem bom' é na cadeia". Verificando que da espécie humana, clarificam-se indivíduos de várias faces, ele nos fala dos modelos de homens: aqueles são covardes, corajosos, conformistas, rebeldes, e tantos outros, independentemente do fato de que a natureza de tudo é socialmente construído. Visões consagradas de que o legislador é um homem bom, é totalmente rechaçada por Balkin. Ele nos fala, justamente, o contrário: os homens maus vão promulgar leis perversas como instrumentos de dominação dos outros.
 
E Balkin vai além e nos fala do homem auto-suficiente, que não é apenas o indivíduo criminoso e egoísta, mas também pessoas como Thoreau, que decide violar a lei no interesse de um bem maior. Portanto, Balkin, questiona o lugar consagrado do legislador e diz mais: a lei pode e deve ser violada. Os motivos ensejadores dessa violação são: motivos ímpios ou insensíveis; violação em razão da coragem de levantar-se para que o resto da população saiba que a lei é injusta; e violação da lei porque a julgam incompatível com seus olhos, com seu modo de ser.
 
Nessa desconstrução, pergunto-me: Sandro não é mau? Nossos legisladores é que são?
Responda.
 
 
 


[1] Advogada. Historiadora.  Professora de Direito da Faculdade Ruy Barbosa e da Faculdade Social da Bahia. Mestranda em Direito Público - UFBA. Blog: www.ezildamelo.blogspot.com. Twitter: @ProfEzildaMelo
 
 
 
 

quarta-feira

A sistemática dos Direitos Fundamentais - Material de apoio

Faculdade Ruy Barbosa
Pós-Graduação em Direito Público
Professora: Ezilda Melo – ezildamelo@gmail.com
Tema: A sistemática de Direitos Fundamentais

O ponto de partida será o fato de que a nossa Constituição reconhece a existência de direitos fundamentais (o Título II é dedicado aos “Direitos e Garantias Fundamentais”), que expressamente condicionam à atuação dos poderes públicos. Essa premissa embasará a discussão dos seguintes cinco problemas principais do:

1) Quais direitos da Constituição são fundamentais?

Direitos fundamentais e a organização do poder estatal são a essência mesma do constitucionalismo; pode-se afirmar inclusive que a organização do poder estatal é um meio para se atingir as liberdades estabelecidas pelos direitos fundamentais. Atualmente, pode-se afirmar, inclusive, que longe de serem apenas limites (direitos ditos “de primeira geração”) ou metas indispensáveis (direitos ditos “de segunda geração”) ao exercício do poder, os direitos fundamentais são verdadeiros critérios de legitimação do poder estatal e da ordem constitucional como um todo. Não basta ao Estado respeitá-los; é preciso promovê-los. Contudo, não é simples identificar quais os dispositivos constitucionais que consagram os direitos fundamentais. Não há nenhum critério que não seja problemático.

Seriam “fundamentais” apenas os direitos do artigo 5o? Os direitos e garantias do artigo 5o? Os direitos dos artigos 5o, 6o e 7o e seu incisos? Todo e qualquer direito assegurado pela Constituição? Você já parou para pensar de quantas formas diferentes podemos enfrentar esta questão?Este é um problema com consequências práticas importantes.

 Em especial, vale notar que, nos termos do artigo 60, §4o da Constituição, não será sequer apreciada emenda constitucional que tenda a abolir “os direitos e garantias individuais”.

Afinal, o que está incluído nesta vedação?

Quais os direitos, ou quais as categorias de direitos?

 Dizer que um determinado dispositivo constitucional constitui cláusula pétrea é algo muito sério, pois as cláusulas do gênero representam uma excepcional restrição ao poder que as gerações futuras têm de traçar o seu próprio destino e criar suas próprias leis e instituições sob a égide da Constituição de 1988.


2) Quem está vinculado aos direitos fundamentais?

3) Como resolver colisões de direitos fundamentais?

4) Quando não podemos restringir ou ponderar direitos fundamentais?

5) Qual conteúdo ou parte do conteúdo desses direitos é passível de ser exigido judicial-mente?

Assim, a perspectiva será eminentemente dogmática/pragmática: como podemos operacionalizar as normas que versam sobre direitos e garantias fundamentais? Que efeitos podem extrair delas? Quais são os seus destinatários e quem deve responder pelo seu descumprimento? São questões práticas, e é natural que o sejam. Afinal, se os direitos fundamentais devem ser mais do que declarações de boa vontade e boas intenções do constituinte, e se a Constituição deve ser respeitada como norma jurídica vinculante e não mero conselho às futuras gerações, então os operadores do direito devem ser capazes de determinar qual o conteúdo de “dever ser” dos dispositivos constitucionais sobre direitos fundamentais.

