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Legisladores e intérpretes: quebra de paradigma na interpretação jurídica brasileira? – Um diálogo com Bauman, Nietzsche e Umberto Eco a partir do exemplo da união estável
Legisladores e intérpretes: quebra de paradigma na interpretação jurídica brasileira? – Um diálogo com Bauman, Nietzsche e Umberto Eco a partir do exemplo da união estável – De Andreu Sacramento Luz e Ezilda Melo
Por Andreu Sacramento Luz e Ezilda Melo – 10/03/2016
“A tendência a empregar o teatro
como uma instituição para a formação moral do povo, que no tempo de
Schiller foi tomada a sério, já é contada entre as incríveis
antiguidades de uma cultura superada. Enquanto a crítica chegava ao
domínio no teatro e no concerto, o jornalista na escola, a imprensa na
sociedade, a arte degenerava a ponto de se tornar um objeto de
entretenimento da mais baixa espécie, e a crítica estética era utilizada
como meio de aglutinação de uma sociabilidade vaidosa, dissipadora,
egoísta e, ademais, miseravelmente despida de originalidade.”
(Friedrich Nietzsche: O nascimento da tragédia, op. cit., pp. 135-136)
A Era Moderna definiu-se como reino da
razão e da racionalidade. A referida afirmação encontra seu fundamento
no processo de luta travado entre a razão e as convicções advindas de um
período influenciado pela moralidade cristã e arraigado numa cultura de
pensamentos dogmatizados. O Iluminismo ou “Século das Luzes”, como fora
conhecido, trouxe como objetivo a busca e a ascensão da razão,
asseverando a superioridade da mesma frente às convicções religiosas,
superstições, dentre outros paradigmas do período medieval. Para Bauman
“essa foi a primeira e a mais básica das conceituações a fornecer para a
modernidade sua autodefinição” (BAUMAN.2010.p.157).
Foi considerada também a mais favorável
época para aqueles que elaboravam os conceitos, posicionando-se assim em
um patamar superior, de onde nasciam as correntes positivistas e
dogmáticas da “verdade”, e apontavam os caminhos a se percorrer em busca
da mudança.
Interessante mostrou-se a repercussão
acadêmica, política ou jurídica, enfim, institucionalizada da verdade.
Nessas transversais do mundo, as flexibilizações das instituições
fizeram-se repensar por inúmeras vezes as definições da verdade.
Em uma análise epistemológica do termo “verdade”,
cujas origens remontam-se na construção da vernácula latina,
encontrar-se-á na mitologia cristã a condenação do verídico. Destarte,
os eventuais ciclos que foram elaborados no mundo, dentro de um contexto
de verdades absolutas, ou, como prefere a ciência jurídica, verdade
real dos fatos, mostra-se justificado na construção complexa da busca
pela verdade.
Afinal, alerte-se a título de complementação, que a verdade está na busca dos seus interesses. Quando em As Dores do Mundo,
Arthur Sochepenauer, elenca que a natureza primordial do homem
encontra-se assentada nas relações egoístas que lhe permeia (em
natural), consegue-se compreender com clareza e sem dificuldades que nos
dias de hoje, bem como nos tempos mais remotos, a pura e real
relativização da verdade.
Tem-se, portanto a criação das
conceituações e a caracterização da modernidade. Cumpre salientar, que
próximo ao final do século XIX a ascensão dos conceitos de Razão
Absoluta, ainda apresentava-se com muita confusão dentro a elite
intelectual. Em particular, havia uma busca da materialização da Razão
Absoluta, que por sua vez instaurava-se com certa reserva e lentidão. A
Razão era o veículo de dominação dos conceituadores e, agora frente a
esta confusão tinha-se tal domínio como uma ferramenta distante.
Por sua vez, A Queda do Legislador,
é provocada por um mecanismo que auto se destrói, o que é comum da
modernidade. Frente ao processo alongado da afirmação absoluta, “a
conceituação adquirira um matiz dramático” (BAUMAN. 2010 p. 159),
causando o entusiasmo negativista dos intelectuais, instaurando-se uma
crise e apresentando dificuldades aos intelectuais de prostrarem-se
frente a uma conduta que anteriormente era tida como tradicional, o
papel de conceituar.
Crise na conceituação, crise do
intelectual que dita e afirma os conceitos e verdades. Dar-se assim
vazão a chegada do intelectual como intérprete e não mais como
legislador.
Dentro de uma concepção teológica, como a
tida no período medieval, o dogmatismo da igreja buscava afirmar a
verdade absoluta e inquestionável sobe determinado fato, como por
exemplo, a unidade de Deus. Esse mesmo dogma declina no momento que se
tem a possibilidade dos intelectuais pensarem e debaterem a respeito da
possibilidade, neste caso em concreto, da existência de outros deuses e
formar um panteão politeísta.
Frente a posicionamentos como estes, há
afirmativas de que o Estado está perdendo o seu poder, logo é necessário
afirmar e definir fundamentos imutáveis para que a situação não chegue a
um patamar crítico e irreversível, de forma que Bauman, em “Legisladores e Intérpretes”, nos apresenta a seguinte afirmativa:
A questão é que o Estado não está
necessariamente mais fraco por causa desta falência de autoridade; ele
simplesmente achou modos melhores, mais eficientes de reproduzir e impor
seu poder; a autoridade tornou-se redundante, e a categoria
especializada em manter a reprodução da autoridade tornou-se supérflua
(BAUMAN. 2010. p. 171)
Deste modo não condiz com as vias
racionais de organização política, administrativa, legislativa e
judiciária, afirmar que o Estado está passando por um procedimento de
“falência de autoridade”, haja vista que o pleito corrente é a busca por
alargado crescimento da hermenêutica jurídica, social e legislativa,
não sendo, dessa forma e moldes, um corte a autoridade estatal.
O império da Lei, ou melhor, do
Princípio da Legalidade, teve a sua queda com a ascensão do Estado
Democrático de Direito. Nesse diapasão o material legislativo passou a
ser relativizado, nos viabilizando, no auge da pós modernidade que beira
a sociedade contemporânea, a declaração da falência legal (e não de
autonomia), para a superação da interpretação do vasto campo material,
que encontra-se positivado no ornamento jurídico pátrio.
Encerrando a dialética da expectativa de
novas interpretações, seja na seara legislativa ou constitucional,
Bauman (2010. P. 170) nos salienta da seguinte forma: “O mundo
contemporâneo é impróprio para os intelectuais como legisladores”.
Desta afirmativa, consegue-se extrair o
entendimento de que há uma abertura de caminhos para a ascensão de novas
representações, que vem a ser a possibilidade de aplicação de novas
técnicas.
Verifica-se que na construção do
pensamento moderno, valorizava-se as pessoas que conceituavam, isto é, a
elite dominadora preocupava-se exclusivamente em ditar o conceito do
que era correto ou não. Com a falência da conceituação (por se ter uma
implantação da Razão absoluta de forma retardada), abriu-se espaço para a
crescente presença do intérprete, ou seja, o intelectual agora não é
mais o que dita (legislador) e sim o que interpreta.
A hermenêutica toma um novo rumo e na
Ciência do Direito abre-se uma nova possibilidade, o considerado
“intelectual” que antes se dedicava exclusivamente em escrever ou
advogar em sentido legis, é deposto do seu “cargo”, por ver
crescer os métodos de interpretação utilizados na busca de uma
atualização mais célere do que foi legislado. Nada mais que acompanhar, a
passos paralelos, as exigências legais da sociedade que vive na era da
subjetividade.
Por meio da interpretação que se dar sentido a criação. Eco em “Obra Aberta”,
afirma o sentido que se deve denotar na apreciação da obra. A
interpretação, pessoal, coletiva, está fundada nas influências da
cultura, religião, família dentre outras instituições. Em outra obra
intitulada de Limites da Interpretação, Eco nos salienta que os interesses continuam relacionados à abertura da interpretação embora o foco seja diferente:
Trinta anos atrás (…) eu me
preocupava em definir uma espécie de oscilação ou de equilíbrio instável
entre iniciativa do interprete e fidelidade à obra. No correr desses
trinta anos, a balança pendeu excessivamente para o lado da iniciativa
do intérprete. O problema agora não é fazê-la pender para o lado oposto
e, sim, sublinhar uma vez mais a ineliminabilidade da oscilação. (ECO,
2004, p. XXII)
Logo, quando se fala em Hermenêutica
Jurídica, deve-se perceber que o seu principal objetivo é entender o
direito. Nessa perspectiva, tem-se como foco objetivo da Hermenêutica
Jurídica o entendimento do Direito e como foco subjetivo o sujeito que
interpreta o Direito. Por exemplo, ao se estudar as fontes[1]
formais indiretas (ou mediatas) do direito, sejam elas a doutrina e a
jurisprudência, entende-se como métodos distintos de interpretações de
uma elite intelectual do Direito, neste caso estarão presentes o foco
objetivo (estará interpretando o Direito) e subjetivo (quem o interpreta
são estudiosos do Direito) da Hermenêutica Jurídica.
Destarte, uma parcela de intérpretes do
Direito tem com objeto de interpretação recortes da realidade.
Apresenta-se aqui a figura do magistrado, que como representante do
Estado Juiz deve dar provimento jurisdicional por meio da sentença[2], no processo de conhecimento, para que haja resolvido uma lide (conflito de interesse).
