Diploma não é a solução
Vou confessar um pecado: às vezes, faço maldades. Mas não faço por mal. Faço o que faziam os mestres zen com seus “koans”. “Koans” eram rasteiras que os mestres passavam no pensamento dos discípulos. Eles sabiam que só se aprende o novo quando as certezas velhas caem. E acontece que eu gosto de passar rasteiras em certezas de jovens e de velhos…
Pois o que eu faço é o seguinte. Lá estão os jovens nos semáforos, de cabeças raspadas e caras pintadas, na maior alegria, celebrando o fato de haverem passado no vestibular. Estão pedindo dinheiro para a festa! Eu paro o carro, abro a janela e na maior seriedade digo: “Não vou dar dinheiro. Mas vou dar um conselho. Sou professor emérito da Unicamp. O conselho é este: salvem-se enquanto é tempo!”. Aí o sinal fica verde e eu continuo.
“Mas que desmancha-prazeres você é!”, vocês me dirão. É verdade. Desmancha-prazeres. Prazeres inocentes baseados no engano. Porque aquela alegria toda se deve precisamente a isto: eles estão enganados.
Estão alegres porque acreditam que a universidade é a chave do mundo. Acabaram de chegar ao último patamar. As celebrações têm o mesmo sentido que os eventos iniciáticos —nas culturas ditas primitivas, as provas a que têm de se submeter os jovens que passaram pela puberdade. Passadas as provas e os seus sofrimentos, os jovens deixaram de ser crianças. Agora são adultos, com todos os seus direitos e deveres. Podem assentar-se na roda dos homens. Assim como os nossos jovens agora podem dizer: “Deixei o cursinho. Estou na universidade”.
Houve um tempo em que as celebrações eram justas. Isso foi há muito tempo, quando eu era jovem. Naqueles tempos, um diploma universitário era garantia de trabalho. Os pais se davam como prontos para morrer quando uma destas coisas acontecia: 1) a filha se casava. Isso garantia o seu sustento pelo resto da vida; 2) a filha tirava o diploma de normalista. Isso garantiria o seu sustento caso não casasse; 3) o filho entrava para o Banco do Brasil; 4) o filho tirava diploma.
O diploma era mais que garantia de emprego. Era um atestado de nobreza. Quem tirava diploma não precisava trabalhar com as mãos, como os mecânicos, pedreiros e carpinteiros, que tinham mãos rudes e sujas.
Para provar para todo mundo que não trabalhavam com as mãos, os diplomados tratavam de pôr no dedo um anel com pedra colorida. Havia pedras para todas as profissões: médicos, advogados, músicos, engenheiros. Até os bispos tinham suas pedras.
(Ah! Ia me esquecendo: os pais também se davam como prontos para morrer quando o filho entrava para o seminário para ser padre —aos 45 anos seria bispo— ou para o exército para ser oficial —aos 45 anos seria general.)
Essa ilusão continua a morar na cabeça dos pais e é introduzida na cabeça dos filhos desde pequenos. Profissão honrosa é profissão que tem diploma universitário. Profissão rendosa é a que tem diploma universitário. Cria-se, então, a fantasia de que as únicas opções de profissão são aquelas oferecidas pelas universidades.
Quando se pergunta a um jovem “O que é que você vai fazer?”, o sentido dessa pergunta é “Quando você for preencher os formulários do vestibular, qual das opções oferecidas você vai escolher?”. E as opções não oferecidas? Haverá alternativas de trabalho que não se encontram nos formulários de vestibular?
Como todos os pais querem que seus filhos entrem na universidade e (quase) todos os jovens querem entrar na universidade, configura-se um mercado imenso, mas imenso mesmo, de pessoas desejosas de diplomas e prontas a pagar o preço. Enquanto houver jovens que não passam nos vestibulares das universidades do Estado, haverá mercado para a criação de universidades particulares. É um bom negócio.
Alegria na entrada. Tristeza ao sair. Forma-se, então, a multidão de jovens com diploma na mão, mas que não conseguem arranjar emprego. Por uma razão aritmética: o número de diplomados é muitas vezes maior que o número de empregos.