Devemos ter em mente que as teorias sobre direitos fundamentais nascem e morrem com os regimes políticos, as ideologias da época, os defensores de determinada concepção de Estado e de sociedade e assim por diante. Não se quer apenas enumerar teorias sobre direitos fundamentais, mas sim capacitar os alunos a utilizar tais teorias para formular sólidas e eficazes respostas diante de casos concretos.

A dignidade da pessoa humana num Projeto de Pesquisa para seleção de Mestrado da UFBA:
(...)
O tema do trabalho é o estudo da dignidade da pessoa humana na Jurisprudência Brasileira: um estudo hermenêutico de decisões judiciais, a partir, especialmente, das decisões do Supremo Tribunal Federal sobre homoafetividade, anencefalia e cotas raciais.
O estudo da dignidade da pessoa humana comporta justificativas em todos os âmbitos, sejam teóricos, sociais ou mesmo práticos. Partindo da constatação de que o princípio constitucional da dignidade humana oferece os pressupostos imagéticos-discursivos-axiológicos necessários para a concretização do direito justo em nosso direito pátrio, o que se quer é fazer um estudo hermenêutico do uso do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana nas decisões do Supremo Tribunal Federal, em especial as mais recentes. Houve o uso do princípio da dignidade da pessoa humana nas decisões sobre a equiparação da união homoafetiva estável à entidade familiar no direito brasileiro, sobre a anencefalia e sobre as cotas raciais. A importância do estudo desses casos advém de terem sido eles integrados, utilizando-se dos princípios gerais do Direito, na falta de norma legisladora.
Sendo a Constituição Federal um sistema composto de regras e princípios jurídicos, entendemos que as regras, estabelecidas em termos preci­sos, conferem segurança à aplicação do Direito, mas não são suficientes para a solução de todos os conflitos de interesses de uma sociedade pluralista. Haveriam de ser previstas à exaustão para abarcar o conjunto dos problemas possíveis. Os princípios por serem o pensamento diretor de um sistema normativo, são orientações de caráter geral das quais se extrai a racionalidade íntima das normas sistêmicas; são a base de uma Constituição, de uma lei ou de uma instituição jurídica. Hodiernamente, figuram em lugares de destaque nas Constitui­ções e são o fundamento destas e a chave de interpretação das normas que deles decorrem.
Paulo Bonavides (2001), citando Ricardo Guas­tini, identifica seis significados atuais para o vocábulo “princípios”: (a) são normas (ou disposições equivalentes) com alto grau de generalidade; (b) são normas com alto grau de indeterminação, sem a qual não seria possível aplicá-las aos casos concretos; (c) são normas de caráter programático; (d) são normas de hierarquia muito elevada; (e) são normas de função importante ou fundamental no sistema político ou jurídico quando considerado como unidade; e (f) são normas dirigidas aos órgãos incumbidos de dizer que normas são aplicáveis ao caso concreto.
É de Dworkin, porém, a constatação de que somen­te as regras apontam resultados. Os princípios inclinam-se para a decisão de forma não conclu­siva e, se não prevalecem, continuam intactos. Há princípios, determinados estruturantes, que delineiam a ideia básica da ordem constitu­cional. São exemplos, citados por Canotilho, o princípio do Estado de direito, o princípio democrático e o princípio republicano.
Outros existem que intensificam os prin­cípios estruturantes. São os valores, como a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade. Apresentam-se na Constituição para que outros preceitos constitucionais, aos quais se relacionam, sejam realizados. O valor preenche, complementa e esclarece o conteúdo da regra constitucional. Conduz o intérprete à solução do caso concreto.
Em sua clássica obra "Theorie der Grundrechte" (Teoria dos direitos fundamentais), Robert Alexy desenvolve a ideia de que regras e princípios são normas porque formulados por intermédio de expressões deônticas básicas do dever, da permissão e da proibição, ambos funcionando como razões para juízos concretos de dever-ser. Embora reconheça que o critério da generalidade seria o mais utilizado para distinguir princípios de regras, entre estas duas espécies normativas não existiria uma diferença de grau, mas sim qualitativa. Para ele, princípios são: "[...], mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes”.
Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível (ALEXY, p. 90-91)
Convém trazer os ensinamentos de Virgílio Afonso da Silva, sobre a teoria de Alexy:
"A razão é simples: o critério que Alexy utiliza para distinguir princípios de regras é um critério estrutural, que não leva em consideração nem fundamentalidade; nem generalidade,  nem abstração, nem outros critérios materiais, imprescindíveis nas classificações acima mencionadas. Como consequência, muito do que é tradicionalmente considerado como princípio fundamentalíssimo – a anterioridade da lei penal é um exemplo esclarecedor– é, segundo os critérios propostos por Alexy, uma regra e não um princípio[...]. Falar em princípio do nulla poena sine lege, em princípio da legalidade,em princípio da anterioridade, entre outros, só faz sentido para as teorias tradicionais. Se se adotam os critérios propostos por Alexy, essas normas são regras e não princípios."

