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ORIGEM JUDAICA, ARTÍSTICA, NORDESTINA,
JURÍDICA NO CENTENÁRIO DE CLARICE LISPECTOR E LOURDES RAMALHO
Ezilda Melo[1]
“Há mulheres na vida real que são grandes genitoras de
gerações de ideias, processos, genealogias, criaturas, períodos da sua própria
arte, sempre se tornando mais sábias e se manifestando dessa forma”. Clarissa
Pinkola Estés. In: A ciranda das mulheres sábias
Em dezembro de 2020, em homenagem ao centenário de Clarice
Lispector, 36 autores da área jurídica fizeram nascer a coletânea “Por uma estética jusliterária clariciana:
diálogos entre Direito, Literatura e Arte”. Nesse breve
ensaio, proponho algumas linhas aproximativas entre Clarice Lispector Lourdes
Ramalho, festejada teatróloga paraibana que também completou o centenário ano
passado.
A vida se conta no instante do ocorrido e para além da
memória de que se deixa tocar. Rememorar 100 anos é lembrar, apontar um farol,
um porto, um caminho, uma dimensão, é reflexão, é singularidade, inscrição,
exercício de interpretação. Organizar uma obra jurídica tomando como fio
condutor a literatura de Clarice Lispector para homenageá-la em seu centenário
é, antes de mais nada, um sinal de reconhecimento, seja pela escritora, mulher,
artista, pensadora, intelectual, jornalista, mãe, pessoa, que deixou um legado.
Uma família em fuga do antissemitismo no leste europeu aportou
em Maceió com uma criança nascida em 1920. Clarice, um
dos maiores nomes da literatura brasileira, chegou ao Brasil para fugir da
morte, da perseguição, da marca ancestral de separação da fraternidade entre as
pessoas no mundo. Os fatos marcantes da vida pessoal da escritora giram em
torno de mudanças e deslocamentos, de perseverança e pioneirismo, de textos e
palavras que nos levam à outra dimensão. Viveu 57 e cada década de sua vida
poderia ser retratada em filmes de época que prendem os espectadores do início
ao fim.
Uma escritora sertaneja, que passou parte
de sua vida produzindo sobre a influência das ibéricas, mouras e judaicas[2] no Nordeste, foi Lourdes
Ramalho que nasceu em agosto de 1920, na cidade de Jardim do Seridó, no sertão
potiguar. Ela e Clarice possuem em comum, para além da literatura, e do centenário, a origem judaica. Um
paralelo sobre as fases distintas da entrada dos judeus no Brasil e sua
influência na literatura brasileira, ainda não tem investigação completa,
apesar do trabalho de Regina Igel[3] sobre a produção literária
dos judeus no Brasil nos últimos cem anos, destacando a temática judaica, que
não foi o foco principal da obra de Lourdes Ramalho, nem de Clarice, por
exemplo, já que nenhuma das duas se converteu ao judaísmo.
Lourdes Ramalho investigou sua origem
genealógica e descobriu que seus ascendentes chegaram ainda no século XVII e
praticavam a religião judaica no mais absoluto sigilo, no interior de suas
casas, transmitindo o judaísmo secreta e oralmente, propiciando que se
identifique o mimetismo, o
silenciamento e não o pertencimento dos habitantes do sertão potiguar e
paraibano, herdeiros do judaísmo. Lourdes Ramalho
destacou que no Estado da Paraíba, nasceu a lenda da jovem Branca Dias, que aos
18 anos foi acusada[4]
de judaísmo e queimada pela Inquisição. Apesar da grande
quantidade de obras, a produção de Lourdes Ramalho continua desconhecida do
grande público brasileiro, apesar de valorizada em Portugal e Espanha, o que
por si só é demonstrativo da diferença de recepção das obras produzidas por
mulheres e o silêncio na escrita especialmente quando se fala de um espaço
geográfico discriminado historicamente como é o caso do sertão nordestino, onde
o destaque que se tem, em regra geral, é para a autoria masculina. Para ter
reconhecimento dentro da literatura brasileira não se pode exigir a
masculinidade hetenormativa, a branquitude, as condições econômicas, nem que os
escritores morem e sejam publicados apenas no eixo Rio-São Paulo. Fala-se em
racismo epistêmico misógino e racista. Esse racismo também pode ser visto
dentro de uma vertente geográfica.
