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terça-feira

Reflexões de Nietszche sobre o Dionisíaco


«A alma que tem a mais longa escada
e mais ao fundo pode descer,
a alma de maior amplitude, que mais extensamente
em si pode correr, errar e vaguear, a de maior necessidade,
que com prazer se precipita no acaso, a alma que é, que se
entrega ao devir,
a que tem vontade e ânsia
e nestas quer ainda mergulhar,
a que foge de si mesma, que a si mesma se recupera
nos mais amplos círculos, a alma mais sábia,
e que a loucura com toda a doçura convence,
a que mais a si mesma se ama, em que todas as coisas
têm o seu fluxo e refluxo,

a sua baixa-mar e preia-mar.»
In: Ecce Homo

sábado

Jack Balkin, o bandido e o mocinho: o final não é feliz.

Jack Balkin, o bandido e o mocinho: o final não é feliz.
                                                                Ezilda Melo[1]
 
No texto "The 'Bad Man', the Good, and the Self-Reliant", Jack Balkin, nos convoca a refletir sobre quem é o homem mau, o bandido, o criminoso, sobre quem é o homem bom e o auto-suficiente.
Como Professor de Direito Constitucional da Yale Law School, Balkin nos convida a indagar sobre a teoria jurídica e os seus conceitos ambíguos, que tem um conteúdo velado, dissimulado, que precisa de uma desconstrução, decomposição ou desmontagem, apontando para a necessidade de uma reconstrução contextualizada.
 
Neste sentido, quem é o homem mau? Aparentemente, é o criminoso. Peguemos o exemplo do assaltante do ônibus 174 no Rio de Janeiro. O rapaz de pré-nome Sandro ficou conhecido quando fez passageiros reféns por um longo período de tempo, e teve a ação deflagrada por vários erros sequenciados da polícia e seu aparato estatal. Esse rapaz, antes de ser o bandido da história, teve um passado indigno, onde sequer ouviu a expressão "dignidade da pessoa humana", tão bem quista no universo teórico da nossa constituição e da doutrina jurídica moderna. Fazendo uma análise de quem foi Sandro, podemos fazer um breve resumo da seguinte forma: ainda criança, filho de pai desconhecido, teve a mãe assassinada na sua frente aos seis anos de idade. Morador de rua, escapou da Chacina da Candelária no Centro do Rio de Janeiro. Como tantos outros moradores de rua, que assolam nossos país, que passam seus dias vagando em busca de uma sobrevivência animalesca, cometeu vários furtos e roubos, e também usava crack. Sandro é uma espécie natural de um processo de estrutura de organização social, que se baseia em classes, a observar pelos dados fornecidos pelo IBGE, que nos classifica a partir da renda per capita.
Nosso Estado só lembra de Sandro quando ele comete crime. Ele só não foi para a cadeia, porque morreu dentro do carro da polícia. No entanto, não nos surpreendamos, espécime igual a Sandro vai direto para a cadeia, um lugar construído para esse tipo de pessoa. Quem mais vai para a cadeia no Brasil? É só visitar um presídio: a realidade está lá, nua e crua.
Hoje, a moderna teoria do Direito Penal, nos fala sobre a co-culpabilidade do Estado. E não é que é verdade? Claro. Carnelutti, em "As Misérias do Processo Penal", nos esclarece que: "todos os homens possuem incrustados em si o germe do bem e do mal, e o desenvolvimento de um ou de outro depende, em muito do tratamento que recebem ao longo da vida". Alguém dúvida? Em que pese a força que a sociedade exerce na formação institucional de nosso ser, que inicia seu processo de construção ainda no seio familiar, cada um de nós tem uma natureza, uma lei do ser. Em razão disso, Balkin rejeita a afirmação consagrada do que é o homem mau, de que o homem é bandido, pura e simplesmente, como um conceito dado. Ele rejeita essa metáfora baseando-se na convicção de que para compreender a lei, também temos de compreender as diferentes variedades do caráter humano e suas motivações. Neste sentido, o que é que Balkin traz de novidade? Ele desconstrói o lugar-comum da marginalidade. Ele desconstrói o estereótipo de homem mau e nos faz verificar se, de fato, a exemplo de Sandro, ele é um homem bandido e criminoso?
 