Todavia, mesmo quando se diz adotar a concepção de Alexy, ninguém ousa deixar esses mandamentos fundamentais de fora das classificações dos princípios para incluí-los na categoria de regras. (SILVA, 2005, p. 30 e 36)
De acordo com Ricardo Mauricio Freire Soares (2010) a materialização do direito justo no pós-positivismo brasileiro, ocorre na prática, com a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana pelo STF. Neste sentido ele nos diz: “pode-se verificar que o STF, no atual contexto histórico-cultural de desenvolvimento da experiência jurídica pátria (...) avança na concretização de um direito justo, enfatizando o uso do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”.
Em assim sendo, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal tem invocado, cada vez mais, o princípio da dignidade da pessoa humana em matérias polêmicas e que o legislador ordinário ainda não tratou, configurando claramente forma de integrar nosso ordenamento jurídico..
O STF afirma a primazia do princípio da dignidade da pessoa humana, “dada a sua condição de princípio fundamental da República (art. 1º, inciso III, da CF/88)”. O Ministro Carlos Ayres Britto, já declarou que a dignidade da pessoa humana foi elevada pela Magna Carta de 1988 à condição de princípio fundamental da República e que, de consequência, assume “o papel inspirador não só do legislador ordinário, como também do aplicador do Direito, que nunca deve perder de vista seus parâmetros, sob pena de desrespeitar o próprio Ordenamento Jurídico que legitima sua atuação”. O Ministro Celso de Mello declarou que o postulado da dignidade da pessoa humana, representa – considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) – significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo ordenamento consti­tucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo.
 A lição, que podemos verificar, é a de que o prin­cípio da dignidade da pessoa humana “proíbe a utilização ou transformação do ser humano em objeto de degradação dos processos e ações esta­tais”. Segundo Gilmar Mendes, que nesse ponto se apoia em Günter Dürig, “o Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas e humilhações”.
O Direito Brasileiro vem passando por mudanças necessárias. Três decisões do STF são bem emblemáticas no sentido de comprovar essa afirmação. A primeira a que fazemos menção é o famoso julgamento da ADI 4277 em maio de 2011. Foi ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) com pedido de interpretação conforme a Constituição Federal do artigo 1.723 do Código Civil. A PGR sustentou que o não reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar fere os princípios da dignidade humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal. Com igual objetivo, considerando a omissão do Legislativo Federal sobre o assunto, o governo do Rio de Janeiro ajuizou a ADPF 132. Alegou que o não reconhecimento da união homoafetiva contraria preceitos fundamentais como princípio da dignidade da pessoa humana e liberdade. O Ministro Ayres Britto, em passagem do voto, e dando preferência à interpretação conforme à Constituição , nos diz que “o sexo a se constituir num dado empírico que nada tem a ver com o merecimento ou o desmerecimento inato das pessoas, pois não se é mais digno ou menos digno pelo fato de se ter nascido mulher, ou homem”. A dignidade da pessoa humana exige a igualdade civil-moral.
A segunda, o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54), diz respeito ao fato do Legislador Ordinário não ter incluído no rol das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o caso da anencefalia. O STF julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal. Em várias passagens de seu voto, o Ministro Carlos Ayres Britto faz uso do princípio da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, quando nos diz que “daí que vedar à gestante a opção pelo aborto caracterize um modo cruel de ignorar sentimentos que, somatizados, têm a força de derruir qualquer feminino estado de saúde física, psíquica e moral (aqui embutida a perda ou a sensível diminuição da auto-estima). Sentimentos, então, que se põem na própria linha de partida do princípio da dignidade da pessoa humana. Que é um princípio de valiosidade universal para o Direito Penal dos povos civilizados, independentemente de sua matriz também de Direito Constitucional”.
A terceira situação diz respeito à ADPF 186. O Ministro Ricardo Lewandowski julgou totalmente improcedente o pedido feito pelo Partido Democratas (DEM) contra a política de cotas étnico-raciais para seleção de estudantes da Universidade de Brasília (UnB), utilizando-se de dados da História do Brasil, da justiça restaurativa e, especialmente, do princípio da dignidade da pessoa humana. “Os programas de ação afirmativa em sociedades em que isso ocorre, entre as quais a nossa, são uma forma de compensar essa discriminação, culturalmente arraigada, não raro praticada de forma inconsciente e à sombra de um Estado complacente”, ressaltou o relator.
Portanto, de 2011 a 2012, estamos presenciando novos julgados que apontam para a reafirmação do princípio da dignidade da pessoa humana como essencial nas decisões dos Ministros do Supremo Tribunal Federal em matérias não tratadas pelo legislador ordinário. Decisões que significam formas integratórias do sistema jurídico brasileiro.

