Texto publicado originalmente no Empório do Direito: http://emporiododireito.com.br/costuras-entre-o-quinze-de-rachel-de-queiroz-e-quede-agua-de-lenine-cem-anos-de-solidao-e-de-guerra-do-direito-a-agua-no-brasil-por-ezilda-melo/
A primeira mulher a ocupar uma cadeira
na Academia Brasileira de Letras, Rachel de Queiroz, nasceu na cidade de
Fortaleza, no Ceará, neta de José de Alencar. “O Quinze” foi publicado
pela primeira vez em 1930 quando a autora contava com apenas 20 anos de
idade. De lá para cá essa obra ganhou notoriedade e entrou na edição
comemorativa de número cem, tendo, nesta edição especial da Editora José
Olympio, o Prefácio de Nélida Piñon.
“O Quinze” entrou para a História da
nossa Literatura mostrando o grande embate entre o homem e a natureza,
descrevendo situações trágicas e comoventes de um povo que sofre pela
falta de água: o povo do sertão brasileiro. Descreve a triste marcha do
retirante Chico Bento e sua família, saindo do sertão de Quixadá[1]
a pé, tentando percorrer milhares de quilômetros para chegar ao
Amazonas, sem receber nenhum tipo de assistencialismo social. Trata
também do amor irrealizado de Conceição, professora benfeitora e
defensora dos direitos humanos, e Vicente.
Brasil, um país de grande extensão de
terras e conhecido mundialmente por suas reservas naturais
hidrográficas. No entanto, nem todo o território brasileiro tem um clima
propenso às chuvas. A caatinga, vegetação nativa, do sertão nordestino
muito difere, por exemplo, da vegetação do litoral, do Pantanal, dos
Pampas ou da Amazônia. As plantas que compõem a paisagem sertaneja, como
a jurema, a oiticica, o pau d´arco, a aroeira, o umbuzeiro, o juazeiro,
dentre outras, são fortes e ensinam resignação porque secas pungentes
não as dilaceram: esperam meses, anos até que a chuva caia e floresçam
novamente.
Muitas civilizações se constituíram à
margem de rios, como por exemplo, a egípcia. Nas cidades do sertão
nordestino é comum um açude ou rio ser o principal motivo daquela cidade
crescer. Prova disso, por exemplo, é o Açude Itans da cidade de Caicó[2]
no Rio Grande Norte. Na atual seca no Nordeste Brasileiro, esta de
2015, a realidade dos sertanejos mudou muito em relação à seca de 1915,
numa visão comparativa de dois momentos históricos distintos. Hoje, não
se vê o sertanejo abandonando a terra e emigrando para outras áreas por
causa da seca. O sertanejo quer continuar na sua terra, pois é onde tem
suas raízes históricas e culturais. No entanto, há uma necessidade
imensa que o Estado reconheça a importância dos mananciais de água e
crie possibilidades dos sertanejos não sofrerem sem abastecimento[3] de água nos períodos de longas estiagens.
Albuquerque Júnior[4],
um dos referenciais para a discussão da identidade do que se entende
por nordestino, como também para discutir o problema da falta de água
no Nordeste, mostra que as regiões do nosso país foram inventadas como
antagônicas e excludentes. Nos anos 20-30 do século passado viu-se a
construção de um lugar de hegemonia para o Sul-Sudeste[5] e de inferioridade para o Nordeste.
A falta de água no Nordeste insere-se
numa questão política e jurídica. Politicamente, o discurso do combate à
seca ainda elege muitos dos representantes do Legislativo e do
Executivo, e juridicamente, a Constituição Federal garante o direito à
água como um direito fundamental, que deve ser efetivado[6].
O problema da falta da água era
exclusivamente do sertão do Nordeste, hoje se estende para vários
lugares do país, inclusive São Paulo. Ou seja, em cem anos as alterações
climáticas e a falta de cuidados ambientais fizeram com que uma área
rica em mananciais de água passasse por problemas que eram tidos como
exclusivamente dos nordestinos. O direito à água é de todos. Porém, como
diria Lenine, em seu mais recente trabalho, Carbono, cheio de
preocupações ambientais: “Quede água?[7].
