Prefácio
de Paulo Ferreira da Cunha[1]
LIBERTANDO
O DIREITO
COM ENGENHO E ARTE
Foi
para mim um prazer ler esta obra, e é um gosto prefaciá-la.
Este
livro insere-se já num tempo novo, um momento significativo de viragem. E uma
viragem que anuncia (e já representa) um corte epistemológico muito sério e
regenerador. Alguns diriam "pós-moderno", mas tal expressão parece já
estar um pouco antiquada, pelo que a evitaríamos.
Há,
do princípio ao fim deste texto, não um polvilhar de novidades para doirar o
conjunto e eventualmente épater le
bourgeois. Há um sopro diferente de renovação, mas o texto já se coloca num
outro lugar, já contempla a juridicidade de uma diversa perspectiva.
Não
é o adorno do novo sobre o velho, não são odres novos para vinho antigo, é já
vinho e odres novos, e com toda a legitimidade que os velhos, vinho e odres.
A
sensação de legitimidade da démarche
empreendida dá-lhe segurança. Estávamos e ainda estamos a precisar muito de
estudos jurídicos inovadores que não sejam tentâmens pomposos ou em
bicos-de-pés, trabalhos a um tempo com segurança e sem petulância, com
naturalidade. Com segurança e com honesto estudo. Com robustês e agilidade.
Afinal, com engenho e arte, como diria Camões. É este um caso. Só que é esta
uma segurança não alicerçada meramente no cabedal do passado, mas ancorada
igualmente no tipo de trabalhos que se farão no futuro, sem complexos. Não os
únicos, mas dando-nos uma amostra iluminadora de uma das formas, modelos,
gêneros dos que se farão...
Obviamente
que longe de nós saudar simplesmente a novidade pela novidade. Esse é um dos
mais correntes e medíocres pecados da nossa contemporaneidade e da crítica
normal. Não. O que está aqui em causa é já um livro de um novo tempo e para um
novo tempo.
Virá
certamente o dia em que movimentos, correntes, escolas, que foram
vanguardistas, que ainda o são, virão a ser ou atirados para o caixote do lixo
da História ou incorporados no novum
que haja entretanto nascido. O que o livro da Professora Ezilda Melo nos traz é
uma antecipação dessa triagem, especialmente com a incorporação sem pompa e com
a maior naturalidade do que é bom e está bem, aí onde o encontrou, como diria Van De Velde.
Com
efeito, poder-se-ia dizer que este livro, que começa o seu título precisamente
por um alargamento do tema Direito & Literatura (Law & Literature), enquanto Direito e Arte, e que logo no
título ainda remete para a Emoção (inter
alia) e um grande autor como Ariano Suassuna, conhecido sobretudo pelas
Letras, se insere precisamente nessa subárea da Filosofia do Direito. Mesmo
assumindo-se como de Direito e Arte, não deixaria este escrito de se encontrar,
pelo seu conteúdo, mais ligado ao Direito & Literatura. Ora as relações entre uma e outra coisa (quer
se fale de Arte em geral quer de Literatura em particular) foram progredindo
desde o posicionar-se o Direito contra
a Arte e a Literatura (quantos processos absurdos e inquisitoriais a obra de
arte inovadora não suscitou!), em muitos casos, até uma reconciliação
integradora, a que já se chamou "Direito com Literatura", depois de várias fases intermediárias.
Mas
assim já não é. Já não estamos, nesta obra, quer ela queira quer não (quer ela
o desejasse quer não: as obras não são dos seus autores, mesmo durante a
feitura, e muito menos depois...), no domínio estrito dessa subárea
jurisfilosófica apenas. Pelo contrário, e mais além, encontramo-nos num mundo
novo: no terreno vasto e a perder de vista de um Direito, mais que pensado e
repensado, libertado[2].
Que obviamente é Direito com Literatura e Arte, e naturalmente convoca a emoção
e dá voz e vez aos artistas e à forma
mentis artística. E tão naturalmente que o estilo flui sem esforço, e tão
obviamente assim é que já nem nos damos conta assim tanto disso.
Sentimo-nos
assim transportados a um oásis do direito futuro no nosso tempo e ainda no
nosso direito. Não que se trate de ficção ou futurologia. Mas pelo estilo que
antecipa a habitualidade de tópicos e formas de abordagem que não são ainda
habitualmente os nossos.
Não
esperamos dos juristas mais habituados a uma reverência rígida e cadavérica uma
adesão muito grande a esta obra, mas ela prescinde bem dessa adesão. Há contudo
certas obras de viragem que podem ter virtualidades inusitadas, e
insuspeitadas: quais sejam as de prepararem o terreno para a conversão de
juristas mais clássicos, mas inteligentes e no fundo inquietos e insatisfeitos,
a novos ventos.
Para
isso são necessárias obras solidamente engastadoras do futuro no passado.
Capazes de mostrar que o seu autor poderia, se quisesse, ter as maiores honras
no cursus honorum corrente e
tradicional, em sintonia com o estilo rebarbativo imperante, mas que, anão aos
ombros de gigantes como diria São Bernardo, foi capaz de subir mais alto e ver
mais longe. Achamos que a Professora Ezilda Melo conseguiu isso: prova que é
uma jurista perfeitamente formada no arsenal do passado, mas que não se
contenta com ele, e sabe que navegar é preciso.