7 – OBJETIVO GERAL E OBJETIVOS ESPECÍFICOS:
O objetivo geral da pesquisa é demonstrar que o princípio constitucional da pessoa humana tem grande relevo nas decisões do Supremo Tribunal Federal, e, neste sentido, compreender o porquê, especialmente quando estamos diante de lacunas no ordenamento jurídico, por falta de norma legislada.
Os objetivos específicos do trabalho são: estudar o princípio da dignidade da pessoa humana, sob os pontos de vista jusnaturalista, positivista e pós-positivista; compreender a formulação teórica do princípio da dignidade da pessoa humana dentro do texto da Carta Magna Brasileira; discutir o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da República e referência uni­ficadora dos direitos fundamentais; analisar decisões dos Ministros do STF que tiveram como parâmetro norteador o princípio da dignidade da pessoa humana; verificar as decisões analisadas dentro de um contexto hermenêutico-integrador do Direito Brasileiro.

sexta-feira

“Interesses Públicos versus Interesses Privados: desconstruindo a supremacia do interesse público”, organizado por Daniel Sarmento.

Um resumo que fiz que de um texto muito interessante e que usei na Seleção do Mestrado da UFBA 2012.2:
 “Interesses Públicos versus Interesses Privados: desconstruindo a supremacia do interesse público”, organizado por Daniel Sarmento.
Um conjunto precioso de textos que procuram revigorar o estudo do direito administrativo em um momento em que ele vive uma crise de identidade. O velho Estado burocrático já não seduz o espírito, nem realiza seu papel.
Prefácio: O Estado contemporâneo, os Direitos Fundamentais e a Redefinição da Supremacia do Interesse Público - Luís Roberto Barroso-UERJ
1) Resumo do livro: os textos aqui apresentados questionam o paradigma tradicional do direito administrativo, expresso na existência de uma supremacia do interesse público sobre o interesse privado.
2) o Estado ainda é protagonista
Trajetória pendular do Estado ao longo do século XX:
- Liberal: com funções mínimas, em uma era de afirmação dos direitos políticos e individuais;
- social: após o 1/4, assumindo encargos na superação das desigualdades e na promoção dos direitos sociais;
- neoliberal (na virada do século): concentrando-se na atividade de regulação, abdicando da intervenção econômica direta, em um movimento de desjuridicização de determinadas conquistas sociais;
O Estado ainda é a grande instituição do mundo moderno.
Superados os preconceitos liberais, a doutrina publicista reconhece o papel indispensável do Estado na entrega de prestações positivas e na proteção frente à atuação abusiva dos particulares.
A presença do Estado em uma relação jurídica exigirá, como regra geral, um regime jurídico específico, identificado como de direito público.
Em um Estado democrático de Direito não subsiste a dualidade cunhada pelo liberalismo, contrapondo Estado e sociedade. O Estado é formado pela sociedade e deve perseguir os valores que ela aponta.
POS-POSITIVISMO, CENTRALIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A ONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO
A dogmática jurídica brasileira sofreu nos últimos anos, o impacto de um conjunto novo e denso de ideias, identificadas sob o rótulo genérico de pós-positivismo ou principialismo. Trata-se de um esforço de superação do legalismo estrito, característico do positivismo normativista, sem recorrer às categorias metafísicas do jusnaturalismo.
Nele se incluem, dentre outros: a formação de uma nova hermenêutica constitucional, o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana  e a Reaproximação do Direito e da Ética.
A passagem da CF para o centro do sistema jurídico.  A principal manifestação da preeminência normativa da CF consiste em que toda ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu crivo.
Toda interpretação jurídica é também constitucional.
Qualquer operação de realização de direito envolve a aplicação direta ou indireta da CF. Direta, quando uma pretensão se fundar em uma norma constitucional; e indireta, quando se fundar em norma infraconstitucional, por duas razões:
1) antes de aplicar a norma, o intérprete deverá verificar se ela é compatível com a CF, porque, se não for, não poderá fazê-la incidir;
2)ao aplicar a norma, deverá orientar seu sentido e alcance à realização dos fins constitucionais.
SENTIDO E ALCANCE DA NOÇÃO DE INTERESSE PÚBLICO NO DIREITO CONTEMPORÂNEO
Iremos utilizar uma distinção fundamental, de origem italiana, e pouco disseminada na doutrina e jurisprudência brasileira:
1)      Interesse Público Primário: é a razão de ser do Estado e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar, que são interesses de toda sociedade. Interesses gerais da coletividade. Desfruta de hierarquia porque não é passível de ponderação. Ele é o parâmetro da ponderação, porque consiste na melhor realização possível da vontade constitucional, dos valores fundamentais que ao intérprete cabe preservar ou promover.
2)      Interesse Público Secundário: é o da pessoa jurídica de direito público que seja parte em uma determinada relação jurídica – quer se trate da U-E-DF-M ou das suas autarquias. Interesses particulares que o Estado possui. Pode ser identificado como o interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas. Jamais desfrutará de supremacia a priori e abstrata em face do interesse particular.
3)      Na colisão entre interesse público primário e secundário: caberá ao intérprete proceder à ponderação adequada, á vista dos elementos normativos e fáticos relevantes para o caso concreto. O interesse público primário, consubstanciado em valores fundamentais como justiça e segurança, há de desfrutar de supremacia em um sistema constitucional democrático.