A Sentença redigida pelo magistrado deve
seguir os requisitos essenciais definidos pelo artigo 458 do Código de
Processo Civil, quais sejam: O relatório; os fundamentos de fato e de
direito (motivação); o dispositivo (conclusão). Dentro da exposição de
fato e de direito, que o juiz irá interpretar o Direito e apresentar
para as parte o seu entendimento frente ao litígio. O Estado-Juiz irá
interpretar o direito objetivo, e aplicar as consequências que da
analise ensejar frente ao direito material arguido no processo, que fora
instaurado por meio do direito subjetivo público de ação.
Destarte, amparado por todas as
contribuições elencadas nos parágrafos anteriores, bem como se acostando
à metodologia do amor e nos pensamentos desenvolvidos por Nietzsche,
é-se possível fazer-se uma análise da situação ocorrida no Judiciário
brasileiro no ano de 2011, causando uma revolução no direito
constitucional e civil pátrio, em que fez destacar-se a importância da
Hermenêutica Jurídica e os métodos interpretativos do direito brasileiro
para abonar prerrogativas constitucionais garantidas aos cidadãos.
Utilizando-se de uma prerrogativa a ele
concedida, o Procurador Geral da República encaminhou para o Supremo
Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade[3]
(ADI) nº4277 em conjunto com a ADPF nº132, buscando que fosse feito um
julgamento, observando o recorte da realidade social atual, do artigo
1.723 do Código Civil e artigo 226 § 3º da Constituição Federal que
tratam da composição da união estável.
Com a promulgação do Código de 2002
sedimentou-se o avanço por todos esperado, tanto da doutrina quanto da
jurisprudência, que foi consideração codificada da União Estável.
Esperando que o cenário jurídico brasileiro fosse ficar neutro e
pacificado, começaram a surgir questionamentos da sociedade quanto à
nomenclatura utilizada pelo Código Civil, que segue um entendimento
constitucional (artigo 226), ao afirmar que é reconhecida a união
estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei
facilitar a sua conversão em casamento.
Frente ao exposto questiona-se: Como se
aplica a lei aos casos de união entre pessoas do mesmo sexo, uma vez que
tanto a Constituição, quanto o Código Civil vem definindo que apenas
homes e mulheres constituem-se sujeitos para a formação de família?
A esta resposta Cunha Jr. afirma que:
“A constituição não recusou
reconhecimento à união estável formada entre pessoas do mesmo sexo, a
chamada relação homoafetiva, que, a nosso sentir, tem amparo
constitucional manifesto, em face, basicamente, do princípio da
dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da liberdade de opção sexual
(art. 3º, IV).”
Por sua vez, os positivistas e legalistas, apresentam o entendimento de que:
A interpretação científica é pura
determinação cognoscitiva do sentido das normas jurídicas.
Diferentemente da interpretação feita pelos órgãos jurídicos, ela não é
criação jurídica. A ideia de que é possível, através de uma
interpretação simplesmente cognoscitiva, obter Direito novo, é o
fundamento da chamada jurisprudência dos conceitos, que é repudiada pela
Teoria Pura do Direito. A interpretação simplesmente cognoscitiva da
ciência jurídica também é, portanto, incapaz de colmatar as pretensas
lacunas do Direito, O preenchimento da chamada lacuna do Direito é uma
função criadora de Direito que somente pode ser realizada por um órgão
aplicador do mesmo e esta função não é realizada pela via da
interpretação do Direito vigente. (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito.
São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.250).
Como foi exposto em tela, a visão
positivista de Kelsen não permite que haja uma legitimidade de
interpretação do direito pelos órgãos do Judiciário. Ao seguir este
conceito, devem-se fixar os olhares ao pensamento legislativo engessado
no código, não possibilitando nenhuma interpretação que vise criar um
“direito novo”, ou sanar uma lesão ao direito do outro (também cidadão).
Frente ao avanço da Hermenêutica
Jurídica este pensamento perde total eficácia, pois a ideia da
interpretação preenche a lacuna deixada pelo Legislativo, ficando mais
fácil que o Judiciário adeque o Direito à realidade social, como foi
empregada no julgamento do STF cuja pauta foi à união estável entre
pessoas do mesmo sexo.
Além de adequar o Direito à realidade
social, o STF ao julgar pelas vias interpretativas o assunto em tela,
assegura a toda sociedade os direitos e garantias reservados pela
Constituição, quais sejam a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a
liberdade, e a igualdade. Princípios constitucionais que eram violados,
quando o Estado-Juiz tinha que aplicar o direito tipificado no código.
Tomando como referência os ensinamentos
de Bauman, perceptível se torna a conclusão que aponta para o efeito não
positivo do engessamento do Direito. Em busca da pacificação dos
conflitos sociais e garantia de todos os direitos dos cidadãos
brasileiros, o Direito volve os seus olhares para o recorte social e
busca interpreta-los para melhor se aplicar.
Verificando que não havia harmonia entre
a realidade social na constituição da união estável, o Supremo Tribunal
Federal interpreta a norma tipificada, causando uma revolução no
Direito pátrio, e afirma que como entidade familiar entende-se também os
casais homoafetivos.
Legisladores não acatam a legitimidade
dos intérpretes do Direito. Afirmam que o discurso deve ficar estático,
surtindo efeitos específicos, até que haja um processo legislativo, por
meio de votos que até a década passada não eram revelados para a
sociedade, e que busque revogar o contesto anterior e trajar, com nova
roupagem, o direito atual. Traje formal e indiscutível, refletindo uma
posição privilegiada e elitista. Felizmente a Hermenêutica Jurídica
prega a interpretação correta e coerente do Direito, tendo-se a queda do
legislador que impõe e a ascensão do jurista interpreta. Parafraseando o
título do livro de Umberto Eco, a “Obra é Aberta”; neste sentindo
entende-se como obra a legislação e como correta a interpretação dada
pelo STF em analisar que família é um conceito muito mais amplo do que a
entidade formada por pai, mãe e filho.
Notas e Referências:
[1]Cumpre
salientar que para Kelsen, a norma fundamental (a constituição) é a
fonte primordial do direito, segundo a qual emana todo o ordenamento
jurídico e o mesmo deve respeito.
[2]
“É emitida como prestação do Estado, em virtude da obrigação assumida
na relação jurídico-processual (processo), quando a parte ou as partes
vierem a juízo, isto é, exercem a pretensão à tutela jurídica”. PONTES
DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974, v.V, p395.
[3]Lecionando
sobre Ação Direta de Inconstitucionalidade, Dirley da Cunha Jr. nos
ensina que “cuida-se de uma de uma ação de controle
concentrado-principal de constitucionalidade concebida para a defesa genérica
de todas as normas constitucionais, sempre que violadas por alguma lei
ou ato normativo do poder público. Por isso mesmo é também conhecida
como ação genérica.” (JÚNIOR, Dirley da Cunha. 2012. p. 358).
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2. d. revista e ampliada. São Paulo: Celso Ribeiro Bastos Editor, 1999.
BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e Interpretes: Sobre Modernidade, Pós Modernidade e Intelectuais. Tradução de Renato Aguiar 1ª. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
BARROSO, LUIS ROBERTO. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 3. São Paulo: Saraiva,2001.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Ética Jurídica: Ética Geral e Profissional. 10ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. Rio Grande do Sul: Sergio Antonio Fabris, 1997.
ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2012.
FOUCAULT, Michel. A ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. De Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Mourão. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1994
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 6a edição, 5ª tiragem, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. Tradução de Antônio Carlos Braga. 3ª. ed. São Paulo: Editora Escala, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Trad. PauloCésar de Souza. São Paulo. Companhia das Letras.1998.
SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do Mundo. Rio de Janeiro: EDIPRO, 2013.
VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.
Direito Fundamental à Água? Quando o Brasil vivencia “Vidas Secas” e a água não brota das leis
Direito Fundamental à Água? Quando o Brasil vivencia “Vidas Secas” e a água não brota das leis – De Ezilda Melo e Wendel Machado
Saiu no site da Empório do Direito:
Ezilda Melo e Wendel Machado – 04/03/2016
“Admirava as palavras compridas e
difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas
sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas”.
Graciliano Ramos
Não é novidade para qualquer cidadão
atento, quanto mais para os militantes do Direito, que de um modo muito
amplo a Constituição Federal de Brasil de 1988 traz imediatamente em seu
artigo primeiro, como princípio fundamental do Estado: “a dignidade da
pessoa humana”. Deste mandamento decorre toda uma ramificação de
direitos e garantias que perpassam o texto constitucional e irradiam
para moldar um complexo jurídico capaz de possibilitar o cumprimento do
conteúdo axiológico aí expresso. Assim, encontram estabelecidas as
diversas gerações (ou dimensões) de Direitos Fundamentais que são
caracterizados, nos dizeres de Karl Loewenstein, como “[…] princípios
superiores à ordem jurídica positiva…”. Nesta perspectiva, os direitos
fundamentais são plenamente afetos à própria existência humana,
guardando estrita relação de essência com Direitos Humanos que, como
afirma Dirley Cunha Jr., pretendem conferir “a todos, universalmente, o
poder de existência digna, livre e igual”.