Naveguemos,
pois, com esta obra, e mais longe...
Este
livro deu-me uma grande alegria, porque me transportou para um mundo futuro do
Direito com cultura, com arte, com literatura, com ciências sociais, não como
postiços para impressionar alguns, mas como parte de um saber jurídico global,
holístico e até pós-disciplinar, para lembrar os estudos do catalão Mayos,
aliás também grande amigo do Brasil.
Por
coincidência, esta sensação, este estado de espírito, parece-nos abeirar-se
muito da aproximação à noção de valor em Johannes Hessen. Porque, com a leitura
desta obra, nos quedamos com uma sensação de plenitude: uma felicidade calma,
não de contemplação acrítica e de adesão cega, mas a sensação de que as coisas
estão bem e fazem sentido.
Não
sei que valor concretamente se encarna nesta obra. Mas certamente algo terá a
ver com a Justiça, que é um pleno, perpétuo e contante suum cuique. Aqui há um dar o seu a seu dono num estudo de Direito,
mas um Direito que convive com a vida, real e epistémica, com naturalidade e
com sentido da complexidade e vastidão do Mundo... Porém, sente-se aqui também,
ao menos, um latejar em pano de fundo de verdade e de beleza...
Um
Direito destes, remetendo para tais valores, é o Direito por que andamos lá
fora a batalhar: de um novo paradigma fraterno e humanista[3].
Fraterno
no sentido político de ir até mais além (conciliando-as) a liberdade e a
igualdade, que separadas só fabricam infernos.
Humanista
quer no sentido social de Humanidade e humanização, como no sentido epistémico
de enciclopédica, racional e jubilosa nova Renascença, de cultivo dos cânones
que valem a pena cultivar, como os clássicos, e de profunda inovação, com
obstinado rigor leonardiano, com a magia de um Rafael que tira a estátua da sua
prisão de mármore...
É
numa prisão, não de mármore mas de granito, sólido e escurecido pela patine do tempo, que tem vivido o
Direito nos seus tempos de clausura: primeiro objetivista romanista e depois de
subjetivismo burguês, em todos os casos materialistas. O Direito que se nos
anuncia não renuncia a um vasto património, a uma História fascinante, mas
encontra-se mais além...
Disse
uma vez Ariano Suassuna: "Arte pra mim é
missão, vocação e festa". Poderá um dia não diríamos o Direito vivido e
sofrido, mas ao menos o Direito pensado, estudado e em criação sê-lo também?
É
nessas caminhadas que se insere este livro. Por vezes acreditando tanto no
caminho que tememos aqui e ali vá depressa demais... Mas não vai. Já vamos
todos atrasados.
[1]
Paulo
Ferreira da Cunha.
Membro do Comité ad hoc para o
Tribunal Constitucional Internacional. Professor Catedrático da Faculdade de
Direito da Universidade do Porto.
[2] Mais recentemente, desenvolvemos esta última ideia no
nosso livro Iniciação à Metodologia
Jurídica. 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2014, máx. p. 165 ss.. E em Libertar o Direito. Do Problema
Metodológico-Jurídico do nosso Tempo, "International Studies on Law
and ducation", vol. XIX, http://www.hottopos.com/isle19/27-36PFC.pdf
[3] Para uma fundamentação e
história destes conceitos: AYRES DE BRITO, Carlos. O Humanismo como
Categoria Constitucional. Belo Horizonte: Forum, 2007. Idem. Teoria da
Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 3.ª reimp. da 1.ª ed., 2006, p. 216
ss.; BITTAR, Eduardo C. B.. O Direito na
Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005. Idem. Razão e Afeto, Justiça e Direitos Humanos: Dois Paralelos Cruzados
para Mudança Paradigmática. Reflexões
Frankfurtianas e a Revolução pelo Afeto. in Educação e Metodologia para os Direitos Humanos. São Paulo:
Quartier Latin, 2008; CARDUCCI, Michele. Por um Direito Constitucional
Altruísta, trad. port., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003;
CARNEIRO, Maria Francisca. Direito, Estética e Arte de Julgar. Núria
Fabris Editora: Porto Alegre, 2008; KUENG, Hans. Das Christentum. Wesen und Geschiche. trad. do fr. de Gemeniano
Cascais Franco. O Cristianismo. Essência
e História. Lisboa: Círculo de Leitores, 2012, p. 673 ss.; RESTA, Eligio. Il
Diritto Fraterno. Roma/Bari: Laterza, 2002; STOLLEIS, Michael. Vormodernes
und Postmodernes Recht, in “Quaderni Fiorentini per la Storia del
Pensiero Giuridico Moderno”, Universidade de Florença, vol. 37, 2008; WOLKMER,
Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma Nova Cultura no
Direito, 3.ª ed., São Paulo: Alfa-Omega, 2001 (1.ª ed. 1999); ZAGREBELSKY,
Gustavo. Il Diritto Mite. Turim: Einandi, 1992. E o nosso livro Geografia Constitucional. Sistemas
Juspolíticos e Globalização. Lisboa: Quid Juris, 2009, máx. p. 289 ss..
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