Espera-se que a leitura da letra da música abaixo sirva para refletir
sobre um problema de todos os brasileiros e não somente dos sertanejos
da Caatinga e mais que isso, espera-se mudanças para que daqui a cem
anos a história seja melhor:
A seca avança em Minas, Rio, São Paulo
O Nordeste é aqui, agora
No tráfego parado onde me enjaulo
Vejo o tempo que evapora
Meu automóvel novo mal se move
Enquanto no duro barro
No chão rachado da represa onde não chove
Surgem carcaças de carro
O Nordeste é aqui, agora
No tráfego parado onde me enjaulo
Vejo o tempo que evapora
Meu automóvel novo mal se move
Enquanto no duro barro
No chão rachado da represa onde não chove
Surgem carcaças de carro
Os rios voadores da Iléia
Mal desaguam por aqui
E seca pouco a pouco em cada veia
O Aquífero Guarani
Assim do São Francisco a San Francisco
Um quadro aterra a Terra
Por água, por um córrego, um chovisco
Nações entrarão em guerra
Mal desaguam por aqui
E seca pouco a pouco em cada veia
O Aquífero Guarani
Assim do São Francisco a San Francisco
Um quadro aterra a Terra
Por água, por um córrego, um chovisco
Nações entrarão em guerra
Quede água? Quede água?
Quede água? Quede água?
Agora o clima muda tão depressa
Que cada ação é tardia
Que dá paralisia na cabeça
Que é mais do que se previa
Algo que parecia tão distante
Periga, agora tá perto
Flora que verdejava radiante
Desata a virar deserto
Quede água? Quede água?
Agora o clima muda tão depressa
Que cada ação é tardia
Que dá paralisia na cabeça
Que é mais do que se previa
Algo que parecia tão distante
Periga, agora tá perto
Flora que verdejava radiante
Desata a virar deserto
O lucro a curto prazo, o corte raso
O agrotóxico, o negócio
A grana a qualquer preço, petro-gaso
Carbo-combustível fóssil
O esgoto de carbono a céu aberto
Na atmosfera, no alto
O rio enterrado e encoberto
Por cimento e por aslfalto
O agrotóxico, o negócio
A grana a qualquer preço, petro-gaso
Carbo-combustível fóssil
O esgoto de carbono a céu aberto
Na atmosfera, no alto
O rio enterrado e encoberto
Por cimento e por aslfalto
Quede água? Quede água?
Quede água? Quede água?
Quando em razão de toda a ação humana
E de tanta desrazão
A selva não for salva, e se tornar savana
E o mangue, um lixão
Quando minguar o Pantanal e entrar em pane
A Mata Atlântica tão rara
E o mar tomar toda cidade litorânea
E o sertão virar Saara
Quede água? Quede água?
Quando em razão de toda a ação humana
E de tanta desrazão
A selva não for salva, e se tornar savana
E o mangue, um lixão
Quando minguar o Pantanal e entrar em pane
A Mata Atlântica tão rara
E o mar tomar toda cidade litorânea
E o sertão virar Saara
E todo grande rio virar areia
Sem verão, virar outono
E a água for commoditie alheia
Com seu ônus e seu dono
E a tragédia da seca, da escassez
Cair sobre todos nós
Mas sobretudo sobre os pobres outra vez
Sem terra, teto, nem voz
Sem verão, virar outono
E a água for commoditie alheia
Com seu ônus e seu dono
E a tragédia da seca, da escassez
Cair sobre todos nós
Mas sobretudo sobre os pobres outra vez
Sem terra, teto, nem voz
Quede água? Quede água?
Quede água? Quede água?
Agora é encararmos o destino
E salvarmos o que resta
É aprendermos com o nordestino
Que pra seca se adestra
E termos como guias os indígenas
E determos o desmate
E não agirmos que nem alienígenas
No nosso próprio habitat
Quede água? Quede água?