Quem fala sobre essa
“clandestinidade”, no Prefácio da obra inédita “Chã dos Esquecidos”, edição
comemorativa do centenário de Lourdes Ramalho, é uma estudiosa de sua obra, a
Professora Valéria Andrade[5]. Diante da necessidade de valorização e
visibilidade da escrita feminina, o referencial literário da escritora Lourdes
Ramalho serve para verificação de formação identitária da mulher sertaneja,
seja a retirante, a cigana, a negra estuprada, as tantas mulheres que possuem
voz, vida, lamúrias, tristezas, reinvidicações. Ao se ampliar o olhar para um feminismo literário que trata das narrativas
das mulheres, de modo que se olhe para a história sobre suas especificidades
existenciais, seus corpos e das violências institucionalizadas sobre elas,
tem-se um alargamento do debate e das fontes de representação sobre os direitos
das mulheres.
E, mais do que isso, entender que
até dentro de pequenos grupos, as mulheres são diversas e quando falamos de
uma, é necessário que nos perguntemos criticamente, assim como nos lembra Sueli
Carneiro, “de que mulheres estamos falando?”. As mulheres sertanejas pobres, negras, da zona rural, ciganas, judias
do sertão são uma pluralidade de mulheres que foram silenciadas, seja pela
escrita dos escritores regionalistas que as enquadraram dentro de dois
arquétipos (santa-pecadora), seja pela própria falta de reivindicação de seus
direitos humanos e isso se encontra dentro de uma leitura histórica dos
direitos das mulheres que tem a inquisição e a expulsão dos cristãos-novos da
Europa como fundante para entender essa formação identitária que a escritora
Lourdes Ramalho apresenta no conjunto de sua obra.
Os estudos sobre a violência de gênero, especialmente
dirigida à mulher, compõem um campo linguístico e narrativo, por contribuírem
para a nominação e intervenção do fenômeno na esfera política.O caráter
simbólico da linguagem no discurso jurídico permite uma interpretação da imagem
social da mulher, sendo a legislação de proteção aos direitos das mulheres, em
âmbito internacional e nacional, documentos que possibilitam informações que
norteiam casos concretos e compõem fundamentação jurídica para condenar ou
absolver o agressor, mas não são suficientes para exterminar o problema da
violência de gênero, da desigualdade de classe e do racismo.
Ao dar destaque ao protagonismo feminino, na escrita das
histórias narradas, o modo como a figura da mulher e como seus direitos, ou a
falta deles, são representados nas obras de Clarice Lispector e de Lourdes
Ramalho, apresenta-se um exercício de dar voz, de resgatar histórias, de
reencontrar fios da origem judaica, e suas perseguições históricas, na formação
do povo brasileiro. O sertão, as nordestinas, estão interligadas nessa dimensão
de uma história mundial que ainda não recebeu a investigação necessária e a
percepção que estamos a falar sobre história dos direitos humanos, desde a
questão da fuga, quanto à questão da perseguição, até chegar ao direito humano
da sobrevivência e de viver com dignidade, que permite, inclusive, a inclusão
cultural, em tantas localidades pobres e desassistidas culturamente, sem
museus, bibliotecas, livrarias, saraus, eventos artísticos, exposições,
concursos, incentivos à arte, sem direito à educação e o combate à violência de
gênero, em cidades que sequer possuem infraestrutura de delegacia da mulher.
Após a leitura dos 19 artigos que compõem o livro-homenagem
à Clarice Lispector, com um olhar jurídico, questiona-se sobre o direito à
igualdade, liberdade, fraternidade, um tripé de direitos reinvidicados desde o
século XVIII. Direitos tão falhos, esparsos, descumpridos, chorosos, famintos,
tristes, injustiçados, calados, silenciados, escondidos. Perceber na escrita de
Clarice esse formigamento sobre a justiça social é reencontro com o humano, é
perceber que a história é muito ampla e que muitos quadros ainda não foram
investigados, pensados, problematizados e resolvidos.