4)      Na colisão entre o interesse público consubstanciado em uma meta coletiva e o interesse público primário que se realiza mediante a garantia de um direito fundamental: o intérprete deverá observar dois parâmetros: a dignidade humana e a razão pública.
Exemplos de colisão: liberdade de expressão x manutenção de padrões mínimos de ordem pública; direito de propriedade x um sistema justo e solidário no campo; propriedade industrial x proteção da saúde; justiça x segurança.
Razão Pública: importa em afastar dogmas religiosos ou ideológicos e utilizar argumentos que sejam reconhecidos como legítimos por todos os grupos sociais. Consiste na busca de elementos constitucionais essenciais e em princípios consensuais de justiça, dentro de um ambiente de pluralismo jurídico. O interesse público primário não se identifica com posições estatistas ou antiestatistas.
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana: sintetiza-se na máxima kantiana segundo a qual cada indivíduo deve ser tratado como um fim em si mesmo. Pretende evitar que o ser humano seja reduzido à condição de meio para a realização de metas coletivas ou de outras metas individuais. Exemplo: se determinada política representa a concretização de importante meta coletiva, mas implica a violação da dignidade humana de uma só pessoa, tal política deve ser preterida.
Em um Estado Democrático de Direito, assinalado pela centralidade e supremacia da CF, a realização do interesse público primário se consuma, muitas vezes, pela satisfação de determinados interesses privados. Por exemplo: assegurar a integridade física de um detento, preservar a liberdade de expressão de um jornalista, prover à educação primária de uma criança são, inequivocamente, formas de realizar o interesse público, mesmo quando o beneficiário for uma única pessoa privada.
O interesse público se realiza quando o Estado cumpre satisfatoriamente o seu papel, mesmo que em relação a um único cidadão.
Resumo do texto “Interesses Públicos versus Interesse Privados na perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional, de Daniel Sarmento.
1.      Introdução
Exposição de fatos: o presente estudo volta-se para análise dos conflitos entre interesses públicos e privados no ordenamento jurídico brasileiro.
Objetivos:
1)      Mostrar, com aportes da filosofia constitucional e da teoria dos direitos fundamentais, que o chamado princípio da supremacia do interesse público sobre o particular não constitui critério adequado para a resolução destas colisões;
2)      Demonstrar que a cosmovisão subjacente ao princípio em debate apresenta indisfarçáveis traços autoritários, que não encontram respaldo numa ordem constitucional como a brasileira, em cujo epicentro axiológico figura o princípio da dignidade da pessoa humana.
3)      Sugerir caminhos alternativos mais adequados à ordem constitucional brasileira e mais consentâneos com os princípios humanistas a ela subjacentes.
A doutrina nacional, a exemplo de Celso Antonio Bandeira de Mello, Hely Lopes Meirelles, Fábio Medina Osório atribui importância capital na definição do regime jurídico-administrativo. Tal princípio é empregado para justificar uma série de prerrogativas detidas pela Administração Pública. Deste princípio decorre a verticalidade das relações travadas entre Administração Pública e administrados, caracterizada pelo desequilíbrio sempre em favor do Estado. Classificação muito usual nos manuais de IED também.
Vozes autorizadas vêm se levantando na doutrina para contestar a existência do princípio em pauta: Daniel Sarmento, Humberto Ávila, Ricardo Lobo Torres, Gustavo Binenbojm,  Alexandre dos Santos Aragão, Paulo Ricardo Shier, Marçal Justen Filho.
Por que? Não só porque divisamos uma absoluta inadequação entre o princípio da supremacia do interesse público e a ordem jurídica brasileira, como também pelos riscos que sua assunção representa para a tutela dos interesses fundamentais. Parece-nos que o princípio em discussão baseia-se numa compreensão equivocada da relação entre pessoa humana e Estado, francamente incompatível com o leitmotiv do Estado Democrático de Direito, de que as pessoas não existem para servir aos interesses públicos ou à sociedade política, mas, ao contrário, estes é que se justificam como meios para a proteção e promoção dos direitos humanos.
Acrescente-se a isso a absoluta indeterminação do conceito de interesse público, por não se ter uma noção homogênea de bem comum ou de vontade geral. Neste quadro, a profunda indeterminação semântica do conceito pode permitir às autoridades públicas que o manuseiem as mais perigosas malversações.
O interesse público periga tornar-se o novo figurino para a ressurreição das “razões de Estado”, postas como obstáculos intransponíveis para o exercício de direitos fundamentais.
Porém, na análise do tema é recomendada redobrada cautela:
1)      De um lado, a subordinação dos direitos individuais ao interesse coletivo pode ser um perigo para totalitarismos;
2)      De outro, a desvalorização total dos interesses públicos diante dos particulares pode conduzir à anarquia e ao caos geral.
No Brasil, temos costumes políticos e administrativos ainda anacrônicos, que tem dentre as suas mais perniciosas disfunções a confusão perene entre o público e o privado, caracterizada pela gestão da res publica por agentes estatais como se fosse privada.
2.      Público Privado no Passado e no Presente
Uma das grandes dicotomias sobre as quais se erigiu o pensamento político e social foi exatamente a distinção entre público e privado. Esta clivagem deu origem, por exemplo, a clássica summa diviso, que desdobra o Direito em Público e Privado.