No contexto das Ciências Naturais a
proposição de água como bem indispensável à manutenção da vida humana é
indiscutível. É inteiramente perceptível, até mesmo pelo senso comum,
que sua escassez inviabiliza a existência de vida saudável. Por uma
aplicação de silogismo simples, pode-se concluir facilmente que essa
relevância implica em essencialidade à condição humana e que,
certamente, é um bem que se encontra nesta categoria de direitos
essenciais firmados na dignidade do homem.
“(…) Tinham deixado os caminhos
cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a
lama seca e rachada que escaldava os pés”.
Ainda que se possa chegar a tal
conclusão com tamanha celeridade, beirando a obviedade, o reconhecimento
dessa premissa é envolta em incertezas e controvérsias que se
perpetuaram por muitos anos sem chegar a um consenso pacífico, pois,
seja no campo internacional ou interno, não há a clara e inequívoca
definição da água como direito essencial. Mesmo não havendo menção
expressa, aplicando o conceito de Loewenstein, este direito fundamental
existe e goza de tanta força vinculativa quanto qualquer outro da mesma
categoria. Entretanto, o que aqui se debate não é a letra da
Constituição, mas a defesa desse direito frente às ações e políticas
públicas.
Hodiernamente, o tema voltou a ganhar
relevância pela crise hídrica que incide sobre as várias regiões do
Brasil que convive com a estiagem duradoura, a mesma velha conhecida do
semiárido nordestino desde tempos longínquos. Já nos idos do Império se
debatia a questão de distribuição de águas do Rio São Francisco, sem que
isso também fosse muito além dos debates e de obras não conclusas. A
grande diferença, desta vez, é que há estiagem onde antes havia
abundância: de água e, principalmente, de poder econômico. O problema
então se generaliza: todo o país vivencia “Vidas Secas”.
Não por coincidência, “Vidas Secas” é a opus magna
de Graciliano Ramos, publicada originalmente em 1938. O romance que é
centrado na experiência da seca pela família de Fabiano, segue o
itinerário da desconstrução dos carácteres de humanidade das personagens
frente a um sertão com aridez de solo e de vida. A falta de água é a
própria ausência de vitalidade, de seres que se arrastam pelas
planícies, em que as crianças são destituídas do primeiro elemento
identitário: o nome. Como se houvesse uma forma de coisificação
semovente as crianças não são nomeadas. A vida desta família então se
desprende do senso de humanidade e muito mais do valor da dignidade. Os
caminhos percorridos são “terra sem lei”, onde a única manifestação
estatal é a autoridade policial arbitrária. São seres. Existem apenas
para suas vidas. Estão absortos de um arcabouço social que lhes permita
amparo. Há Direito, mas não há direitos. Mesmo o mínimo existencial é
subvertido. São homens porque há Direito, mas sua fala é reproduzida
através de grunhidos, pois não há direito a voz. Apenas existem. A água
do sertão existe, mas também há a cerca, a propriedade, o limite do
poder estabelecido. Há poder e controle porque há Direito. Direito
sempre há, mas não há defesa do Direito, nem dos direitos. Ainda aí
afora encontramos Fabianos, Sinhas Vitórias, Baleias, e, principalmente
meninos sem nome, em todos os lugares e partes. A realidade narrada no
livro nunca atribuiu topônimo: é universal, pode ser qualquer lugar,
qualquer instante. Não é como um código legislativo que perece; é
a-temporal como as obras-primas são. A arte é eterna, já o direito
legislado é momentâneo, datado, tem prazo de validade.
“(…) Eles estavam perguntadores,
insuportáveis. Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de
saber? Tinha? Não tinha…”
A intertextualidade nos permite observar
que mesmo que a gênese de tal colapso tenha explicações geográficas e
climáticas, a aridez escancara a infertilidade jurídica para a defesa de
virtudes primárias, enquanto se embriaga na mera proliferação de textos
legais. A falta do Direito para além da letra da lei não garante acesso
à água por parte da população. Não basta que haja o elemento natural em
si; há um caráter adjetivo a ser lembrado: água digna, ou seja, de boa
qualidade, potável, própria para o consumo humano em sentido plural.
Aqui se vê que, mesmo com previsão de instrumentos para defesa dos
direitos difusos e coletivos, há de se questionar a efetividade de sua
proteção e que aqueles que deveriam oferecer proteção, são apenas
perpetuadores da situação estabelecida.
Não se pode furtar, também, à percepção
de que, como um bem sujeito a escassez, há um valor econômico intrínseco
e, por isso, está submeto aos ditames da propriedade e do mercado.
Assumir tal acepção aduz à necessidade de formular uma gestão racional
que vise à eficiência, especialmente no que diz respeito à atuação da
Administração Pública em relação à gestão das águas sob sua competência,
afinal eficiência é um dos princípios insculpidos no art. 37 da Carta
Magna. Não é ilógico pensar, então, que há o estrito compromisso do
gestor com os recursos hídricos, do mesmo modo como outros bens por si
geridos, não apenas porque também constitui bem público, mas porque é
essencial à vida. Poderia, sem risco de equívoco, mesmo dizer que há uma
função social da água.
A função social da água é o entendimento
de que esta não pode ser aplicada sem que se tenha em consciência que é
um bem de interesse público e, seu uso indiscriminado e sem parâmetros,
constitui violação à própria sociedade como organismo global. Sua
função social é revestida da universalização do seu acesso, mas ainda
negação à gestão irresponsável para que não seja admitido que ‘cerca’ – a
manifestação do poder dos detentores dos recursos – não provoque a
seca.
“(…) Um dia… Sim, quando as secas
desaparecessem e tudo andasse direito… Seria que as secas iriam
desaparecer e tudo andaria certo? Não sabia…”
Provimento jurídico algum parece ser
capaz de gerar a distribuição hídrica em equilíbrio, isso porque o dever
ser está aquém das necessidades da materialidade ontológica; a
deontologia não se basta em si. Contudo, o dever ser é capaz de mudar a
realidade do ser, isso porque as condutas condicionadas pelas normas são
executadas na realidade sensível. Assim, a questão da seca, é também
questão jurídica, porque as normas jurídicas deveriam ser capazes de
promover e vincular a adoção de posturas determinantes para a promoção
da dignidade da pessoa humana. Em primeiro momento, há a vinculação da
atuação Estatal, já que os Direitos Fundamentais não são meramente
programáticos, são, sobretudo, obrigatórios em ações e política públicas
que os tragam ao campo da vivência material de maneira efetiva. Depois,
porque também é interesse público, ou seja, é a própria sociedade que
consagra a dignidade humana e a ela mesma cabe sua promoção, e nisso
inclui a defesa da água como parte do meio ambiente, mas também como um
direito social, assim como a saúde, o trabalho.
Debater crise hídrica sob essa
perspectiva é perceber que se deve regar o próprio Direito para que
enxergar além das fronteiras das leis; apreender que os Direitos
Fundamentais permanecem porque guardam estrita relação com a existência
humana e que são basilares porque reconhecemos como o mínimo para a
manutenção daquilo que é humano em nós. Debater a água no direito é ter a
noção de que “Vidas Secas” é logo aqui e também, ainda que não somente,
problema jurídico, pois se envolve poder e controle, é jurídico também.
A falta de água no Nordeste[1]
e em outras regiões insere-se perfeitamente numa questão
político-jurídica. Politicamente, o discurso do combate à seca ainda
elege muitos dos representantes populares e, juridicamente, a
Constituição Federal além de garantir esse direito fundamental, deveria
ter criado meio assecuratório de concretização. O Brasil tem grandes
mananciais aquíferos. As pessoas têm o direito de permanecer nas regiões
que se identificam cultural e socialmente. Portanto, a grande batalha
que se deve travar é fazer com o direito à água seja de todos.
Efetivamente, de todos. Juridicamente, portanto, a Constituição Federal
garante o direito à água como um direito fundamental, que deve ser
efetivado[2]. Mas, na prática o estio permanece secando corações e entristecendo o país.
Uma poesia para o tema que pode ser trabalhada em sala de aula:
Ser tão vida seca[3]
Suor, calor,
Cansaço, fome,
Terra árida onde cresce o atraso e o desamor.
Cansaço, fome,
Terra árida onde cresce o atraso e o desamor.
Terra Seca,
Seca Terra,
Vidas Secas,
Secas Vidas.
Vidas secas, como a terra seca
Que seca as vidas.
Seca Terra,
Vidas Secas,
Secas Vidas.
Vidas secas, como a terra seca
Que seca as vidas.
No pingo do meio-dia,
Com o sol escaldante,
A quentura nos consume,
Dentro de um forno ardente e quente,
Capaz de secar nossa última semente.
Com o sol escaldante,
A quentura nos consume,
Dentro de um forno ardente e quente,
Capaz de secar nossa última semente.
Terra Seca,
Seca Terra,
Vidas Secas,
Secas Vidas.
Secas de uma vida
Que secou pelas secas da vida.
Seca Terra,
Vidas Secas,
Secas Vidas.
Secas de uma vida
Que secou pelas secas da vida.
Terra seca que dá risada,
Alegra-se nos pingos que caem da chuva.
E o agricultor fica feliz vendo sua terra molhada,
Sabendo que não vai morrer sua vaca malhada.
Alegra-se nos pingos que caem da chuva.
E o agricultor fica feliz vendo sua terra molhada,
Sabendo que não vai morrer sua vaca malhada.
Terra Seca,
Seca Terra,
Vidas Secas,
Secas Vidas.
Terra Seca que floresce
no orvalho da madrugada.