Balkin vai mais longe. Desconstrói o lugar do homem bom, baseando-se em Thoreau, afirma que "o único lugar para o genuinamente 'homem bom' é na cadeia". Verificando que da espécie humana, clarificam-se indivíduos de várias faces, ele nos fala dos modelos de homens: aqueles são covardes, corajosos, conformistas, rebeldes, e tantos outros, independentemente do fato de que a natureza de tudo é socialmente construído. Visões consagradas de que o legislador é um homem bom, é totalmente rechaçada por Balkin. Ele nos fala, justamente, o contrário: os homens maus vão promulgar leis perversas como instrumentos de dominação dos outros.
 
E Balkin vai além e nos fala do homem auto-suficiente, que não é apenas o indivíduo criminoso e egoísta, mas também pessoas como Thoreau, que decide violar a lei no interesse de um bem maior. Portanto, Balkin, questiona o lugar consagrado do legislador e diz mais: a lei pode e deve ser violada. Os motivos ensejadores dessa violação são: motivos ímpios ou insensíveis; violação em razão da coragem de levantar-se para que o resto da população saiba que a lei é injusta; e violação da lei porque a julgam incompatível com seus olhos, com seu modo de ser.
 
Nessa desconstrução, pergunto-me: Sandro não é mau? Nossos legisladores é que são?
Responda.
 
 
 


[1] Advogada. Historiadora.  Professora de Direito da Faculdade Ruy Barbosa e da Faculdade Social da Bahia. Mestranda em Direito Público - UFBA. Blog: www.ezildamelo.blogspot.com. Twitter: @ProfEzildaMelo
 
 
 
 

sexta-feira

Colóquio Direito e Arte - uma nova forma de pensar o Direito


“Interesses Públicos versus Interesses Privados: desconstruindo a supremacia do interesse público”, organizado por Daniel Sarmento.

