sexta-feira

Um sonho real




Já chegam as águas da vida que estão no céu,
 já chegam as águas da vida que estão na terra...
 O céu se acende por ti,
 a terra treme por ti,
ante o nascimento divino (de Osiris – Nilo).
 Os dois montes se abrem.
 O deus ganha vida,
 o deus tem o poder em seu corpo...
 O monte nasceu,
 os campos vivem.”         
Trecho das pirâmides                    


Sempre o oriente exerceu sobre mim um fascínio muito grande. Adorava ler sobre as paisagens, lendas, ritos, costumes, enfim tudo que se referisse ao mundo oriental, especialmente ao Egito. Este país, que ainda é, um caso desconcertante para muita gente.
Assistia filmes, lia revistas e livros a respeito do povo egípcio. Conversava com pessoas que já haviam pisado naquelas terras quentes e exóticas; via postais,enfim: sentia um fascínio indescritível por aquela terra impressionante com os seus imponentes monumentos, os seus sete mil anos de história e a sua reputação de altos conhecimentos e capacidade técnica.
Não sei se tudo isto influenciou um sonho lindo que tive, e que gostaria de contar para todos vocês. Foi um sonho, porque nunca fui numa agência de turismo comprar passagens para conhecer o lugar que mais tenho vontade de ver. Porém, foi um sonho tão real, que ainda consigo sentir o cheiro quente do deserto, sentir o calor do sol do dia, olhar deslumbrada aquelas lindas e impressionantes pirâmides.
Quero contar o meu sonho para que todos saibam da experiência mágica que vivenciei. Aquele egípcio apareceu e disse: “Quero que você conheça o Egito, não o que sobrou dele, mas o que construímos há mais de sete mil anos atrás”. Ele era forte, moreno e vestia roupas pesadas e escuras. Em seus braços, havia alguns braceletes dourados, e em seu cabelo preto, resplandecia um faixa de ouro que rodeava sua cabeça.
Sua voz continuava:
“Conhecer o Egito, é voltar a um passado distante e coberto de mistérios. Você realmente fará uma viagem através dos tempos...”.
Foi neste momento que vi passar numa grande fila, vários trabalhadores carregando pedras pesadíssimas. Continuamos caminhando e chegamos à beira do Nilo.
Ele me perguntou:
“Você sabe a importância deste rio para nós?”
Eu respondi: “já tive a oportunidade de ler sobre ele e sei que a sobrevivência de todos vocês depende do mesmo”.
“Isto mesmo. Como a maior parte destas terras é desértica e as chuvas são insuficientes para o cultivo de cereais ou a criação de rebanhos, somente nestas estreitas faixas às margens do grande rio é que se pratica a agricultura. Esta sendo possível graças a inundação que ocorre todos os anos, por causa de nossas preces aos deuses.”
Desta forma, continuou o meu amigo: “o Nilo fornece ao Egito, ao mesmo tempo, água e terra fértil. Nosso ano começa no primeiro dia da enchente do rio, que coincide com o surgimento no céu, da estrela Sothis. E cada ano nosso tem doze meses de trinta dias cada e mais cinco dias no final dos meses, para que em um ano somem-se trezentos e sessenta e cinco dias. Durante esses dias ‘extras’ ocorrem as festividades em honra ao deus-sol. Você entendeu tudo?
“Bem, quase tudo. Fiquei com dúvida quando você me disse que era necessário agradecer aos deuses para que chovesse. É isto mesmo?”
“Para que você entenda isto melhor, vou te contar uma história sagrada: no princípio existia o caos. O caos era a representação do mundo antes de existir a terra, o céu, os homens, os deuses; enfim, antes de existir a morte. O caos era o oceano chamado Nun; não havia o sol e as trevas cobriam a face do abismo. No interior do abismo encontrava-se o demiurgo, responsável pelo ordenamento e organização do mundo. Do demiurgo surgiram o ar, a umidade, e os primeiros deuses”.
“Tudo isto é muito complicado”.
“Agora você me entenderá melhor: há muito tempo, como meu pai já me falou, conta-se que existiam dois deuses irmãos, Seth e Osíris. Este era o deus da terra, do sol poente e responsável pela fertilidade de nossas terras. Após ter organizado e civilizado as terras do Egito, Osíris confiou o cuidado e o governo do país a Ísis, sua irmã, e partiu ao sul com o objetivo de divulgar a agricultura, as leis da harmonia e as cerimônias de adoração aos poderes divinos às pessoas da região, que ainda viviam em estado selvagem. Acontece que Seth, deus do vento do deserto, das trevas e do mal, assassina seu irmão, por ódio e inveja, e espalha seu corpo por muitos lugares. Sua irmã-esposa Ísis, deusa da vegetação e das sementes, auxiliada por seu filho Horos, deus falcão e do sol levante, consegue, através de palavras mágicas, reunir todas as partes, e Osíris revive, indo morar entre os deuses. E todos os anos Osíris renasce, porque Ísis chora e suas lágrimas são as chuvas que caem e fertilizam nossas terras. Agora, você entende o por quê de nossos cultos?”
“Sim. Entendi muito bem: Osíris é o deus do Nilo, que revive todos os anos, trazendo consigo abundância, água e comida para os egípcios. Mas, ainda tenho uma pergunta: estes são os únicos deuses que vocês conhecem?”
Ele respondeu eufórico:
“Não! De forma alguma! Nós adoramos numerosos deuses. Os primeiros deuses foram os animais, e cada pessoa tinha o seu animal-deus que o protegia, como por exemplo, os gatos, os bois, as serpentes, os crocodilos, os touros, os chacais, as gazelas e os escaravelhos. Os que adoramos principalmente, agora são: Rá, o deus do sol, que unido ao deus Amon é a principal divindade do Egito; Nut, a mãe de Rá. Ela engole o sol à noite e o faz renascer a cada manhã; Néfits, irmã de Osíris e esposa de Seth; Maat, deusa da justiça, da verdade e do equilíbrio do universo, que surgiu para evitar o caos. Ela indicava o princípio da vida e da ordem, equilibrava o universo e a coesão de seus elementos. Controlava a sequência das estações, o curso diurno do sol, o equilíbrio do sol entre os seres humanos, o cumprimento adequado dos rituais e as obrigações religiosas pelos sacerdotes, era a representação da honestidade, da sinceridade nas relações. Sekhemkhet, deusa com corpo de mulher e cabeça de leão, deusa das guerras que com sua força, foi encarregada de destruir os inimigos de Rá; Ptá, deus de Mênfis, considerado o criador do mundo e protetor dos artesãos; Anúbis, deus chacal, guardião dos túmulos, deus da ressurreição, mediador entre o céu e a terra; Toth, deus da sabedoria, da magia e criador da escrita; Hator, deusa que se apresenta com duas formas: como uma vaca tendo o sol entre os chifres e uma mulher com chifres e sol entre eles. É considerada a deusa da vaidade, da música, da alegria, dos prazeres e do amor; Tueris, deusa hipopótamo, protetora das gestantes; Bastet, deusa que transmite para as pessoas as boas influências do deus-sol....”
“Quantos deuses, com variedade de nomes, qualidades e defeitos! Tudo isto me é muito estranho”.
Agora minha amiga, apesar de gostar muito de ficar olhando estas bênçãos dos deuses, preciso lhe mostrar algumas outras coisas, antes que sua viagem termine.
Percorrendo o vale do Nilo, vimos duas imponentes pirâmides, avenidas de esfínges e esbeltos obeliscos. Nas imensas imagens de pedra, fiquei perplexa diante dos enigmas que cobriam as paredes dos templos. Vi mastabas, ou seja, túmulos recobertos com lajes de pedra e de tijolo. Dentro delas havia capelas, câmaras dos mortos e outros compartimentos com roupas, comidas e perfumes para o mumificado imortal.
O egípcio me disse:
“Aqueles trabalhadores que carregam pedras, estão construindo um grande palácio, para um faraó muito importante, descendente dos deuses e, portanto, um ser semidivino”. E continuou: “pois, assim como o dia é o estabelecimento da nossa ordem o mesmo vale para a ascensão ao trono de um novo rei, em suma, a criação dá-se, uma vez mais, cada manhã quando a luz brota, no início de cada estação, de cada ano, de cada novo reinado de um faraó”.
Cada vez mais aquela terra me fascinava. As mulheres eram morenas, usavam roupas pretas, verdes, brancas ou transparentes, com muitas jóias nos pescoços, braços, pernas e cabeças. Aonde quer que passassem exalavam um perfume de incenso. Tudo era exótico. E o sol tinha um brilho diferente.
O egípcio levou-me em sua casa e lá pude ver o relógio solar. Era inacreditável aquele medidor do tempo: em forma de T, era disposto pela manhã horizontalmente, com o travessão voltado para o leste, de modo a lançar um sombra ao longo da haste, graduada com marcas referentes a seis horas. À medida que o sol se elevava no céu, a sombra se reduzia, até desaparecer.
Num jarro, em cima de uma mesa, havia flores de lótus. Ele me explicou que estas flores representavam os quatro elementos, pois tem as raízes no barro, o caule na água e as folhas e flores no ar, recebendo o orvalho celestial e os raios do sol.
Naquele momento ele me lembrou que já era hora do sol se pôr. Portanto, também já era hora de voltar. Fiquei triste, porque aquela terra havia me deslumbrado de uma maneira tal, que jamais esqueceria. Acordei, e em minhas mãos estava um rolo de pergaminho. Desenrolei-o e guardei numa gaveta. Ainda me recordo de como os egípcios impressionavam-se com as ameaças, que constantemente vivenciavam: lama negra depositada pela inundação, o deserto temível e mortífero, assim como o efeito contrastante entre o dia e a noite: dias luminosos em que o sol, esplêndido, onipotente, criador e provedor da vida, reinava sobre a terra, e noites que abruptamente engoliam o sol – um tempo repleto de ameaças, no qual a vida era suspensa.
Nem todas essas observações são capazes de descrever o indescritível, demonstrar o indemonstrável, exprimir o inexpressável e de fixar os momentos fugidios, que naquela noite mágica, escaparam-me. Em minha cabeça ficaram lembranças lindas de um sonho que já se foi... de um sonho que se encontra longe de mim há sete mil anos entrecortado pelo tempo. De um sonho que procuro entender à cada dia e encontrar no meu hoje. Um hoje feito de um passado distante e de um sonho real...

Março de 1997. Um conto de Ezilda Melo que pode ser utilizado por professores de História Antiga Oriental como material didático. Foi feito para a oficina de História Antiga sob orientação da Prof. Eronides Câmara Donato, do Departamento de história da UFCG.

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