Seca Terra,
Vidas Secas,
Secas Vidas.
Terra Seca que floresce
no orvalho da madrugada.
Outro artigo relacionado com a temática:
Notas e Referências:
[1]
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes;
prefácio de Margareth Rago. 5ª edição – São Paulo: Cortez, p.343: “O
Nordeste, assim como o Brasil, não são recortes naturais, políticos ou
econômicos apenas, mas, principalmente, construções
imagético-discursivas, constelações de sentido. (…) O Nordeste, na
verdade, está em toda parte desta região, do país, e em lugar nenhum,
porque ele é uma cristalização de estereótipos que são subjetivados como
característicos do ser nordestino e do Nordeste. Estereótipos que são
operativos, positivos, que instituem uma verdade que se impõem de tal
forma, que oblitera a multiplicidade das imagens e das falas regionais,
em nome de um feixe limitado de imagens e falas-clichês, que são
repetidas ad nausem, seja pelos meios de comunicação, pelas artes, seja pelos próprios habitantes de outras áreas do país e da própria região”.
[2]
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos Fundamentais: uma teoria
geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. Ed.
rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.
[3] Poesia de Ezilda Melo.
terça-feira
Hermenêutica Jurídica e utilização do método sistemático no Direito Tributário – Por Ângelo Boreggio Neto e Ezilda Melo
Artigo lançado no Curso Avançado de Direito Tributário Municipal por Ezilda Melo e Ângelo Boreggio
http://emporiododireito.com.br/hermeneutica-juridica-e-utilizacao-do-metodo-sistematico-no-direito-tributario-por-angelo-boreggio-neto-e-ezilda-melo/
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Por Ângelo Boreggio Neto e Ezilda Melo – 16/02/2016
Introdução
“Nas obras, nas palavras: – o homem
não se revela por todo inteiro, põe sempre alguma afetação, alguma
convenção, alguma reserva, muita reticência: pelos seus trabalhos, os
homens nunca se revelam inteiramente.”
Eça de Queirós
Parte-se da Hermenêutica Jurídica e seus
métodos de interpretação, para, em seguida, verificar-se a importância
da interpretação no Direito Tributário; noutro desdobramento, faz-se
análise sobre a necessidade da Reforma Tributária, para, na sequência,
demonstrar-se a importância dos princípios constitucionais e dos
direitos fundamentais para a Hermenêutica Tributária; por fim,
desagua-se, à luz de ensinamentos constitucionais-tributários, no método
sistemático de interpretação.
Em meio a todas essas questões, faz-se
uso de jurisprudências, tanto do Supremo Tribunal Federal, quanto do
Superior Tribunal de Justiça, apontando a tendência hermenêutica destes
Tribunais, bem como analisando os valores que norteiam as Cortes
superiores do país no que se refere à interpretação da norma tributária.
1. Hermenêutica Jurídica
Na Antiguidade Clássica, recorria-se a
Hermes, o mensageiro dos Deuses, pela busca da verdade escondida. Hermes
foi retratado por Homero e por Hesiodo por suas habilidades e
considerado benfeitor dos mortais, portador da boa sorte e também das
fraudes. Autores clássicos também adornaram o mito com novos
acontecimentos. Ésquilo mostrou Hermes a ajudar Orestes a matar
Clitemnestra sob uma identidade falsa e outros estratagemas, e disse
também que ele era o deus das buscas, e daqueles que procuram coisas
perdidas ou roubadas. Seu atributo característico era a ambiguidade,
pois ao mesmo tempo que era mensageiro dos deuses, era também fiel
mensageiro do mundo das trevas. A palavra “hermenêutica” encontre
consentâneos nas palavras “hermeneuein” (interpretar), “hermeneia” (interpretação), “hermeios” (sacerdote do oráculo de Delfos) e “Hermes” (o mensageiro dos deuses, na mitologia antiga ocidental).
O jurista trabalha com a análise do
discurso e busca verdades. FOUCAULT (1996, p.10) nos diz que “o
discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo pelo que se luta, o poder de que queremos nos
apoderar”. Mesclando essa análise com a ideia de ECO sobre a obra
aberta, quando diz que a obra de arte é uma mensagem fundamentalmente
ambígua, uma pluralidade de significados que convivem num só
significante (2012, p.22), pode-se dizer que a interpretação do mundo é
uma atividade de compreensão em todas as áreas do saber, inclusive no
Direito.
Neste sentido, o jurista deve considerar
o ordenamento jurídico dinamicamente, pois a interpretação é que mantém
a vida da lei e das outras fontes do Direito. O intérprete é o
renovador inteligente e cauto, o sociólogo do Direito. O seu trabalho
rejuvenesce e fecunda a fórmula prematuramente decrépita, e atua como
elemento integrador e complementar da própria lei escrita. MAXIMILIANO
(1999, p.30) preceitua que a atividade do exegeta é uma só, na essência,
embora desdobrada em uma infinidade de formas diferentes.
Da impossibilidade de se desvincular a
interpretação do caso concreto, percebe-se claramente que em toda a
interpretação existe criação de Direito. Portanto, a interpretação é uma
escolha entre múltiplas opções; é o ponto de vista prevalecente ou que
decide a questão debatida.
BASTOS (1999, p. 112) entende que a
aplicação do Direito como uma atividade puramente mecânica de subsunção
do fato à norma jurídica correspondente, implica em admitir que os
juízes não passem de meros fantoches manipulados por um ente
supostamente dotado de vontade própria: a lei. Essa formulação
doutrinária, conhecida como teoria da subsunção, ou enquadramento
perfeito da norma ao fato, está baseada na necessidade existente da
segurança jurídica, que é o prévio conhecimento das regras que irão
dispor as diversas relações que surgem na sociedade. Mesmo que a lei
seja incerta, injusta, errônea, para a teoria da subsunção, essa lei
deverá ser aplicada, pois assim evita-se que os juízes possam cometer
erros, além dos já presentes nas leis humanas.
A interpretação de uma lei pode se realizar de vários modos. Pode-se
interpretar a lei, de acordo com MAXIMILIANO (1999, p.35 e ss.),
tomando vários critérios concomitantemente ou em separado, por exemplo,
quanto à fonte (a interpretação pode ser autêntica, jurisprudencial e doutrinária), quanto aos meios adequados para sua exegese (gramatical, lógica, histórica, teleológica e sistemática) e quanto aos resultados da exegese (declarativa, extensiva ou restritiva).
Não se pode ser nem ser subjetivista,
nem objetivista demais. Nesta perspectiva FERRAZ JÚNIOR (2007, p. 295),
esclarece que o objetivismo levado ao extremo é o que decide os
tribunais. Desloca a responsabilidade do legislador, na elaboração do
direito, para os intérpretes. O subjetivismo levado ao extremo favorece
ao autoritarismo ao privilegiar a figura do legislador, pondo sua
vontade em relevo. Dessas colocações, surge um questionamento: como
interpretar a norma?
De acordo com ALEXY (2008, p.59-64), o
conceito de norma não pode ser definido de forma a pressupor a validade e
a existência da norma. Da mesma forma que é possível expressar um
pensamento sem tomá-lo como verdadeiro, tem que ser também possível
expressar uma norma sem classificá-la como válida. Enunciados que têm
por objetivo informar quais normas são válidas devem ser chamados de
enunciados sobre validade normativa.
Para ALEXY (2008, p. 65) normas de
direitos fundamentais são aquelas normas que são expressas por
disposições de direitos fundamentais; e disposições de direitos
fundamentais são os enunciados presentes no texto da Constituição alemã,
e somente esses enunciados.
É também ALEXY (2208, p.85) que trata
sobre os critérios tradicionais para a distinção entre regras e
princípios, quando expressa que, com frequência, não são regra e
princípio, mas norma e princípio ou norma e máxima, que são
contrapostos.
2. Interpretação no Direito Tributário
Vislumbra-se que o legislador do Código
Tributário Nacional preocupou-se com a forma de interpretação de matéria
tributária, visto as peculiaridades da disciplina, e logrou êxito em
trazer ao mundo jurídico as próprias normas de hermenêutica do Direito
Tributário. Os artigos 107 a 112, assim como o artigo 118, são as normas
gerais de Direito Tributário que o legislador tratou do tema da
interpretação tributária.
Em que pese a determinação legal, não se
atém ao hermeneuta tributário apenas a letra fria da lei, pelo
contrário é necessário que sinta o caso fático e observe a pertinência
de cada método de interpretação, conforme a aplicação de casos
semelhantes e valores envolvidos, para a construção de uma solução
(PAULSEN, 2008, p. 124).
Evidente que por se tratar de matéria
que regula as relações contribuinte e Estado, as peculiaridades da
disciplina se fazem gritar, já que o tratamento não será igual para as
relações entre dois particulares ou ainda entre dois entes públicos,
denotando, portanto vulnerabilidade do contribuinte. É claro que não
significa ser interpretado diversamente dos outros ramos do direito,
todavia a interpretação será pautada pelas especialidades da matéria
tributária.
No ramo do direito tributário, há que
atentar o hermeneuta para não confundir princípio com conceitos
jurídicos e não jurídicos, como por exemplo, econômicos e financeiros,
posto que são imprestáveis no plano jurídico (BECKER, 2007, p. 337).