Objetivos desse item:
2.1. Demonstrar que as fronteiras entre o público e o privado são extremamente móveis e instáveis, e que a prioridade atribuída a cada um dos elementos do par também oscila ao sabor das mutações políticas e cosmovisivas.
2.2. Comprovar que esta dicotomia não traduz critério legítimo para solução dos conflitos de interesses surgidos na sociedade contemporânea.
De acordo com Nelson Saldanha, com a bela metáfora, público e privado seriam o jardim e a praça.
Ele faz uma análise histórica dos três critérios (prevalência do interesse, natureza das relações jurídicas e subjetivo) utilizados para demarcar essa divisão.
Ao longo da história, o pêndulo tem oscilado no sentido da priorização ora da dimensão pública da vida humana, ora da privada:
Grécia Antiga: dava-se importância à vida pública do cidadão, através da sua participação política na definição dos destinos da sua comunidade;
Idade Média: opera-se uma completa inversão. Renascimento: individualismo
Estado Moderno: na sua feição absolutista, a relação entre público e privado torna-se mais complexa e já implicava no predomínio da autoridade pública sobre a vontade dos particulares.
Estado Liberal: delineia-se uma separação mais nítida entre as esferas pública e privada. Tratava-se de limitar juridicamente o poder do Estado em prol da liberdade dos governados. Durante esse período, o Código Civil desempenhou, nos países de tradição jurídica romano-germânica, o papel de uma espécie de constituição da sociedade. Era inegável, a prioridade axiológica do privado em detrimento do público.
Welfare State, no século XX, assistiu-se a uma crescente intervenção do Estado nos mais diversos domínios. A Era da Descodificação. Neste contexto, a proteção das liberdades privadas é relativizada.
Final do Século XX – crise do Estado Social, percebeu-se um movimento de retorno do pêndulo em direção ao privado.  O Estado, antes visto como agente redentor das classes desfavorecidas e racionalizador da economia, passa a ser associado no imaginário social à ineficência, à burocracia excessiva, ao desperdício. Fuga do D. Administrativo para o Direito Privado.
Globalização: fragilizou o Estado. Neste contexto, os poderes privados se fortaleceram, sobretudo as grandes empresas transnacionais. Lex Mercatoria x  Direito produzido pelas fontes tradicionais do Estado. Retrocesso nos níveis de proteção às populações carentes proporcionados pelos direitos sociais.
Neste contexto, as fronteiras entre público e privado estão mais nebulosas. Se, por um lado, o Direito Público se privatiza, por outro não anula a publicização do Direito Privado. Trata-se de processo de progressiva constitucionalização. Este fenômeno, a partir da CF/88, significa a imposição de uma releitura das normas e institutos do D. Privado filtrados a partir da axiologia constitucional, diante do reconhecimento de que a CF não representa apenas a norma básica do Estado, mas a ordem jurídico-fundamental da comunidade. Nasce a necessidade de revisitação de vetustas categorias civilísticas, como propriedade, posse, contrato, família. Consolida-se o reconhecimento da incidência dos direitos fundamentais no campo das relações privadas.
A doutrina e jurisprudência hoje proclamam que, para bem desempenharem o seu papel de proteção e promoção da dignidade da pessoa humana, devem eles vincular também os particulares. A autonomia privada é também uma dimensão relevante da dignidade humana.
Temos ainda o terceiro setor, que é público, mas não estatal. A exemplo das ONG´s, associações de moradores, entidades de classe e outros movimentos sociais.
Portanto, a clivagem público/privada torna-se por demais singela para explicar o atual cenário, em que há múltiplos espaços da vida humana, pautados por lógicas diversas.  Parece-nos necessária a manutenção e até mesmo a solidificação de determinadas fronteiras entre público e privado. Daí a importância da consagração constitucional do direito de privacidade e de direitos fundamentais de liberdade.
O critério público/privado não é útil par resolução de conflitos de interesse que se estabeleçam numa sociedade aberta e democrática, seja pela imprecisão e indeterminação intrínseca, seja pelo reconhecimento de que ambas dimensões são igualmente importantes para realização existencial da pessoa, e é a pessoa, e não o Estado, o valor-fonte do ordenamento jurídico, na feliz expressão de Miguel Reale.
3.      Pessoa, Sociedade e Constituição
Há compatibilidade da ideia de supremacia do interesse público sobre o privado com o conceito de pessoa que foi acolhido pela CF/88.
A afirmação da supremacia do interesse da coletividade sobre aqueles pertencentes a cada um dos seus componentes pode ser justificada a partir do organicismo (teoria que concebe as comunidades políticas como uma espécie de todo vivo. O organismo superior é o Estado. Revela-se totalmente incompatível com o princípio da dignidade da pessoa humana)  e do utilitarismo (uma das mais importantes teorias morais da modernidade, doutrina segundo a qual a melhor solução para cada problema político-social é sempre aquela apta a promover em maior escala os interesses dos membros da sociedade. Reconhece a igualdade intrínseca entre todas as pessoas. É uma concepção ética consequencialista. No entanto, o utilitarismo não trata adequadamente os direitos fundamentais como direitos situados acima dos interesses da maioria).  Já a tese da supremacia incondicionada dos direitos individuais sobre os interesses da coletividade assenta-se sobre o individualismo (a primazia axiológica é o indivíduo).
