quarta-feira

Capitães de Areia por Henrique Wagner

Ainda não vi "Capitães de Areia", mas já li uma resenha do Henrique Wagner, no site www.expoart.com.br. Como gosto muito desse colunista fantástico e de suas colocações no terreno das artes, postarei esse texto com a promessa de que em breve verei o filme:

Capitães da Areia – um problema familiar

A família que Jorge Amado deixou, não pára de aprontar. Ela não cria, exatamente, ela apronta. Uma hora é Paloma, a filha ucraniana, publicando livros sobre a culinária na obra de Jorge. Outra hora é João Jorge Amado, publicando livros sobre os livros do pai, o mesmo Jorge. E havia ainda a Zélia, escrevendo memórias do casal e fazendo fotografias do amado, ao lado dela, por todo canto do mundo, entre uma e outra escapadinha do autor de Quincas Berro D’água.
Agora é a hora e a vez da neta de Jorge – que não era de capadócia, o coitado –, Cecília Amado, pongar na rabeta do grande escritor baiano, em sua estréia como diretora de um longa. Avô costuma ser complacente com o neto, afinal, “deixa os meninos, eles estão querendo apenas brincar”... Agora, imagina avô morto? Cecília pinta o sete, portanto, aproveitando toda uma gama de situações a seu favor: neta do dono da bola; comemorações do centenário de nascimento de Jorge Amado (a Companhia das Letras relançou a obra inteira do autor baiano, e é um dos patrocinadores do filme); a Bahia negra, mística e folclórica como tema; a experiência como continuísta e assistente de direção de diretores de cinema do Brasil midiático e de globais.
Como se não bastasse, a ação é entre amigos. Mais que amigos. Digo, porque os produtores associados são... são... Quem acertar ganha um beijo da Rosa Palmeirão... Sim, João Jorge Amado e Paloma Amado!!! E tem marido no meio: Guy Gonçalves, casado com a diretora, que também assina o roteiro, ao lado de Hilton Lacerda, é responsável pela fotografia do filme. Aliás, uma fotografia acima da média, entre Adenor Gondim e Voltaire Fraga – mais para o primeiro, infelizmente.
O filme é o filme, o livro é o livro, dizia um Chico Buarque eufemístico, mas sensivelmente decepcionado, depois da exibição de estréia do terrível Benjamim, baseado em obra homônima do compositor carioca. Jorge Amado certamente não diria isso – avô etc. Fato é que o livro, escrito por Jorge aos 24 anos de idade, é brilhante, mesmo com suas tão discutidas imperfeições. E o filme de Cecília não tem brilho algum, a não ser o do excesso de produção – vivemos em tempos de produtores, não de artistas, exatamente. Um filme disforme – as cenas parecem terminar antes ou depois do tempo devido, e a montagem não é das mais inspiradas – e sem o mínimo de ciência da composição, sem concluir o tanto que inicia, ou concluindo mal. Falta ainda ao filme a grandeza de uma história de grandes proporções, em todos os sentidos. Mas falta, por outro lado, a miudeza dos detalhes, nos momentos de pizzicato da trama, nos quais as cenas são, ou óbvias, “fáceis”, feitas a facão; ou sem o necessário miniaturismo para deixá-las protegidas da curiosidade insensível do espectador. Talvez por ser mulher, Cecília ao menos teve a sensibilidade de evitar muitas cenas de sexo, comuns em livros de Jorge e, principalmente, em filmes a partir de livros de Jorge, o Amado. Outro grande trunfo do filme é não ter imitado a montagem em Cidade de Deus, do Fernando Meirelles. Aquela montagem scorsesiana, que depois virou tarantiniana, tornou-se epidemia no Brasil, quando se trata de filme com alguma ação.
Publicado em 1937, Capitães da Areia, clássico absoluto dos livros sobre a infância abandonada, assombrou e encantou várias gerações de leitores, e há quem, hoje, jamais tenha lido um romance na vida, mas lera o mais famoso livro de Jorge. Registre-se o fato de que o livro foi apreendido e queimado em praça pública, pela polícia do Estado Novo, pouco depois de seu lançamento. Naturalmente esse acontecimento só ajudou a obra a ser ainda mais lida. Causa certa surpresa ter demorado tanto a ser adaptado para o cinema brasileiro – há uma adaptação americana, de 1971, dirigida por Hall Bartlett; o filme só fez e ainda faz sucesso na Rússia comunista; o roteiro é do próprio Jorge Amado. Cerca de 70 anos depois, entretanto, o livro nos chega pelas telas com vários anacronismos.
A história dos meninos que moram num trapiche e são talentosos batedores de carteira, passa-se numa Salvador dos anos 1940, no máximo 1950 – há divergência entre exegetas da obra. Cecília Amado, sabendo muito bem disso – ou não sabendo? Vai saber... –, enfia uma música de Arnaldo Antunes – ele, sempre ele – como fundo musical para a famosa cena do carrossel num parquinho da cidade. Ora, pelo amor de Everardo Fode-Mansinho! O que não falta é música baiana de qualidade, de ontem e de hoje, sem tanto estúdio, sotaque paulista e estilo pop chumbado. Outro anacronismo se encontra em alguns termos usados pelos personagens: termos que ainda não existiam à época.