Com isso, o arcabouço principiológico
tributário deve ser respeitado e levado sempre em consideração no ato
hermenêutico, observando então os princípios da legalidade,
anterioridade, capacidade contributiva, isonomia, uniformidade
geográfica, irretroatividade de lei tributária, vedação do confisco e
liberdade de tráfego.
O objetivo do direito tributário é a
regulamentação de tributos, que tem por finalidade essencial a
manutenção dos cofres públicos, no sentido de dar condições financeiras
ao Estado de praticar a gestão pública, com ênfase em atender as
necessidades sociais. Contudo, necessário observar e equalizar o direito
do contribuinte em sua propriedade privada e a observância dos
princípios supramencionados.
Nesse sentido, ATALIBA (2002, p. 127)
expressa de modo preciso que as diversas situações pré-jurídicas trazem,
apesar de não justificar, situações das mais diversas, que produzem
decisões disparatadas de nossos Tribunais.
Portanto, o que se busca na
interpretação tributária é a justeza da decisão, a humanização da norma,
a aproximação da letra fria da Constituição ao calor da sociedade. Isso
porque, em determinados casos, ocorrem divergências de pensamentos
direcionando para soluções diversas.
Isso porque, o valor do direito é a
justiça, cuja essência vai muito além da mera matemática ou simples
ações humanas, e sim como a junção efetiva destes atos, proporcionando
assim o bem comum (REALE, 2000, p. 272).
HABERLE (2002, p. 12-13), neste sentido,
esclarece que é necessário colocar a questão sobre os participantes do
processo da interpretação de uma sociedade fechada dos interpretes da
Constituição para uma interpretação constitucional pela e para uma
sociedade aberta e propõe a seguinte tese: no processo de interpretação
constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais,
todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo
possível estabelecer-se um elemento cerrato ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição.
Interpretação constitucional tem sido,
até agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tomam
parte apenas os interpretes jurídicos vinculados às corporações e
aqueles participantes formais do processo constitucional. A
interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da
sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte desta sociedade.
Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais
abertos quanto mais pluralistas for a sociedade.
Ainda, não se pode desprezar no ato
hermeneuta a tradição do intérprete, seu conceitos e preconceitos, seus
valores influenciaram indubitavelmente na compreensão, assim como não se
pode fechar os olhos a dimensão histórica do processo, sendo assim
utópica a atividade axiologia neutra. (PIMENTA, 2005, p. 184 e 185).
Uma boa proposta de solução a tal
impasse hermeneuta é a participação social de modo mais constante nas
decisões polêmicas, como o convite mais constante ao amicus curiae, representando
a vontade de parte da população e seus argumentos, de modo que possa
ser analisado e levado em consideração pelo interprete.
HABERLE (2002, p. 14), indica-se como
interpretação apenas a atividade que, de forma consciente e intencional,
dirige-se à compreensão e à explicitação de sentido de uma norma (de um
texto). Para uma pesquisa ou investigação realista do desenvolvimento
da interpretação constitucional, pode ser exigível um conceito mais
amplo de hermenêutica: cidadãos e grupos, órgãos estatais, o sistema
público e a opinião pública representam forças produtivas de
interpretação; eles são intérpretes constitucionais em sentido lato,
atuando nitidamente, pelo menos, como pré-intérpretes. Todo aquele que
vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é,
indireta, ou até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. Experts e ‘pessoas interessadas’ da sociedade pluralista também se convertem em intérpretes do direito estatal.
3. Reforma Tributária e Hermenêutica
É notório que o arcabouço
jurisprudencial da Suprema Corte Brasileira, após a nova ordem jurídica
humanística apresentada pela Constituição de 1988, bem como pela
sucessiva alteração no corpo humano do órgão, denota a evidente
alteração nos padrões sociais, bem como a aproximação do direito ao
calor popular.
De acordo com VELJNOVSKI (1994, p. 40), os
seres humanos respeitarão a lei apenas se for de seu interesse fazê-lo,
e, de qualquer forma, eles tentarão minimizar as desvantagens que a
norma legal lhes impõe.
Neste contexto, é imperioso asseverar
que o Direito Tributário carece de profundas reformas desde há muito, e o
que existe são apenas projetos infindáveis que nunca conseguiram ser
aprovados, talvez até por falta de vontade política, ou por não existir
consenso, ou ainda pela ausência de oportunidade e conveniência.
SILVA (2010, p. 21-23), defende a ideia
de que os direitos fundamentais têm um conteúdo essencial é algo que vem
sendo sustentado pela doutrina e pela jurisprudência brasileiras com
frequência cada vez maior. Que direitos, em geral, contenham um conteúdo
mínimo pode ser algo intuitivo, que decorre da própria noção de que,
sem a garantia desse mínimo, a garantia do próprio direito seria de
pouca valia.
Independente da razão fundante, o fato é
que a ausência de reforma na estrutura da lei tributária resta à
hermenêutica dos julgadores superiores aplicar a principiologia
constitucional, de modo a melhor proteger o contribuinte.
É ainda SILVA (2010, p.25) que fala que a
preocupação dos legisladores constituintes com um conteúdo essencial
dos direitos fundamentais é normal sobretudo – mas não exclusivamente –
em constituições promulgadas após períodos autoritários ou totalitários,
como é o caso de todas as constituições aqui mencionadas (com exceção,
claro, da constituição europeia). Mas mais importante ainda que
reconhecer esse fenômeno constituinte é examinar qual é o seu
significado para a dogmática dos direitos fundamentais.
Importante asseverar que o hermeneuta
deve ter a sensibilidade de observar a norma interpretada com uma
postura de dinamismo, já que a renovação e interação se faz patente na
mesma, em razão da mutação dos acontecimentos sociais. (MELO, 2008, p.
228).
AMARAL (2010, p. 05) define a Constituição Federal de 1988 como prolixa e casuística e diz: “se o Direito é a ciência do dever-ser, parece intuitivo que o domínio de suas regras seja o poder-ser”.
Explica que em razão de determinadas causas dados preceitos já nascem
fadados à ineficácia: a intrínseca deficiência do texto; a manifesta
ausência de condições materiais para seu cumprimento; impossibilidade de
judicialização do bem ou interesse que se pretende tutelar.
Para GALDINO (2010, p.26), os direitos
fundamentais devem ser entendidos como princípios, e “os princípios
cumprem função normativa, eventualmente criando situações jurídicas
subjetivas para os respectivos destinatários”. Este mesmo autor admite
que de modo algum o estudo das normas jurídicas e de suas correlações
lógicas pode esgotar o objeto da ciência do Direito. No que, não existe
uma, mas várias ciências jurídicas. Então, a norma busca influenciar o
comportamento das pessoas. O Direito não apenas descreve a realidade
“antes, busca através de sua força normativa, amoldá-la a valores, que
não se confundem com a própria norma”. E, no caso de direitos
fundamentais, não apenas tende a influir em comportamentos particulares,
mas também no do Estado, principalmente.
GALDINO (2010, p. 18) afirma que as
normas não se confundem com os dispositivos: “inexiste correspondência
biunívoca entre dispositivos e normas”. O que torna patente a polissemia
que ocorre também nesse aspecto. Pois “para que haja norma jurídica nem
mesmo é necessário que haja dispositivo positivado”, em casos como
princípios implícitos e normas costumeiras.
Distingue, também, GALDINO (2010, p.
19-20) as normas em: aclaratórias, normas de organização e,
notadamente, normas de sobre-direito. No que as primeiras nada teriam de
efeitos jurídicos, apenas complementar e esclarecer outros
dispositivos, Já as de organização são as que regulam a organização dos
poderes do Estado. As de sobre-direito seriam as normas que estabelecem
critérios para aplicação de outras normas (também jurídicas), a exemplo
da LINDB, que seria verdadeira norma geral de aplicação das normas
jurídicas, regulando aplicação das normas e afastando antinomias. Tais
normas seriam materialmente neutras, apresentando critérios como o
temporal.
Ocorre que em diversas ocasiões
verifica-se que as normas não recebem a melhor interpretação por parte
do STF, por tal razão é imperioso uma releitura das normas tributárias,
de modo a alargar a sua aplicação em razão da importância de uma
proteção mais forte ao contribuinte.
4. Princípio da Unidade da Constituição e da Proporcionalidade
Sobre o princípio da unidade da
constituição CANOTILHO (1998, p.1097) preceitua: o “princípio da unidade
da constituição ganha relevo autônomo como princípio interpretativo
quando com ele se quer significar que a constituição deve ser
interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos)
entre as suas normas. Como ponto de orientação, guia de discussão e
fator hermenêutico de decisão, o princípio da unidade obriga a
considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os
espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a
concretizar (…). Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas
constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como
preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e
princípios”. Portanto, diante do princípio da unidade da constituição,
percebe-se que é um moderno princípio de interpretação constitucional.
O princípio da proporcionalidade, por
sua vez, é o grande propulsor da hermenêutica constitucional aplicada
nas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal. Em matéria tributária
o STF pauta-se pela organização de suas decisões sempre fundadas na
principiologia constitucional, não apenas nos princípios específicos
tributários como legalidade, anterioridade, capacidade contributiva,
irretroatividade, mas também e de modo enfático, os princípios gerais
como razoabilidade, proporcionalidade e segurança jurídica.
Neste viés, sempre importante lembrar
que segurança jurídica é a alma do próprio direito, fundamenta-se nos
ideais de igualdade e certeza, bem como deriva do estado democrático de
direito (ATALIBA, 1985, p. 145 a 155).