A prevalência há de ser aferida mediante uma ponderação equilibrada dos interesses públicos e privados, pautada pelo princípio da proporcionalidade, baseando-se no personalismo (afirma a primazia da pessoa humana sobre o Estado e qualquer entidade intermediária, e reconhece no indivíduo a capacidade moral de escolher seus projetos e planos de vida. Par o personalismo é absurdo falar em supremacia do interesse público sobre o particular, mas também não é correto atribuir-se primazia incondicionada aos direitos individuais em detrimento dos interesses da coletividade).
O personalismo não concebe o indivíduo como uma ilha, mas como ser social, cuja personalidade é composta também por uma relevante dimensão coletiva.
4.      As restrições aos direitos fundamentais e os interesse públicos
Os direitos fundamentais não são absolutos.
Tem-se entendido que o caráter principiológico das normas constitucionais protetivas dos direitos fundamentais permite ao legislador que, através de uma ponderação constitucional dos interesses em jogo, estabeleça restrições àqueles direitos, sujeitas, no entanto, a uma série de limitações (são os chamados “limites dos limites”).
Na doutrina e jurisprudência brasileira admite-se a realização de restrições a direitos fundamentais operadas no caso concreto, através de ponderações de interesses feitas diretamente pelo Poder Judiciário. Antes de cogitar-se na ponderação, é necessário verificar se, de fato, existe na situação concreta um verdadeiro conflito entre interesse público e privado. Há convergência entre os interesses público e privado, e não colisão.
A ideia da dimensão objetiva dos direitos fundamentais prende-se à visão de que os direitos fundamentais cristalizam os valores mais essenciais de uma comunidade política. O interesse público é composto pelos interesses particulares dos membros da sociedade. De acordo com Gustavo Binenbojm, “muitas vezes, a promoção do interesse público- como conjunto de metas gerais da coletividade – consiste, justamente na preservação de um direito individual, na medida do possível.
Questionamentos:
1)      É possível a restrição de direitos fundamentais visando exclusivamente a tutela de interesses coletivos? Ronal Dworkin e John Rawls respondem negativamente à questão.
2)      A posição privilegiada dos direitos fundamentais morais chega ao ponto de lhes atribuir uma prevalência absoluta e integral sobre outros bens jurídicos, mesmo os revestidos de estatura constitucional, não importando o contexto fático? Resposta de Sarmento: a recusa à possibilidade de qualquer ponderação entre direitos fundamentais e interesses coletivos não parece conciliar-se com a premissa antropológica personalista, subjacente às constituições sociais. A efetivação dos direitos fundamentais demanda a formulação e implementação de políticas públicas pelo Estado. Portanto, parece-nos constitucionalmente possível a restrição de direitos fundamentais com base no interesse público.
3)      Os direitos fundamentais sempre cedem diante dos interesses da coletividade?
A fragilização da força normativa dos direitos fundamentais não seria compatível com regime constitucional que lhes atribui eficácia reforçada, e que coloca num primeiro plano o princípio da dignidade da pessoa humana.
Limites aos direitos fundamentais: diretamente no texto da CF, autorizados pela CF, prevendo a edição de lei restritiva (mas não dá autoriza o legislador a qualquer tipo de limitação. Tem que ter previsão em leis gerais e respeito ao princípio da proporcionalidade em sua tríplice dimensão – adequação, necessidade e proporcionalidade, e não atingimento do núcleo essencial do direito em questão), decorrer de restrições não expressas.
4)      O âmbito de proteção dos direitos fundamentais deve ser desenhado de modo a excluir qualquer tutela jurídica sobre exercícios que contrariem interesses da coletividade?
A admissão de cláusulas muito gerais de restrição de direitos fundamentais – como o da supremacia do interesse público, implica em violação aos princípios democráticos e da reserva de lei, em matéria de limitação de direitos, já que transfere para a Administração a fixação concreta dos limites ao exercício de cada direito fundamental. Essa indeterminação pode também comprometer a sindicabilidade judicial dos direitos fundamentais, por privar os juízes de parâmetros objetivos de controle.
5)      Seria difícil pensar numa limitação mais vaga e indeterminada aos direitos fundamentais do que a proteção do interesse público? Afinal, o que é o interesse público?
Essa supremacia elimina qualquer possibilidade de sopesamento, premiando de antemão, com a vitória completa e cabal, o interesse público envolvido, e impondo o consequente sacrifício do interesse privado contraposto. Incompatível com o princípio da hermenêutica constitucional, que obriga o intérprete a buscar, em casos de conflitos, solução jurídica que harmonize, na medida do possível, os bens jurídicos constitucionalmente protegidos, sem optar pela realização integral de um, em prejuízo do outro. Descompasso com a ordem constitucional brasileira.
O ideal: procura racional de solução equilibrada entre o interesse público e privado implicados no caso.
Ao invés de uma supremacia a priori e absoluta do interesse público sobre o particular, ter-se-ia apenas uma regra de precedência prima facie. Do contrário, fragilizaremos demais os direitos fundamentais, que não são dádivas do poder público, mas a projeção normativa de valores morais superiores ao próprio Estado. Os direitos fundamentais despotam com absoluto destaque e centralidade.
Diante de um conflito, que exija a ponderação, os direitos fundamentais devem preponderar sobre os demais enunciados normativos e normas.