Propor um movimento dentro do direito e arte, mais
especificamente no campo do direito e literatura brasileira, dando evidência à
obra de uma escritora centenária, feitiçeira das palavras, lendária e
apaixonante desde a primeira leitura, é deixar registros da importância da
valorização de nossa história, de nossas produções literárias e culturais; é
resgatar o sentir; é uma procura pelo sentimento do direito.
O Direito é, antes
de tudo, uma produção cultural e social. É na arte que encontramos o sopro da
vida. Do verbo se fez carne, da palavra se faz um itinerário de buscar uma
empatia social que almeja uma sociedade plural e respeitosa. Em um ano tão
difícil para toda a humanidade, como foi o o de 2020, com tantas mortes e
dores, festejar Clarice é valorizar a
importância da literatura enquanto direito das gerações que foram e que virão.
Que a literatura seja esse lastro de propulsões vibrantes em cada ser. Que
Clarice seja lida, relida e que a história das perseguições aos grupos
vulnerados receba alguma reparação. Que viver não seja tão doloroso para grupos
desafortunados historicamente.
Pela construção de uma estética clariciana no direito
brasileiro, esse direito que ainda tem tanto para resgatar e referenciar
mulheres, seja na literatura, na arte, na própria existência. O direito
misógino, racista, classista não cabe mais.
[1] Advogada. Historiadora.
Professora Universitária. Mestra em Direito Público pela UFBA. Organizadora da
obra “Por uma estética jusliterária clariciana: diálogos entre Direito,
Literatura e Arte”, disponível na Amazon. E-mail: ezildamelo@gmail.com
[2] RAMALHO, Maria de Lourdes
Nunes. Raízes ibéricas, mouras e judaicas do Nordeste. João Pessoa:
UFPB/Editora Universitária, 2002, p. 77-78: “durante a ocupação árabe, a
península ibérica abrigou, também, a maior população judaica da Europa (...) E
quando aconteceu a violenta perseguição feita aos judeus, em Portugal, para o
Brasil se encaminhou uma corrente contínua de israelitas, em busca de abrigo.
[3] IGEL, Regina. Imigrantes
judeus, escritores brasileiros: o componente judaico na literatura brasileira.
São Paulo: Editora
Perspectiva. 1997
[4] RAMALHO, Maria de Lourdes
Nunes. Raízes ibéricas, mouras e judaicas do nordeste. João Pessoa:
UFPB/Editora Universitária, 2002, p. 86
[5] ANDRADE, Valéria. Prefácio. Chã dos Esquecidos. Chã dos esquecidos.
[Livro eletrônico]. ∕ Maria de Lourdes Nunes Ramalho; organização e aparato
crítico de: Diógenes Maciel e Valéria Andrade. Campina Grande: EDUEPB, Editora
União, 2020. p. 17: “Assusta-me, sempre, apurar que, diferentemente das outras
autoras suas contemporâneas, naquelas décadas de 1960-70, referidas em estudos
alentados sobre o teatro brasileiro, Lourdes Ramalho continua mantida em
situação ‘clandestina’ no quadro autoral do nosso teatro – inclusive aos olhos
da crítica voltada para os textos escritos por mulheres –, a despeito de seu
percurso, tão longo quanto farto de textos e montagens icônicas. Tenho sempre
chamado atenção para tal situação, pois ela parece ser um desdobramento nocivo
da condição ‘marginal’ dos textos de dramaturgia de autoria feminina no cânone
brasileiro: esta sorte de textos não circula como material impresso, em razão
de uma clara prática discriminatória do mercado editorial. Em outras palavras,
para esta parte de nossa produção literária e teatral, um prejuízo grave da
condição de ‘fora-da-lei’ é não poder adentrar os muros da ‘cidade editorial’,
ou seja, não ser publicado e, portanto, não participar da vida pública e da
própria sociedade.