A aplicação do princípio da
proporcionalidade em aplicação da norma tributária traz a ideia de
compor os conflitos de interesses sociais com a observância dos meios
adequados e não lesivos sobremaneira a uma das partes. O Estado que
figura na lide exacional como parte autora, deve utilizar de meios
comedidos e legais no ato da cobrança de tributos, por outro lado, a lei
deve ser interpretada de modo que garanta ao contribuinte não ser
vilipendiado em seu direito de propriedade e dignidade.
Assim, o princípio da proporcionalidade
enquanto instrumento de hermenêutica, visa solucionar a lide,
reverenciando mais um dos princípios gerais, buscando desobedecer o
menos possível dos demais, harmonizando com isso os princípios
constitucionais em conflito, em nome da paz social.
A aplicação da proporcionalidade em
matéria tributária tem ainda que observar as questões que se referem à
dicotomia interesses públicos versus interesses privados.
Durante muito tempo, toda a doutrina brasileira foi uníssona em afirmar a
supremacia do interesse público sobre o interesse privado.
Modernamente, vozes dissonantes dão mostra de que o princípio da
supremacia do interesse público sobre o particular tem que ser
reanalisado tendo como base os direitos fundamentais. Um paradigma,
portanto, questionável. SARMENTO (2005, p. 97) acha difícil pensar numa
limitação mais vaga e indeterminada aos direitos fundamentais do que a
proteção do interesse público.
É ainda de SARMENTO (2005, pg. 99) a
ideia de que a supremacia elimina qualquer possibilidade de sopesamento,
premiando de antemão o interesse público envolvido, e impondo o
consequente sacrifício do interesse privado contraposto. Portanto,
totalmente incompatível com o princípio da hermenêutica constitucional,
que obriga o intérprete a buscar, em casos de conflitos, solução
jurídica que harmonize, na medida do possível, os bens jurídicos
constitucionalmente protegidos, sem optar pela realização integral de
um, em prejuízo do outro. Sendo assim, a supremacia do interesse público
sobre o privado está em total descompasso com a ordem constitucional
brasileira. Portanto, o que fazer?
Uma possível solução já foi proposta por
SARMENTO (2005, pg. 101) ao afirmar que se deve procurar uma solução
racional e equilibrada entre o interesse público e privado implicados no
caso. E, ao invés de uma supremacia a priori e absoluta do interesse público sobre o particular, ter-se-ia apenas uma regra de precedência prima facie.
Do contrário, fragiliza-se demais os direitos fundamentais, que não são
dádivas do poder público, mas a projeção normativa de valores morais
superiores ao próprio Estado. Sendo assim, fica evidente que os direitos
fundamentais despotam com absoluto destaque e centralidade no atual
Estado Democrático de Direito.
Como bem assevera COSTA (2009, p. 59 e
60), a aplicação do princípio da proporcionalidade tem como objetivo a
harmonia entre a arrecadação fiscal e a pontual observância dos
princípios constitucionais tributários, representando os direitos dos
contribuintes.
Desta feita, a proporcionalidade traz
uma nova visão de hermeneuta, solucionando conforme os direitos humanos
os conflitos capciosos enfrentados em tribunais espalhados pelo país,
com ênfase nas questões tributárias, que tradicionalmente eram julgadas
pelo poderio Estatal.
Mister ressaltar que o princípio da
proporcionalidade é princípio fundamental em nosso ordenamento jurídico
aplicável a todas as áreas, apontado como divisor de águas no direito
moderno.
Nota-se que o juiz ao aplicar a norma
tributária constitucional, deverá verificar o reflexo social da mesma a
ser atingida e observando o interesse coletivo (COSTA, 2009, p. 157).
É sempre possível aplicá-lo de modo
paralelo com outro especial princípio que é o da razoabilidade. Tal
princípio visa evitar ações arbitrárias, assim socialmente inaceitáveis.
É de importância extrema em face da validade das medidas do estado que
ferem exercício de direitos individuais. (PONTES, 2000, p. 78 a 80).
Sua aplicação conjunta na hermenêutica
de normas tributárias propicia o ideal do estado democrático de direito,
com ótica social, respeitados os direitos individuais, coletivos e
difusos.
5. Hermenêutica Tributária e os Direitos Fundamentais
O processo de alteração no “pensar” o
direito teve como marco histórico basilar a necessidade da observância
dos direitos e garantias fundamentais, previstos no artigo 5º da
Constituição Federal como o centro de qualquer discussão jurídica no
país, assim, a constitucionalização do direito é irreversível.
Nessa vereda, o princípio-mãe da
Constituição Federal de 1988, que revolucionou a ordem jurídica
definitivamente no Brasil, especialmente no que tange a hermenêutica, é o
princípio da dignidade humana. Com esta nova diretriz, os tribunais,
especialmente os superiores, passaram a pautar suas decisões na essência
deste princípio, resvalando em todos os ramos do direito, portanto
também no direito tributário.
Nesse ínterim, imperioso destacar que o
Supremo Tribunal Federal possui várias decisões com inclinação a
equiparar os princípios tributários a direitos fundamentais.
Dentre as decisões, destaca-se a ADI
939-7/DF, que imputa ao princípio constitucional da anterioridade a
força intransponível de cláusula pétrea, e com isso apenas permitindo
sua modificação com a própria revogação da Constituição como um todo, já
que vivemos em um sistema rígido de modificações do texto
constitucional. Verbis:
(…)
2. A Emenda Constitucional n. 3, de
17.03.1993, que, no art. 2º, autorizou a União a instituir o I.P.M.F.,
incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no parágrafo 2°
desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica “o art. 150,
III, b e VI”, da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes
princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros): 1. – o
princípio da anterioridade, que e garantia individual do contribuinte
(art. 5º, art. 60, §4°, inciso IV e art. 150, III, “b” da Constituição);
2. – o princípio da imunidade tributária recíproca (que veda a União,
aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de
impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que e
garantia da Federação (art. 60, par.4., inciso I,e art. 150, VI, a, da
C.F.);
(…)
Tal entendimento amplia o rol do artigo
60, §4º, da CF/88, todavia percebe-se o ideal da hermenêutica do STF,
pois a realidade é que os princípios constitucionais tributários, apesar
de não estarem expressos como cláusulas pétreas, em sua essência
protegem sempre algum elemento pétreo, assim sua revogação enfraqueceria
o direito protegido pelo manto pétreo.
No caso em debate, verifica-se que o
princípio da anterioridade visa proteger o contribuinte da fúria
arrecadatória fiscal, especialmente concede ao contribuinte o mínimo de
aviso antecedente pela criação ou majoração de carga tributária, com
isso o princípio da segurança jurídica, ou da não-surpresa, está
veladamente assegurado.
Conforme abalizada posição de CARRAZZA
(in MARTINS, 2006, p.111) por trás do simples princípio da
anterioridade, encontramos a noção de segurança jurídica, evitando que
do dia para a noite o contribuinte seja surpreendido por mais uma
exigência fiscal, sem tempo hábil de preparação Quanto à evolução da
hermenêutica tributária no órgão máximo do judiciário brasileiro é
patente. Outra situação que o STF demonstrou está atento à
principiologia fundamental da Constituição, foi no caso do processo
administrativo fiscal, em que sempre foi obrigatório no Brasil o
pagamento de 30% para a admissibilidade de recurso administrativo.
Tal entendimento, em razão da repetição da administração, transformou-se na Súmula Vinculante nº 21, in verbis:
É INCONSTITUCIONAL A EXIGÊNCIA DE
DEPÓSITO OU ARROLAMENTO PRÉVIOS DE DINHEIRO OU BENS PARA ADMISSIBILIDADE
DE RECURSO ADMINISTRATIVO.
Ocorre que o constituinte traz como
direito fundamental claro, o direito de petição, o livre acesso ao
judiciário e o duplo grau de jurisdição. Ainda, a Constituição Federal
de 1988 equipara o processo judicial ao processo administrativo,
aplicando a ambos a mesma base principiológica.
Portanto, a exigência de 30% do valor
para ingressar com recurso administrativo, segundo a hermenêutica do
STF, fere o direito de petição, o livre acesso à justiça e impede o
duplo grau de jurisdição, declarando a Suprema Corte a
inconstitucionalidade da referida cobrança.
POSNER (2010, p. 61), esclarece que ao
ser favorecida uma parte por uma decisão, a outra parte é prejudicada. O
problema é esse: em que nos baseamos para tomar uma decisão que
favorece uma das partes? A sugestão do economista é um algoritmo
técnico: avaliemos todas as vantagens e desvantagens em dinheiro para as
duas partes e minimizemos os custos conjuntos ou, então, o que redunda
no mesmo, maximizemos a soma dos benefícios líquidos.
De acordo com GALDINO (2005, p.243) o
Direito é considerado como mais uma engrenagem no complexo mecanismo de
alocação de recursos na sociedade. Neste sentido, as normas jurídicas em
geral, muito especialmente as normas concretas, e notadamente as
decisões judiciais, devem ter em vista – como critério mesmo da decisão –
a máxima eficiência.
Nesta seara, tantas outras decisões
superiores de importância, que deixamos para discutir em outros
trabalhos, porém necessário aceitar que precisamos avançar muito ainda,
especialmente para o direito alcançar a evolução social.