Um resumo que fiz que de um texto muito interessante e que usei na Seleção do Mestrado da UFBA 2012.2:
 “Interesses Públicos versus Interesses Privados: desconstruindo a supremacia do interesse público”, organizado por Daniel Sarmento.
Um conjunto precioso de textos que procuram revigorar o estudo do direito administrativo em um momento em que ele vive uma crise de identidade. O velho Estado burocrático já não seduz o espírito, nem realiza seu papel.
Prefácio: O Estado contemporâneo, os Direitos Fundamentais e a Redefinição da Supremacia do Interesse Público - Luís Roberto Barroso-UERJ
1) Resumo do livro: os textos aqui apresentados questionam o paradigma tradicional do direito administrativo, expresso na existência de uma supremacia do interesse público sobre o interesse privado.
2) o Estado ainda é protagonista
Trajetória pendular do Estado ao longo do século XX:
- Liberal: com funções mínimas, em uma era de afirmação dos direitos políticos e individuais;
- social: após o 1/4, assumindo encargos na superação das desigualdades e na promoção dos direitos sociais;
- neoliberal (na virada do século): concentrando-se na atividade de regulação, abdicando da intervenção econômica direta, em um movimento de desjuridicização de determinadas conquistas sociais;
O Estado ainda é a grande instituição do mundo moderno.
Superados os preconceitos liberais, a doutrina publicista reconhece o papel indispensável do Estado na entrega de prestações positivas e na proteção frente à atuação abusiva dos particulares.
A presença do Estado em uma relação jurídica exigirá, como regra geral, um regime jurídico específico, identificado como de direito público.
Em um Estado democrático de Direito não subsiste a dualidade cunhada pelo liberalismo, contrapondo Estado e sociedade. O Estado é formado pela sociedade e deve perseguir os valores que ela aponta.
POS-POSITIVISMO, CENTRALIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A ONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO
A dogmática jurídica brasileira sofreu nos últimos anos, o impacto de um conjunto novo e denso de ideias, identificadas sob o rótulo genérico de pós-positivismo ou principialismo. Trata-se de um esforço de superação do legalismo estrito, característico do positivismo normativista, sem recorrer às categorias metafísicas do jusnaturalismo.
Nele se incluem, dentre outros: a formação de uma nova hermenêutica constitucional, o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana  e a Reaproximação do Direito e da Ética.
A passagem da CF para o centro do sistema jurídico.  A principal manifestação da preeminência normativa da CF consiste em que toda ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu crivo.
Toda interpretação jurídica é também constitucional.
Qualquer operação de realização de direito envolve a aplicação direta ou indireta da CF. Direta, quando uma pretensão se fundar em uma norma constitucional; e indireta, quando se fundar em norma infraconstitucional, por duas razões:
1) antes de aplicar a norma, o intérprete deverá verificar se ela é compatível com a CF, porque, se não for, não poderá fazê-la incidir;
2)ao aplicar a norma, deverá orientar seu sentido e alcance à realização dos fins constitucionais.
SENTIDO E ALCANCE DA NOÇÃO DE INTERESSE PÚBLICO NO DIREITO CONTEMPORÂNEO
Iremos utilizar uma distinção fundamental, de origem italiana, e pouco disseminada na doutrina e jurisprudência brasileira:
1)      Interesse Público Primário: é a razão de ser do Estado e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar, que são interesses de toda sociedade. Interesses gerais da coletividade. Desfruta de hierarquia porque não é passível de ponderação. Ele é o parâmetro da ponderação, porque consiste na melhor realização possível da vontade constitucional, dos valores fundamentais que ao intérprete cabe preservar ou promover.
2)      Interesse Público Secundário: é o da pessoa jurídica de direito público que seja parte em uma determinada relação jurídica – quer se trate da U-E-DF-M ou das suas autarquias. Interesses particulares que o Estado possui. Pode ser identificado como o interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas. Jamais desfrutará de supremacia a priori e abstrata em face do interesse particular.
3)      Na colisão entre interesse público primário e secundário: caberá ao intérprete proceder à ponderação adequada, á vista dos elementos normativos e fáticos relevantes para o caso concreto. O interesse público primário, consubstanciado em valores fundamentais como justiça e segurança, há de desfrutar de supremacia em um sistema constitucional democrático.
4)      Na colisão entre o interesse público consubstanciado em uma meta coletiva e o interesse público primário que se realiza mediante a garantia de um direito fundamental: o intérprete deverá observar dois parâmetros: a dignidade humana e a razão pública.
Exemplos de colisão: liberdade de expressão x manutenção de padrões mínimos de ordem pública; direito de propriedade x um sistema justo e solidário no campo; propriedade industrial x proteção da saúde; justiça x segurança.
Razão Pública: importa em afastar dogmas religiosos ou ideológicos e utilizar argumentos que sejam reconhecidos como legítimos por todos os grupos sociais. Consiste na busca de elementos constitucionais essenciais e em princípios consensuais de justiça, dentro de um ambiente de pluralismo jurídico. O interesse público primário não se identifica com posições estatistas ou antiestatistas.