Agora é encararmos o destino
E salvarmos o que resta
É aprendermos com o nordestino
Que pra seca se adestra
E termos como guias os indígenas
E determos o desmate
E não agirmos que nem alienígenas
No nosso próprio habitat
Que bem maior que o homem é a Terra
A Terra e seu arredor
Que encerra a vida aqui na Terra, não se encerra
A vida, coisa maior
Que não existe onde não existe água
E que há onde há arte
Que nos alaga e nos alegra quando a mágoa
A alma nos parte
A Terra e seu arredor
Que encerra a vida aqui na Terra, não se encerra
A vida, coisa maior
Que não existe onde não existe água
E que há onde há arte
Que nos alaga e nos alegra quando a mágoa
A alma nos parte
Para criarmos alegria pra viver
O que houver para vivermos
Sem esperanças, mas sem desespero
O futuro que tivermos
Quede água? Quede água?
Quede água? Quede água?
O que houver para vivermos
Sem esperanças, mas sem desespero
O futuro que tivermos
Quede água? Quede água?
Quede água? Quede água?
Notas e Referências:
[1]
QUEIROZ, Rachel. O Quinze. 100 ª edição. Rio de Janeiro: Ed. José
Olympio, 2015.p.124: “Iam para o desconhecido, para um barracão de
emigrantes, para uma escravidão de colonos… Iam para o destino, que os
chamara de tão longe, das terras secas e fulvas de Quixadá, e os
trouxera entre a fome e mortes, e angústias infinitas, para os conduzir
agora, por cima da água do mar, às terras longínquas onde sempre há
farinha e sempre há inverno…”
[2]
Cidade que ficou conhecida, dentre outras coisas, pela pesquisa de
Villa Lobos sobre o cancioneiro popular brasileiro, em refrãos já
cantados por Milton Nascimento, Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Alceu
Valença, Zé Ramalho: “Ó, mana, deixa eu ir ó, mana, eu vou só ó, mana,
deixa eu ir para o sertão do Caicó. Eu vou cantando com uma aliança no
dedo eu aqui só tenho medo do mestre Zé Mariano Mariazinha botou flores
na janela pensando em vestido branco véu e flores na capela”. Cidade de
Santana, dos bordados, da carne de sol e das pessoas hospitaleiras.
[3]
http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2015/07/caern-divulga-funcionamento-de-rodizio-de-agua-em-20-cidades-do-rn.html
[4]
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes;
prefácio de Margareth Rago. 5ª edição – São Paulo: Cortez, p.343: “O
Nordeste, assim como o Brasil, não são recortes naturais, políticos ou
econômicos apenas, mas, principalmente, construções
imagético-discursivas, constelações de sentido. (…) O Nordeste, na
verdade, está em toda parte desta região, do país, e em lugar nenhum,
porque ele é uma cristalização de estereótipos que são subjetivados como
característicos do ser nordestino e do Nordeste. Estereótipos que são
operativos, positivos, que instituem uma verdade que se impõem de tal
forma, que oblitera a multiplicidade das imagens e das falas regionais,
em nome de um feixe limitado de imagens e falas-clichês, que são
repetidas ad nausem, seja pelos meios de comunicação, pelas artes, seja pelos próprios habitantes de outras áreas do país e da própria região”.
[5]
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes;
prefácio de Margareth Rago. 5ª edição – São Paulo: Cortez, p.55: “O
autor vai, ao mesmo tempo, reafirmando a imagem que já possuía do
Nordeste, por meio de leituras anteriores e, em contraponto, construindo
uma imagem par ao Sul. Ele chama atenção para o próprio momento de
invenção daquele espaço, com a mudança de designação de Norte para
Nordeste e insiste em qualifica-lo depreciativamente”.
[6]
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos Fundamentais: uma teoria
geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. Ed.
rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.
[7] Música de Lenine e Carlos Rennó. Pode ser acessada: http://www.vagalume.com.br/lenine/quede-agua.html#ixzz3oCS1i5jU