6. Interpretação Sistemática no Ordenamento Jurídico Brasileiro
Neste último ponto do artigo usa-se o
método de interpretação sistemático como forma de demonstrar a
importância da interpretação constitucional para o direito tributário. O
texto constitucional que se faz interpretação é o art.151, III: é
vedado à União instituir isenções de tributos da competência dos
Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios.
Doutrinariamente, encontra-se, por
exemplo, em COELHO (1999, p. 548), uma análise interpretativa sobre o
art. 151, III, CF, no sentido de esclarecer que o Constituinte de 1988
não está limitando a competência do Estado brasileiro para concluir
acordos tributários que envolvam gravames estaduais e municipais, mas
apenas proibindo, na ordem jurídica interna, a isenção heterônoma e
ditatorial que já existiu na Constituição de 1967.
Jurisprudencialmente, trazemos julgado
do Superior Tribunal de Justiça, oriundo do Recurso Especial nº
90.781-PE, com o seguinte posicionamento:
Tributário. Isenção. ICMS. Tratado
Internacional. 1. O sistema tributário instituído pela CF/88 vedou a
União Federal de conceder isenção a tributos de competência dos Estados,
do Distrito Federal e Municípios (art. 151, III). 2. Em consequência,
não pode a União firmar tratados internacionais isentando o ICMS de
determinados fatos geradores, se inexiste lei estadual em tal sentido.
3. A amplitude da competência outorgada à União para celebrar tratados
sofre os limites impostos pela própria Carta Magna. 4. O art. 98, do
CTN, há de ser interpretado com base no panorama jurídico imposto pelo
novo Sistema Tributário Nacional. 5. Recurso Especial improvido. (DOU
20/10/97, p.52.977, rel. Min. José Delgado).
Portanto, percebe-se que há um
entrechoque de interpretações, sejam doutrinárias ou jurisprudenciais,
privilegiando a importância de dispositivos constitucionais sempre em
detrimento de outros mandamentos também de natureza constitucional. Se,
de um lado, há a possibilidade de a União conceder isenções heterônomas
pela via dos tratados, baseando-se na disposição contida no artigo 21,
inciso I. Por outro, é também juridicamente defensável a ideia de que a
vedação imposta à União aplica-se a situações indistintas, portanto
tanto internamente, quanto externamente, ou seja, tanto na ótica
nacional, quanto na internacional.
ÁVILA (2205, p. 15) diz que o importante
não é saber qual a denominação mais correta desse ou daquele princípio.
O decisivo, mesmo, é saber qual é o modo mais seguro de garantir sua
aplicação e sua efetividade.
Na tentativa de resolucionar as
antinomias, a questão deve ser enfocada sob o aspecto material da
competência outorgada às entidades componentes do Sistema Federativo
brasileiro. Posto isto, sem ser de outra forma, no aspecto material da
competência atribuída pelo inciso I, do artigo 21, tem-se que a vedação
imposta pela letra da Constituição, no artigo ora analisado, ocorre no
sentido de proibir que seja instituída norma isentiva de tributos
estaduais ou municipais pela União. Em assim sendo, afasta-se possíveis
antinomias surgidas da interpretação/aplicação das normas
constitucionais. Reforça-se, neste sentido, a corrente hermenêutica que
considera que a União pode veicular isenção de tributos estaduais e
municipais através de tratados, porém, considerado como indispensável a
participação dos demais entes federados.
Sendo assim, está-se diante de um estudo
hermenêutico tributário que faz vir a lume o método de interpretação
sistemático como forma de dirimir a questão. A decidibilidade é uma
necessidade no Direito e os métodos de interpretação são necessários na
interpretação tributária, juntamente com o uso da doutrina, da
jurisprudência e dos princípios gerais do Direito.
Conclusão:
A Hermenêutica Tributária deve ter por
base a Constituição Federal e seus princípios, seja quanto a tributos
federais, estaduais, distritais ou municipais. A iluminação da essência
do Estado Democrático de Direito e a preocupação com a evolução do
padrão de pensamento da sociedade, também são nortes interpretativos
fundamentais.
Diante do explanado, insta frisar que se
defende o uso do pluralismo metodológico, da hermenêutica
constitucional, da tópica, da retórica e da jurisprudência dos valores,
que são hodiernamente fundamentais para a doutrina do Direito Tributário
Nacional, contrariamente ao estrito positivismo jurídico na
Hermenêutica Jurídica.
A importância do Direito reside no
objetivo maior da lei, que é buscar o justo. A partir dessas colocações,
parte-se para constatações importantes: inexiste uma Hermenêutica
Tributária, como ramo autônomo da Hermenêutica Jurídica, e neste
sentido, inexiste também uma Hermenêutica Tributária Municipal; e na
resolução dos casos que envolvem Tributos Municipais é essencial que se
faça uso da mais moderna Hermenêutica Constitucional.
Desta forma surge no âmbito jurídico a
plena necessidade da aplicação dos princípios constitucionais da
razoabilidade, proporcionalidade, bem como dos direitos fundamentais
como ponto de partida da Hermenêutica Tributária, que surge como
tendência de interpretação do STF.
Isso porque busca a Corte Suprema
Brasileira humanizar a letra fria da lei tributária, concedendo na
interpretação da mesma, um caráter social, ainda que seja em seu
reflexo.
A interpretação da lei tributária pelos
tribunais superiores, sob a ótica dos direitos fundamentais, também
ocorre pela busca da plenitude do Estado Democrático de Direito,
conquistado apenas com o respeito a integridade principiológica e
axiológica da Constituição.
Ainda, a necessidade da Reforma
Tributária se faz presente para atualizar a legislação, com vistas aos
anseios sociais e ao impacto da legislação tributária na sociedade,
tendo como norte o arcabouço jurisprudencial superior.
Notas e Referências:
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AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e Escolha. Critérios Jurídicos para Lidar com a Escassez de Recursos e as Decisões Trágicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
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ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o “princípio da supremacia do interesse
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ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2005.
BARROSO, Luís Roberto. O Estado contemporâneo, os direitos fundamentais e a redefinição da supremacia do interesse público (Prefácio). In: Sarmento, Daniel (org). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
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COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988 – Sistema Tributário. Rio de Janeiro: Editora Forense. 2006.
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a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. contribuição para a
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______________ (Org). Temas de Interpretação do Direito Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
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Artigo dos Professores Ezilda Melo e Ângelo Boreggio
foi publicado no Curso Avançado de Direito Tributário Municipal,
Coordenado por Saulo Medeiros da Costa Silva e Arthur Cesar de Moura
Pereira e pode ser comprado no seguinte endereço eletrônico: http://www.amazon.com/AVAN%C3%87ADO-DIREITO-TRIBUT%C3%81RIO-MUNICIPAL-Portuguese-ebook/dp/B01AYOANY4
segunda-feira
Costuras entre “O Quinze”, de Rachel de Queiroz, e “Quede água?”, de Lenine: cem anos de solidão e de guerra do direito à água no Brasil
Texto publicado originalmente no Empório do Direito: http://emporiododireito.com.br/costuras-entre-o-quinze-de-rachel-de-queiroz-e-quede-agua-de-lenine-cem-anos-de-solidao-e-de-guerra-do-direito-a-agua-no-brasil-por-ezilda-melo/
A primeira mulher a ocupar uma cadeira
na Academia Brasileira de Letras, Rachel de Queiroz, nasceu na cidade de
Fortaleza, no Ceará, neta de José de Alencar. “O Quinze” foi publicado
pela primeira vez em 1930 quando a autora contava com apenas 20 anos de
idade. De lá para cá essa obra ganhou notoriedade e entrou na edição
comemorativa de número cem, tendo, nesta edição especial da Editora José
Olympio, o Prefácio de Nélida Piñon.
“O Quinze” entrou para a História da
nossa Literatura mostrando o grande embate entre o homem e a natureza,
descrevendo situações trágicas e comoventes de um povo que sofre pela
falta de água: o povo do sertão brasileiro. Descreve a triste marcha do
retirante Chico Bento e sua família, saindo do sertão de Quixadá[1]
a pé, tentando percorrer milhares de quilômetros para chegar ao
Amazonas, sem receber nenhum tipo de assistencialismo social. Trata
também do amor irrealizado de Conceição, professora benfeitora e
defensora dos direitos humanos, e Vicente.
Brasil, um país de grande extensão de
terras e conhecido mundialmente por suas reservas naturais
hidrográficas. No entanto, nem todo o território brasileiro tem um clima
propenso às chuvas. A caatinga, vegetação nativa, do sertão nordestino
muito difere, por exemplo, da vegetação do litoral, do Pantanal, dos
Pampas ou da Amazônia. As plantas que compõem a paisagem sertaneja, como
a jurema, a oiticica, o pau d´arco, a aroeira, o umbuzeiro, o juazeiro,
dentre outras, são fortes e ensinam resignação porque secas pungentes
não as dilaceram: esperam meses, anos até que a chuva caia e floresçam
novamente.