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana: sintetiza-se na máxima kantiana segundo a qual cada indivíduo deve ser tratado como um fim em si mesmo. Pretende evitar que o ser humano seja reduzido à condição de meio para a realização de metas coletivas ou de outras metas individuais. Exemplo: se determinada política representa a concretização de importante meta coletiva, mas implica a violação da dignidade humana de uma só pessoa, tal política deve ser preterida.
Em um Estado Democrático de Direito, assinalado pela centralidade e supremacia da CF, a realização do interesse público primário se consuma, muitas vezes, pela satisfação de determinados interesses privados. Por exemplo: assegurar a integridade física de um detento, preservar a liberdade de expressão de um jornalista, prover à educação primária de uma criança são, inequivocamente, formas de realizar o interesse público, mesmo quando o beneficiário for uma única pessoa privada.
O interesse público se realiza quando o Estado cumpre satisfatoriamente o seu papel, mesmo que em relação a um único cidadão.
Resumo do texto “Interesses Públicos versus Interesse Privados na perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional, de Daniel Sarmento.
1.      Introdução
Exposição de fatos: o presente estudo volta-se para análise dos conflitos entre interesses públicos e privados no ordenamento jurídico brasileiro.
Objetivos:
1)      Mostrar, com aportes da filosofia constitucional e da teoria dos direitos fundamentais, que o chamado princípio da supremacia do interesse público sobre o particular não constitui critério adequado para a resolução destas colisões;
2)      Demonstrar que a cosmovisão subjacente ao princípio em debate apresenta indisfarçáveis traços autoritários, que não encontram respaldo numa ordem constitucional como a brasileira, em cujo epicentro axiológico figura o princípio da dignidade da pessoa humana.
3)      Sugerir caminhos alternativos mais adequados à ordem constitucional brasileira e mais consentâneos com os princípios humanistas a ela subjacentes.
A doutrina nacional, a exemplo de Celso Antonio Bandeira de Mello, Hely Lopes Meirelles, Fábio Medina Osório atribui importância capital na definição do regime jurídico-administrativo. Tal princípio é empregado para justificar uma série de prerrogativas detidas pela Administração Pública. Deste princípio decorre a verticalidade das relações travadas entre Administração Pública e administrados, caracterizada pelo desequilíbrio sempre em favor do Estado. Classificação muito usual nos manuais de IED também.
Vozes autorizadas vêm se levantando na doutrina para contestar a existência do princípio em pauta: Daniel Sarmento, Humberto Ávila, Ricardo Lobo Torres, Gustavo Binenbojm,  Alexandre dos Santos Aragão, Paulo Ricardo Shier, Marçal Justen Filho.
Por que? Não só porque divisamos uma absoluta inadequação entre o princípio da supremacia do interesse público e a ordem jurídica brasileira, como também pelos riscos que sua assunção representa para a tutela dos interesses fundamentais. Parece-nos que o princípio em discussão baseia-se numa compreensão equivocada da relação entre pessoa humana e Estado, francamente incompatível com o leitmotiv do Estado Democrático de Direito, de que as pessoas não existem para servir aos interesses públicos ou à sociedade política, mas, ao contrário, estes é que se justificam como meios para a proteção e promoção dos direitos humanos.
Acrescente-se a isso a absoluta indeterminação do conceito de interesse público, por não se ter uma noção homogênea de bem comum ou de vontade geral. Neste quadro, a profunda indeterminação semântica do conceito pode permitir às autoridades públicas que o manuseiem as mais perigosas malversações.
O interesse público periga tornar-se o novo figurino para a ressurreição das “razões de Estado”, postas como obstáculos intransponíveis para o exercício de direitos fundamentais.
Porém, na análise do tema é recomendada redobrada cautela:
1)      De um lado, a subordinação dos direitos individuais ao interesse coletivo pode ser um perigo para totalitarismos;
2)      De outro, a desvalorização total dos interesses públicos diante dos particulares pode conduzir à anarquia e ao caos geral.
No Brasil, temos costumes políticos e administrativos ainda anacrônicos, que tem dentre as suas mais perniciosas disfunções a confusão perene entre o público e o privado, caracterizada pela gestão da res publica por agentes estatais como se fosse privada.
2.      Público Privado no Passado e no Presente
Uma das grandes dicotomias sobre as quais se erigiu o pensamento político e social foi exatamente a distinção entre público e privado. Esta clivagem deu origem, por exemplo, a clássica summa diviso, que desdobra o Direito em Público e Privado.
Objetivos desse item:
2.1. Demonstrar que as fronteiras entre o público e o privado são extremamente móveis e instáveis, e que a prioridade atribuída a cada um dos elementos do par também oscila ao sabor das mutações políticas e cosmovisivas.
2.2. Comprovar que esta dicotomia não traduz critério legítimo para solução dos conflitos de interesses surgidos na sociedade contemporânea.
De acordo com Nelson Saldanha, com a bela metáfora, público e privado seriam o jardim e a praça.