A direção de ator é de fazer chorar ou perder a paciência. As crianças, nossas crianças, a julgar pelo filme de Cecília, não têm futuro, caro amigo Anísio Teixeira, a quem o livro foi dedicado. Jean Luis Amorim, que faz o destemido, denodado Pedro Bala, “constrói” um líder medroso, pálido, sem viço, e com uma entonação na voz, extremamente “baixa”. Por onde andava a Fátima Toledo, à época da realização do filme? Mas não é só Pedro Bala: o Sem-Pernas, vivido ou morrido Israel Gouvêa, é tão mal representado, que nos faz sentir vontade de dar umas palmadas no garoto pelo maior de seus crimes: atuar mal. Até a gente do neo-realismo italiano, ou os não-atores de Kiarostami eram e são mais convincentes. Apenas Volta-Seca, que tem participação ínfima, é bem vivido pelo jovem ator Heder Novaes. Dora (Ana Graciela), que faz par romântico com Pedro Bala, apenas convence. A grande presença física, no filme, é a do ator baiano Marinho Gonçalves, um adulto, surgido do Bando de Teatro do Olodum, de nosso Graças a Deus Ex-secretário de Cultura Márcio Meirelles. Pois bem, nosso Graças a Deus acertou, sabe-se lá como, de modo que é possível ter muito prazer diante das cenas em que o capoeirista Querido-de-Deus aparece, conversando ou lutando, ensinando capoeira aos capitães. Marinho Gonçalves, aliás, pode ser visto em Salvador na peça de teatro Alugo Minha Língua, dirigida por Fernando Guerreiro, com texto de Gil Vicente Tavares. Em cartaz no Vila Velha, salvo engano.
 A trilha sonora ficou a cargo de Carlinhos Brown – isso talvez explique a presença do tribalista de São Paulo – e é bem concebida e bem utilizada no filme. Brown é talentoso e todos sabem ou estão cansados de saber disso. Para mim era mesmo o compositor ideal para o filme. Poderíamos pensar em Gerônimo, Vevé Calazans, Waltinho Queiroz etc., mas há o mercado na jogada, é claro, e Brown é nome internacional, já há algum tempo. Há canções de guerra e canções de amor, todas eficientes e do tipo que nos levam a cantar junto.
Mas há dois grandes incômodos, quanto ao filme de Cecília Amado. Um deles é a sensação que experimentei de estar diante de personagens que são usados por jovens e sonhadores intérpretes para alavancar suas carreiras. Senti isso com outros filmes brasileiros, em que cada aparição de um ator parece o motivo da cena, como se o filme tivesse sido feito para a família do artista, cada cena a cada família. Coincidentemente, senti isso ao assistir ao filme Tieta do Agreste, de Cacá Diegues, um dos piores filmes brasileiros de todos os tempos, igualmente baseado na obra de Jorge Amado.
Outro incômodo, mais sério, deu-se quando percebi que faltava mais “passado” para consolidar a história hoje, pela tecnologia de hoje. O romantismo amadiano em torno das crianças de rua precisava de uma forte, uma consistente contextualização e reconstituição de época. Era preciso deixar muito claro o tempo em que viviam os capitães da areia. Cecília entrou demais no trapiche, nos deu cenas atemporais; e o colorido da película, e a produção dos dias de hoje, e os atores ruins, tudo isso reafirma um anacronismo mais sutil, quase subjetivo, que aumenta a impressão de que o autor do livro era condescendente demais com os crimes perpetrados pelas crianças tão violentas, selvagens, desalmadas, e o seria hoje, em dias de crack e oxi. Sim, Capitães da Areia é a Revolução dos Bichos de Jorge Amado. É seu comunismo infanto-juvenil, e consegue ser tolerado em sua utopia se pensarmos nos anos 40 em Salvador, quando havia mais corpo que arma, numa refrega. O filme de Cecília, tal qual acontecera com o romance de Schnitzler, Breve Romance de um Sonho, tornado De olhos bem fechados por Kubrick, apresenta uma trama datada sem data. A Bahia antiga nos aparece e nos desaparece como se brincasse de esconde-esconde no tempo, e não no espaço.
Grata a presença de atores baianos fazendo pontas, em um dos raros filmes realizados na Bahia em que Harildo Déda não aparece, em geral na condição de balconista de mercadinho ou coisa do tipo. Jussilene Santana (cada vez mais a cara do Spencer Tracy), Caco Monteiro, Diogo Lopes Filho, Carlos Betão, Deusi Magalhães, Bertho Filho (excelente, como carcereiro), Ricardo Fagundes, Jussara Matias, Bertrand Duarte – o inesquecível superoutro, agora careca –, Franklin Menezes, Edmilson Barros, João Lima – o pior palhaço de que tenho notícia, mas que dá até aula de formação para clowns, por aqui! –, Luciana Souza, Zéu Britto e até o cineasta argentino radicado na Bahia, Carlos Pronzato.
A Bahia esteve melhor, no filme de Cecília Amado, quando baixou nos coadjuvantes, verdadeira família do tão familiar Obá Arolu Jorge Amado.

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