Muitas civilizações se constituíram à
margem de rios, como por exemplo, a egípcia. Nas cidades do sertão
nordestino é comum um açude ou rio ser o principal motivo daquela cidade
crescer. Prova disso, por exemplo, é o Açude Itans da cidade de Caicó[2]
no Rio Grande Norte. Na atual seca no Nordeste Brasileiro, esta de
2015, a realidade dos sertanejos mudou muito em relação à seca de 1915,
numa visão comparativa de dois momentos históricos distintos. Hoje, não
se vê o sertanejo abandonando a terra e emigrando para outras áreas por
causa da seca. O sertanejo quer continuar na sua terra, pois é onde tem
suas raízes históricas e culturais. No entanto, há uma necessidade
imensa que o Estado reconheça a importância dos mananciais de água e
crie possibilidades dos sertanejos não sofrerem sem abastecimento[3] de água nos períodos de longas estiagens.
Albuquerque Júnior[4],
um dos referenciais para a discussão da identidade do que se entende
por nordestino, como também para discutir o problema da falta de água
no Nordeste, mostra que as regiões do nosso país foram inventadas como
antagônicas e excludentes. Nos anos 20-30 do século passado viu-se a
construção de um lugar de hegemonia para o Sul-Sudeste[5] e de inferioridade para o Nordeste.
A falta de água no Nordeste insere-se
numa questão política e jurídica. Politicamente, o discurso do combate à
seca ainda elege muitos dos representantes do Legislativo e do
Executivo, e juridicamente, a Constituição Federal garante o direito à
água como um direito fundamental, que deve ser efetivado[6].
O problema da falta da água era
exclusivamente do sertão do Nordeste, hoje se estende para vários
lugares do país, inclusive São Paulo. Ou seja, em cem anos as alterações
climáticas e a falta de cuidados ambientais fizeram com que uma área
rica em mananciais de água passasse por problemas que eram tidos como
exclusivamente dos nordestinos. O direito à água é de todos. Porém, como
diria Lenine, em seu mais recente trabalho, Carbono, cheio de
preocupações ambientais: “Quede água?[7].
Espera-se que a leitura da letra da música abaixo sirva para refletir
sobre um problema de todos os brasileiros e não somente dos sertanejos
da Caatinga e mais que isso, espera-se mudanças para que daqui a cem
anos a história seja melhor:
A seca avança em Minas, Rio, São Paulo
O Nordeste é aqui, agora
No tráfego parado onde me enjaulo
Vejo o tempo que evapora
Meu automóvel novo mal se move
Enquanto no duro barro
No chão rachado da represa onde não chove
Surgem carcaças de carro
O Nordeste é aqui, agora
No tráfego parado onde me enjaulo
Vejo o tempo que evapora
Meu automóvel novo mal se move
Enquanto no duro barro
No chão rachado da represa onde não chove
Surgem carcaças de carro
Os rios voadores da Iléia
Mal desaguam por aqui
E seca pouco a pouco em cada veia
O Aquífero Guarani
Assim do São Francisco a San Francisco
Um quadro aterra a Terra
Por água, por um córrego, um chovisco
Nações entrarão em guerra
Mal desaguam por aqui
E seca pouco a pouco em cada veia
O Aquífero Guarani
Assim do São Francisco a San Francisco
Um quadro aterra a Terra
Por água, por um córrego, um chovisco
Nações entrarão em guerra
Quede água? Quede água?
Quede água? Quede água?
Agora o clima muda tão depressa
Que cada ação é tardia
Que dá paralisia na cabeça
Que é mais do que se previa
Algo que parecia tão distante
Periga, agora tá perto
Flora que verdejava radiante
Desata a virar deserto
Quede água? Quede água?
Agora o clima muda tão depressa
Que cada ação é tardia
Que dá paralisia na cabeça
Que é mais do que se previa
Algo que parecia tão distante
Periga, agora tá perto
Flora que verdejava radiante
Desata a virar deserto
O lucro a curto prazo, o corte raso
O agrotóxico, o negócio
A grana a qualquer preço, petro-gaso
Carbo-combustível fóssil
O esgoto de carbono a céu aberto
Na atmosfera, no alto
O rio enterrado e encoberto
Por cimento e por aslfalto
O agrotóxico, o negócio
A grana a qualquer preço, petro-gaso
Carbo-combustível fóssil
O esgoto de carbono a céu aberto
Na atmosfera, no alto
O rio enterrado e encoberto
Por cimento e por aslfalto
Quede água? Quede água?
Quede água? Quede água?
Quando em razão de toda a ação humana
E de tanta desrazão
A selva não for salva, e se tornar savana
E o mangue, um lixão
Quando minguar o Pantanal e entrar em pane
A Mata Atlântica tão rara
E o mar tomar toda cidade litorânea
E o sertão virar Saara
Quede água? Quede água?
Quando em razão de toda a ação humana
E de tanta desrazão
A selva não for salva, e se tornar savana
E o mangue, um lixão
Quando minguar o Pantanal e entrar em pane
A Mata Atlântica tão rara
E o mar tomar toda cidade litorânea
E o sertão virar Saara
E todo grande rio virar areia
Sem verão, virar outono
E a água for commoditie alheia
Com seu ônus e seu dono
E a tragédia da seca, da escassez
Cair sobre todos nós
Mas sobretudo sobre os pobres outra vez
Sem terra, teto, nem voz
Sem verão, virar outono
E a água for commoditie alheia
Com seu ônus e seu dono
E a tragédia da seca, da escassez
Cair sobre todos nós
Mas sobretudo sobre os pobres outra vez
Sem terra, teto, nem voz
Quede água? Quede água?
Quede água? Quede água?
Agora é encararmos o destino
E salvarmos o que resta
É aprendermos com o nordestino
Que pra seca se adestra
E termos como guias os indígenas
E determos o desmate
E não agirmos que nem alienígenas
No nosso próprio habitat
Quede água? Quede água?
Agora é encararmos o destino
E salvarmos o que resta
É aprendermos com o nordestino
Que pra seca se adestra
E termos como guias os indígenas
E determos o desmate
E não agirmos que nem alienígenas
No nosso próprio habitat
Que bem maior que o homem é a Terra
A Terra e seu arredor
Que encerra a vida aqui na Terra, não se encerra
A vida, coisa maior
Que não existe onde não existe água
E que há onde há arte
Que nos alaga e nos alegra quando a mágoa
A alma nos parte
A Terra e seu arredor
Que encerra a vida aqui na Terra, não se encerra
A vida, coisa maior
Que não existe onde não existe água
E que há onde há arte
Que nos alaga e nos alegra quando a mágoa
A alma nos parte
Para criarmos alegria pra viver
O que houver para vivermos
Sem esperanças, mas sem desespero
O futuro que tivermos
Quede água? Quede água?
Quede água? Quede água?
O que houver para vivermos
Sem esperanças, mas sem desespero
O futuro que tivermos
Quede água? Quede água?
Quede água? Quede água?
Notas e Referências:
[1]
QUEIROZ, Rachel. O Quinze. 100 ª edição. Rio de Janeiro: Ed. José
Olympio, 2015.p.124: “Iam para o desconhecido, para um barracão de
emigrantes, para uma escravidão de colonos… Iam para o destino, que os
chamara de tão longe, das terras secas e fulvas de Quixadá, e os
trouxera entre a fome e mortes, e angústias infinitas, para os conduzir
agora, por cima da água do mar, às terras longínquas onde sempre há
farinha e sempre há inverno…”
[2]
Cidade que ficou conhecida, dentre outras coisas, pela pesquisa de
Villa Lobos sobre o cancioneiro popular brasileiro, em refrãos já
cantados por Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Alceu
Valença, Zé Ramalho: “Ó, mana, deixa eu ir ó, mana, eu vou só ó, mana,
deixa eu ir para o sertão do Caicó. Eu vou cantando com uma aliança no
dedo eu aqui só tenho medo do mestre Zé Mariano Mariazinha botou flores
na janela pensando em vestido branco véu e flores na capela”. Cidade de
Santana, dos bordados, da carne de sol e das pessoas hospitaleiras.
[3]
http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2015/07/caern-divulga-funcionamento-de-rodizio-de-agua-em-20-cidades-do-rn.html
[4]
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes;
prefácio de Margareth Rago. 5ª edição – São Paulo: Cortez, p.343: “O
Nordeste, assim como o Brasil, não são recortes naturais, políticos ou
econômicos apenas, mas, principalmente, construções
imagético-discursivas, constelações de sentido. (…) O Nordeste, na
verdade, está em toda parte desta região, do país, e em lugar nenhum,
porque ele é uma cristalização de estereótipos que são subjetivados como
característicos do ser nordestino e do Nordeste. Estereótipos que são
operativos, positivos, que instituem uma verdade que se impõem de tal
forma, que oblitera a multiplicidade das imagens e das falas regionais,
em nome de um feixe limitado de imagens e falas-clichês, que são
repetidas ad nausem, seja pelos meios de comunicação, pelas artes, seja pelos próprios habitantes de outras áreas do país e da própria região”.
[5]
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes;
prefácio de Margareth Rago. 5ª edição – São Paulo: Cortez, p.55: “O
autor vai, ao mesmo tempo, reafirmando a imagem que já possuía do
Nordeste, por meio de leituras anteriores e, em contraponto, construindo
uma imagem par ao Sul. Ele chama atenção para o próprio momento de
invenção daquele espaço, com a mudança de designação de Norte para
Nordeste e insiste em qualifica-lo depreciativamente”.
[6]
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos Fundamentais: uma teoria
geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. Ed.
rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.
[7] Música de Lenine e Carlos Rennó. Pode ser acessada: http://www.vagalume.com.br/lenine/quede-agua.html#ixzz3oCS1i5jU
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