Ele faz uma análise histórica dos três critérios (prevalência do interesse, natureza das relações jurídicas e subjetivo) utilizados para demarcar essa divisão.
Ao longo da história, o pêndulo tem oscilado no sentido da priorização ora da dimensão pública da vida humana, ora da privada:
Grécia Antiga: dava-se importância à vida pública do cidadão, através da sua participação política na definição dos destinos da sua comunidade;
Idade Média: opera-se uma completa inversão. Renascimento: individualismo
Estado Moderno: na sua feição absolutista, a relação entre público e privado torna-se mais complexa e já implicava no predomínio da autoridade pública sobre a vontade dos particulares.
Estado Liberal: delineia-se uma separação mais nítida entre as esferas pública e privada. Tratava-se de limitar juridicamente o poder do Estado em prol da liberdade dos governados. Durante esse período, o Código Civil desempenhou, nos países de tradição jurídica romano-germânica, o papel de uma espécie de constituição da sociedade. Era inegável, a prioridade axiológica do privado em detrimento do público.
Welfare State, no século XX, assistiu-se a uma crescente intervenção do Estado nos mais diversos domínios. A Era da Descodificação. Neste contexto, a proteção das liberdades privadas é relativizada.
Final do Século XX – crise do Estado Social, percebeu-se um movimento de retorno do pêndulo em direção ao privado.  O Estado, antes visto como agente redentor das classes desfavorecidas e racionalizador da economia, passa a ser associado no imaginário social à ineficência, à burocracia excessiva, ao desperdício. Fuga do D. Administrativo para o Direito Privado.
Globalização: fragilizou o Estado. Neste contexto, os poderes privados se fortaleceram, sobretudo as grandes empresas transnacionais. Lex Mercatoria x  Direito produzido pelas fontes tradicionais do Estado. Retrocesso nos níveis de proteção às populações carentes proporcionados pelos direitos sociais.
Neste contexto, as fronteiras entre público e privado estão mais nebulosas. Se, por um lado, o Direito Público se privatiza, por outro não anula a publicização do Direito Privado. Trata-se de processo de progressiva constitucionalização. Este fenômeno, a partir da CF/88, significa a imposição de uma releitura das normas e institutos do D. Privado filtrados a partir da axiologia constitucional, diante do reconhecimento de que a CF não representa apenas a norma básica do Estado, mas a ordem jurídico-fundamental da comunidade. Nasce a necessidade de revisitação de vetustas categorias civilísticas, como propriedade, posse, contrato, família. Consolida-se o reconhecimento da incidência dos direitos fundamentais no campo das relações privadas.
A doutrina e jurisprudência hoje proclamam que, para bem desempenharem o seu papel de proteção e promoção da dignidade da pessoa humana, devem eles vincular também os particulares. A autonomia privada é também uma dimensão relevante da dignidade humana.
Temos ainda o terceiro setor, que é público, mas não estatal. A exemplo das ONG´s, associações de moradores, entidades de classe e outros movimentos sociais.
Portanto, a clivagem público/privada torna-se por demais singela para explicar o atual cenário, em que há múltiplos espaços da vida humana, pautados por lógicas diversas.  Parece-nos necessária a manutenção e até mesmo a solidificação de determinadas fronteiras entre público e privado. Daí a importância da consagração constitucional do direito de privacidade e de direitos fundamentais de liberdade.
O critério público/privado não é útil par resolução de conflitos de interesse que se estabeleçam numa sociedade aberta e democrática, seja pela imprecisão e indeterminação intrínseca, seja pelo reconhecimento de que ambas dimensões são igualmente importantes para realização existencial da pessoa, e é a pessoa, e não o Estado, o valor-fonte do ordenamento jurídico, na feliz expressão de Miguel Reale.
3.      Pessoa, Sociedade e Constituição
Há compatibilidade da ideia de supremacia do interesse público sobre o privado com o conceito de pessoa que foi acolhido pela CF/88.
A afirmação da supremacia do interesse da coletividade sobre aqueles pertencentes a cada um dos seus componentes pode ser justificada a partir do organicismo (teoria que concebe as comunidades políticas como uma espécie de todo vivo. O organismo superior é o Estado. Revela-se totalmente incompatível com o princípio da dignidade da pessoa humana)  e do utilitarismo (uma das mais importantes teorias morais da modernidade, doutrina segundo a qual a melhor solução para cada problema político-social é sempre aquela apta a promover em maior escala os interesses dos membros da sociedade. Reconhece a igualdade intrínseca entre todas as pessoas. É uma concepção ética consequencialista. No entanto, o utilitarismo não trata adequadamente os direitos fundamentais como direitos situados acima dos interesses da maioria).  Já a tese da supremacia incondicionada dos direitos individuais sobre os interesses da coletividade assenta-se sobre o individualismo (a primazia axiológica é o indivíduo).
A prevalência há de ser aferida mediante uma ponderação equilibrada dos interesses públicos e privados, pautada pelo princípio da proporcionalidade, baseando-se no personalismo (afirma a primazia da pessoa humana sobre o Estado e qualquer entidade intermediária, e reconhece no indivíduo a capacidade moral de escolher seus projetos e planos de vida. Par o personalismo é absurdo falar em supremacia do interesse público sobre o particular, mas também não é correto atribuir-se primazia incondicionada aos direitos individuais em detrimento dos interesses da coletividade).