Já sugeri que os jovens que entram na universidade deveriam aprender, junto com o curso “nobre” que freqüentam, um ofício: marceneiro, mecânico, cozinheiro, jardineiro, técnico de computador, eletricista, encanador, descupinizador, motorista de trator… O rol de ofícios possíveis é imenso. Pena que, nas escolas, as crianças e os jovens não sejam informados sobre essas alternativas, por vezes mais felizes e mais rendosas.
Tive um amigo professor que foi guindado, contra a sua vontade, à posição de reitor de um grande colégio americano no interior de Minas. Ele odiava essa posição porque era obrigado a fazer discursos. E ele tremia de medo de fazer discursos. Um dia ele desapareceu sem explicações. Voltou com a família para o seu país, os Estados Unidos. Tempos depois, encontrei um amigo comum e perguntei: “Como vai o Fulano?”. Respondeu-me: “Felicíssimo. É motorista de um caminhão gigantesco que cruza o país!”.
Muito cedo para decidir
Gandhi se casou menino. Foi casado menino. O contrato, foram os grandes que assinaram. Os dois nem sabiam direito o que estava acontecendo, ainda não haviam completado 10 anos de idade, estavam interessados em brincar. Ninguém era culpado: todo mundo estava sendo levado de roldão pelas engrenagens dessa máquina chamada sociedade, que tudo ignora sobre a felicidade e vai moendo as pessoas nos seus dentes. Os dois passaram o resto da vida se arrastando, pesos enormes, cada um fazendo a infelicidade do outro.
Vocês dirão que felizmente esse costume nunca existiu entre nós: obrigar crianças que nada sabem a entrar por caminhos nos quais terão de andar pelo resto da vida é coisa muito cruel e... burra! Além disso já existe entre nós remédio para casamento que não dá certo.
Antigamente, quando se queria dizer que uma decisão não era grave e podia ser desfeita, dizia-se: "isso não é casamento!". Naquele tempo, sim, casamento era decisão irremediável, para sempre, até que a morte os separasse, eterna comunhão de bens e comunhão de males. Mas agora os casamentos fazem-se e desfazem-se até mesmo contra a vontade do Papa, e os dois ficam livres para começar tudo de novo...
Pois dentro de poucos dias vai acontecer com nossos adolescentes coisa igual ou pior do que aconteceu com o Gandhi e a mulher dele, e ninguém se horroriza, ninguém grita, os pais até ajudam, concordam, empurram, fazem pressão, o filho não quer tomar a decisão, refuga, está com medo. "Tomar uma decisão para o resto da minha vida, meu pai! Não posso agora!" e o pai e a mãe perdem o sono, pensando que há algo errado com o menino ou a menina, e invocam o auxílio de psicólogos para ajudar...
Está chegando para muitos o momento terrível do vestibular, quando vão ser obrigados por uma máquina, do mesmo jeito como o foram Gandhi e Casturbai (era esse o nome da menina), a escrever num espaço em branco o nome da profissão que vão ter.
Do mesmo jeito não: a situação é muito mais grave. Porque casar e descasar são coisas que se resolvem rápido. Às vezes, antes de se descasar de uma ou de um, a pessoa já está com uma outra ou um outro. Mas, com a profissão não tem jeito de fazer assim. Pra casar, basta amar.
Mas na profissão, além de amar tem de saber. E o saber leva tempo pra crescer.
A dor que os adolescentes enfrentam agora é que, na verdade, eles não têm condições de saber o que é que eles amam. Mas a máquina os obriga a tomar uma decisão para o resto da vida, mesmo sem saber.
Saber que a gente gosta disso e gosta daquilo é fácil. O difícil é saber qual, dentre todas, é aquela de que a gente gosta supremamente. Pois, por causa dela, todas as outras terão de ser abandonadas. A isso que se dá o nome de "vocação"; que vem do latim, vocare, que quer dizer "chamar". É um chamado, que vem de dentro da gente, o sentimento de que existe alguma coisa bela, bonita e verdadeira à qual a gente deseja entregar a vida.
Entregar-se a uma profissão é igual a entrar para uma ordem religiosa. Os religiosos, por amor a Deus, fazem votos de castidade, pobreza e obediência. Pois, no momento em que você escrever a palavra fatídica no espaço em branco, você estará fazendo também os seus votos de dedicação total á sua ordem. Cada profissão é uma ordem religiosa, com seus papas, bispos, catecismos, pecados e inquisições.