5.      Interesse privados que não constituem direitos fundamentais:
Ocorre que nem todo interesse particular pode ser qualificado como direito fundamental. Direitos fundamentais são apenas alguns interesses especialmente relevantes, relacionados à proteção e promoção da dignidade da pessoa humana, que, pela sua elevada significação, foram postos pela CF acima do poder das instâncias deliberativas ordinárias.
É inadequado falar em supremacia do interesse público sobre o particular mesmo em casos em que o último não se qualifique como direito fundamental. A Administração não deve perseguir os interesses privados dos governantes, mas sim os pertencentes à sociedade. Ao Estado incumbe a obrigação de sopesar os interesses privados legítimos envolvidos em cada caso.
Os direitos fundamentais são protegidos mesmo quando contrariem os interesses da maioria dos membros da coletividade.
A solução para a colisão não é singela. E usar a preferência do princípio do direito públi como superior é não levar a sério os direitos fundamentais.
6.      Observações Finais
Negar a supremacia do interesse público sobre o particular e afirmar a superioridade prima facie dos direitos fundamentais sobre os interesses da coletividade pode parecer para alguns uma postura anti-cívica. No entanto, o civismo que interessa é o do patriotismo constitucional (Habermas), que pressupõe a consolidação de uma cultura de direitos humanos. Não somos súditos do Estado e sim cidadãos. Somos sujeitos da História e não objetos. Requeremos um Estado que respeite profundamente os interesses legítimos do cidadão.