O personalismo não concebe o indivíduo como uma ilha, mas como ser social, cuja personalidade é composta também por uma relevante dimensão coletiva.
4.      As restrições aos direitos fundamentais e os interesse públicos
Os direitos fundamentais não são absolutos.
Tem-se entendido que o caráter principiológico das normas constitucionais protetivas dos direitos fundamentais permite ao legislador que, através de uma ponderação constitucional dos interesses em jogo, estabeleça restrições àqueles direitos, sujeitas, no entanto, a uma série de limitações (são os chamados “limites dos limites”).
Na doutrina e jurisprudência brasileira admite-se a realização de restrições a direitos fundamentais operadas no caso concreto, através de ponderações de interesses feitas diretamente pelo Poder Judiciário. Antes de cogitar-se na ponderação, é necessário verificar se, de fato, existe na situação concreta um verdadeiro conflito entre interesse público e privado. Há convergência entre os interesses público e privado, e não colisão.
A ideia da dimensão objetiva dos direitos fundamentais prende-se à visão de que os direitos fundamentais cristalizam os valores mais essenciais de uma comunidade política. O interesse público é composto pelos interesses particulares dos membros da sociedade. De acordo com Gustavo Binenbojm, “muitas vezes, a promoção do interesse público- como conjunto de metas gerais da coletividade – consiste, justamente na preservação de um direito individual, na medida do possível.
Questionamentos:
1)      É possível a restrição de direitos fundamentais visando exclusivamente a tutela de interesses coletivos? Ronal Dworkin e John Rawls respondem negativamente à questão.
2)      A posição privilegiada dos direitos fundamentais morais chega ao ponto de lhes atribuir uma prevalência absoluta e integral sobre outros bens jurídicos, mesmo os revestidos de estatura constitucional, não importando o contexto fático? Resposta de Sarmento: a recusa à possibilidade de qualquer ponderação entre direitos fundamentais e interesses coletivos não parece conciliar-se com a premissa antropológica personalista, subjacente às constituições sociais. A efetivação dos direitos fundamentais demanda a formulação e implementação de políticas públicas pelo Estado. Portanto, parece-nos constitucionalmente possível a restrição de direitos fundamentais com base no interesse público.
3)      Os direitos fundamentais sempre cedem diante dos interesses da coletividade?
A fragilização da força normativa dos direitos fundamentais não seria compatível com regime constitucional que lhes atribui eficácia reforçada, e que coloca num primeiro plano o princípio da dignidade da pessoa humana.
Limites aos direitos fundamentais: diretamente no texto da CF, autorizados pela CF, prevendo a edição de lei restritiva (mas não dá autoriza o legislador a qualquer tipo de limitação. Tem que ter previsão em leis gerais e respeito ao princípio da proporcionalidade em sua tríplice dimensão – adequação, necessidade e proporcionalidade, e não atingimento do núcleo essencial do direito em questão), decorrer de restrições não expressas.
4)      O âmbito de proteção dos direitos fundamentais deve ser desenhado de modo a excluir qualquer tutela jurídica sobre exercícios que contrariem interesses da coletividade?
A admissão de cláusulas muito gerais de restrição de direitos fundamentais – como o da supremacia do interesse público, implica em violação aos princípios democráticos e da reserva de lei, em matéria de limitação de direitos, já que transfere para a Administração a fixação concreta dos limites ao exercício de cada direito fundamental. Essa indeterminação pode também comprometer a sindicabilidade judicial dos direitos fundamentais, por privar os juízes de parâmetros objetivos de controle.
5)      Seria difícil pensar numa limitação mais vaga e indeterminada aos direitos fundamentais do que a proteção do interesse público? Afinal, o que é o interesse público?
Essa supremacia elimina qualquer possibilidade de sopesamento, premiando de antemão, com a vitória completa e cabal, o interesse público envolvido, e impondo o consequente sacrifício do interesse privado contraposto. Incompatível com o princípio da hermenêutica constitucional, que obriga o intérprete a buscar, em casos de conflitos, solução jurídica que harmonize, na medida do possível, os bens jurídicos constitucionalmente protegidos, sem optar pela realização integral de um, em prejuízo do outro. Descompasso com a ordem constitucional brasileira.
O ideal: procura racional de solução equilibrada entre o interesse público e privado implicados no caso.
Ao invés de uma supremacia a priori e absoluta do interesse público sobre o particular, ter-se-ia apenas uma regra de precedência prima facie. Do contrário, fragilizaremos demais os direitos fundamentais, que não são dádivas do poder público, mas a projeção normativa de valores morais superiores ao próprio Estado. Os direitos fundamentais despotam com absoluto destaque e centralidade.
Diante de um conflito, que exija a ponderação, os direitos fundamentais devem preponderar sobre os demais enunciados normativos e normas.