Se você disser que a decisão não é tão séria assim , que o que está em jogo é só o aprendizado de um ofício para se ganhar a vida e, possivelmente, ficar rico, eu posso até dizer: "Tudo bem! Só que fico com dó de você! Pois não existe coisa mais chata que trabalhar só para ganhar dinheiro."
É o mesmo que dizer que, no casamento, amar não importa. Que o que importa é se o marido — ou a mulher — é rico. Imagine-se agora, nessa situação: você é casado ou casada, não gosta do marido ou da mulher, mas é obrigado a, diariamente, fazer carinho, agradar e fazer amor. Pode existir coisa mais terrível que isso? Pois é a isso que está obrigada uma pessoa, casada com uma profissão sem gostar dela. A situação é mais terrível que no casamento, pois no casamento sempre existe o recurso de umas infidelidades marginais. Mas o profissional, pobrezinho, gozará do seu direito de infidelidade com que outra profissão?
Não fique muito feliz se o seu filho já tem idéias claras sobre o assunto. Isso não é sinal de superioridade. Significa, apenas, que na mesa dele há um prato só. Se ele só tem nabos cozidos para comer, é claro que a decisão já está feita: comerá nabos cozidos e engordará com eles. A dor e a indecisão vêm quando há muitos pratos sobre a mesa e só se pode escolher um.
Um conselho aos pais e aos adolescentes: não levem muito a sério esse ato de colocar a profissão naquele lugar terrível. Aceitem que é muito cedo para uma decisão tão grave. Considerem que é possível que vocês, daqui a um ou dois anos, mudem de idéia. Eu mudei de idéia várias vezes, o que me fez muito bem. Se for necessário, comecem de novo. Não há pressa. Que diferença faz receber o diploma um ano antes ou um ano depois?
Em tudo isso o que causa a maior ansiedade não é nada sério: é aquela sensação boba que domina pais e filhos de que a vida é uma corrida e que é preciso sair correndo na frente para ganhar. Dá uma aflição danada ver os outros começando a corrida, enquanto a gente fica para trás.
Mas a vida não é uma corrida em linha reta. Quando se começa a correr na direção errada, quanto mais rápido for o corredor, mais longe ele ficará do ponto de chegada. Lembrem-se daquele maravilhoso aforismo de T. S. Eliot: "Num país de fugitivos os que andam na direção contrária parecem estar fugindo."
Assim, Raquel, não se aflija. A vida é uma ciranda com muitos começos.
Coloque lá a profissão que você julgar a mais de acordo com o seu coração, sabendo que nada é definitivo. Nem o casamento. Nem a profissão. E nem a própria vida...
O escritor responde a uma estudante angustiada e dá aos pais motivos para meditarem sobre a escolha da profissão.
* Rubem Alves é escritor, educador e contador de histórias. Site: www.rubemalves.com.br
A sugestão de usar Rubem Alves foi de Gilson, aluno da disciplina "Profissões Jurídicas", que menviou esse texto:
Política e Jardinagem - Rubem Alves
De todas as vocações, a política é a mais nobre. Vocação, do latim vocare, quer dizer chamado. Vocação é um chamado interior de amor: chamado de amor por um ‘fazer’. No lugar desse ‘fazer’ o vocacionado quer ‘fazer amor’ com o mundo. Psicologia de amante: faria, mesmo que não ganhasse nada.
‘Política’ vem de polis, cidade. A cidade era, para os gregos, um espaço seguro, ordenado e manso, onde os homens podiam se dedicar à busca da felicidade. O político seria aquele que cuidaria desse espaço. A vocação política, assim, estaria a serviço da felicidade dos moradores da cidade.
Talvez por terem sido nômades no deserto, os hebreus não sonhavam com cidades: sonhavam com jardins. Quem mora no deserto sonha com oases. Deus não criou uma cidade. Ele criou um jardim. Se perguntássemos a um profeta hebreu ‘o que é política?’, ele nos responderia, ‘a arte da jardinagem aplicada às coisas públicas’.
O político por vocação é um apaixonado pelo grande jardim para todos. Seu amor é tão grande que ele abre mão do pequeno jardim que ele poderia plantar para si mesmo. De que vale um pequeno jardim se à sua volta está o deserto? É preciso que o deserto inteiro se transforme em jardim.
Amo a minha vocação, que é escrever. Literatura é uma vocação bela e fraca. O escritor tem amor mas não tem poder. Mas o político tem. Um político por vocação é um poeta forte: ele tem o poder de transformar poemas sobre jardins em jardins de verdade. A vocação política é transformar sonhos em realidade. É uma vocação tão feliz que Platão sugeriu que os políticos não precisam possuir nada: bastar-lhes-ia o grande jardim para todos. Seria indigno que o jardineiro tivesse um espaço privilegiado, melhor e diferente do espaço ocupado por todos. Conheci e conheço muitos políticos por vocação. Sua vida foi e continua a ser um motivo de esperança.
Vocação é diferente de profissão. Na vocação a pessoa encontra a felicidade na própria ação. Na profissão o prazer se encontra não na ação. O prazer está no ganho que dela se deriva. O homem movido pela vocação é um amante. Faz amor com a amada pela alegria de fazer amor. O profissional não ama a mulher. Ele ama o dinheiro que recebe dela. É um gigolô.
Todas as vocações podem ser transformadas em profissões O jardineiro por vocação ama o jardim de todos. O jardineiro por profissão usa o jardim de todos para construir seu jardim privado, ainda que, para que isso aconteça, ao seu redor aumente o deserto e o sofrimento.
Assim é a política. São muitos os políticos profissionais. Posso, então, enunciar minha segunda tese: de todas as profissões, a profissão política é a mais vil. O que explica o desencanto total do povo, em relação à política. Guimarães Rosa, perguntado por Günter Lorenz se ele se considerava político, respondeu: ‘Eu jamais poderia ser político com toda essa charlatanice da realidade… Ao contrário dos ‘legítimos’ políticos, acredito no homem e lhe desejo um futuro. O político pensa apenas em minutos. Sou escritor e penso em eternidades. Eu penso na ressurreição do homem.’ Quem pensa em minutos não tem paciência para plantar árvores. Uma árvore leva muitos anos para crescer. É mais lucrativo cortá-las.
Nosso futuro depende dessa luta entre políticos por vocação e políticos por profissão. O triste é que muitos que sentem o chamado da política não têm coragem de atendê-lo, por medo da vergonha de serem confundidos com gigolôs e de terem de conviver com gigolôs.
Escrevo para vocês, jovens, para seduzi-los à vocação política. Talvez haja jardineiros adormecidos dentro de vocês. A escuta da vocação é difícil, porque ela é perturbada pela gritaria das escolhas esperadas, normais, medicina, engenharia, computação, direito, ciência. Todas elas, legítimas, se forem vocação. Mas todas elas afunilantes: vão colocá-los num pequeno canto do jardim, muito distante do lugar onde o destino do jardim é decidido. Não seria muito mais fascinante participar dos destinos do jardim?
Acabamos de celebrar os 500 anos do descobrimento do Brasil. Os descobridores, ao chegar, não encontraram um jardim. Encontraram uma selva. Selva não é jardim. Selvas são cruéis e insensíveis, indiferentes ao sofrimento e à morte. Uma selva é uma parte da natureza ainda não tocada pela mão do homem. Aquela selva poderia ter sido transformada num jardim. Não foi. Os que sobre ela agiram não eram jardineiros. Eram lenhadores e madeireiros. E foi assim que a selva, que poderia ter se tornado jardim para a felicidade de todos, foi sendo transformada em desertos salpicados de luxuriantes jardins privados onde uns poucos encontram vida e prazer.
Há descobrimentos de origens. Mais belos são os descobrimentos de destinos. Talvez, então, se os políticos por vocação se apossarem do jardim, poderemos começar a traçar um novo destino. Então, ao invés de desertos e jardins privados, teremos um grande jardim para todos, obra de homens que tiveram o amor e a paciência de plantar árvores à cuja sombra nunca se assentariam.
Rubem Alves
Fonte: Folha de S. Paulo, Tendências e Debates, 19 mai 2000
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