5.      Interesse privados que não constituem direitos fundamentais:
Ocorre que nem todo interesse particular pode ser qualificado como direito fundamental. Direitos fundamentais são apenas alguns interesses especialmente relevantes, relacionados à proteção e promoção da dignidade da pessoa humana, que, pela sua elevada significação, foram postos pela CF acima do poder das instâncias deliberativas ordinárias.
É inadequado falar em supremacia do interesse público sobre o particular mesmo em casos em que o último não se qualifique como direito fundamental. A Administração não deve perseguir os interesses privados dos governantes, mas sim os pertencentes à sociedade. Ao Estado incumbe a obrigação de sopesar os interesses privados legítimos envolvidos em cada caso.
Os direitos fundamentais são protegidos mesmo quando contrariem os interesses da maioria dos membros da coletividade.
A solução para a colisão não é singela. E usar a preferência do princípio do direito públi como superior é não levar a sério os direitos fundamentais.
6.      Observações Finais
Negar a supremacia do interesse público sobre o particular e afirmar a superioridade prima facie dos direitos fundamentais sobre os interesses da coletividade pode parecer para alguns uma postura anti-cívica. No entanto, o civismo que interessa é o do patriotismo constitucional (Habermas), que pressupõe a consolidação de uma cultura de direitos humanos. Não somos súditos do Estado e sim cidadãos. Somos sujeitos da História e não objetos. Requeremos um Estado que respeite profundamente os interesses legítimos do cidadão.