sexta-feira

Mulheres cientistas são protagonistas na luta contra o coronavírus

 


A pandemia da COVID-19 trouxe impactos culturais, econômicos e sociais no mundo inteiro. Desde março, instalada oficialmente no Brasil, tem impactado de diversas formas as relações humanas, trabalhistas, sanitárias, médicas, existenciais, políticas, econômicas, sociais, jurídicas, psicológicas, artísticas de uma forma transdisciplinar. Não se fala mais em outra que não seja o coronavírus. Numa crise dessas, já temos como apontar para uma situação: as mulheres são as mais afetadas.

Uma das formas de se perceber essa questão se dá na sobrecarga do trabalho doméstico, na necessidade/preocupação de gerar renda, no cuidado com crianças, adolescentes,  idosos, familiares doentes e na falta de tempo para o autocuidado com a  sua saúde, nos aspectos físico e mental, são alguns dos efeitos dessa realidade na vida de mães, trabalhadoras formais e informais, das mulheres em seus mais diversos campos de atuação e experiências, especialmente das classes sociais mais fragilizadas economicamente.

Diante disso, essa coletânea, feita com a colaboração de 78 autores, distribuídos em 36 artigos, com um olhar voltado para as consequências da pandemia na vida das mulheres, sem nenhum tipo de financiamento/custeio para a pesquisa, a não ser a colaboração entre todos que participaram, propõe apresentar dados locais, discutir problemas, fazer análise crítica de situações enfrentadas no cotidiano das mulheres no contexto da pandemia.

Uma iniciativa conjunta firmada entre a parceria do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) e do Ministério da Saúde (MS), por meio do Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (Decit/SCTIE), abriu chamada de apoio a pesquisas que visam o enfrentamento da COVID-19, suas consequências e outras síndromes respiratórias, sendo destinado o valor de R$ 50 milhões. As linhas de pesquisa apoiadas são nos temas de:  Tratamento -  estudos para avaliação de alternativas terapêuticas para a COVID-19;  Vacina - Estudos para desenvolvimento de vacinas preventivas e/ou terapêuticas contra COVID-19;  Diagnóstico - Aprimoramento e desenvolvimento de novos testes diagnósticos para COVID-19 e Avaliação da acurácia de testes diagnósticos para COVID-19 ; Patogênese e História Natural da Doença - Desenvolvimento de estudos para avaliação da patogênese e da história natural da doença causada por SARS-CoV-2; Carga de Doença - Desenvolvimento de estudos para avaliação da carga de doença da COVID-19; Atenção à Saúde - Estudos para avaliação da atenção à saúde nos três níveis de complexidade frente à epidemia de COVID-19;  Prevenção e Controle.

Percebe-se claramente um montante na área de tecnologia, mas uma falta de projeto de pesquisa que privilegie as consequências sociais, jurídicas, trabalhistas, para citar algumas que se ligam diretamente com a grande área das humanidades. A falta de investimento em ciências sociais no nosso país é um problema crônico sistêmico. De acordo com Foucault, na obra As palavras e as coisas (1981, p. 10), os códigos fundamentais de uma cultura – aqueles que regem a sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas práticas – ficam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar.

Chamamos atenção sobre a importância de pesquisas sobre o impacto da COVID-19 nas mulheres brasileiras de baixa renda, das trabalhadoras informais, das trabalhadoras formais que cumulam os trabalhos domésticos, das mulheres do sertão, das ribeirinhas, das indígenas, das periféricas de modo geral, das moradoras de rua, das vítimas de violência doméstica, das presidiárias, das grávidas e lactantes, das mulheres que estão na linha de frente atuando no combate da famigerada pandemia, para que possamos ter dados oficiais que sejam trabalhados de forma integrada e possamos avançar para que não deixemos as mulheres nessa condição de desproteção nas crises que surgirem. Simone de Beauvoir já anteviu, há mais de 60 anos atrás, que em qualquer crise que venha a ocorrer serão as mulheres que mais impactos sofrerão. Pensar em alternativas para melhorar as condições de vida das mulheres é essencial enquanto projeto político de um país.

  Há observatórios de pesquisa da pandemia em funcionamento em algumas instituições de ensino que foram beneficiadas com bolsas na área de farmácia e telemedicina. No entanto, há a necessidade de um observatório que mapeie os impactos da pandemia na vida das mulheres brasileiras, de Norte a Sul do país, em seus aspectos locais e regionais, observando as diferenças a partir dos dados reais. 

Esse livro chega com a pretensão de aglutinar textos que evidenciam,  problematizam e apontam perspectivas sobre os impactos da pandemia sobre as várias faces de mulheres múltiplas, para que seja evidenciado o quanto esse tema tem consonância com um problema real. É preciso investigar e pesquisar cientificamente soluções para controlar a pandemia, mas não se pode esquecer a necessidade de uma pesquisa social sobre os impactos da covid-19 na população brasileira, em especial no que se refere quanto ao impacto na vida das mulheres.

A Profa. Maria Clotilde Perez (https://prp.usp.br/usp-e-covid-19/), criou um projeto de pesquisa que reúne pesquisadores do Brasil (USP), Chile, Argentina e Espanha e tem como objetivo central construir um mapa da Pandemia do COVID-19, fundamentado na articulação Comunicação e Sociedade, a partir dos eixos:  1) Biologia: possibilidades e limites, 2) Publicidade e marcas no contexto do Covid-19,  3) Ódio social (agressões, violência, polarizações…), 4)  Cultura material do isolamento, 5) Comunicação governamental, 6) Implicações público x privado, 7) Estética da morte (ocultação e mostração) e 8) Os sentidos e significações do confinamento (violência contra mulher, contra crianças, aumento do alcoolismo, obesidade, consumo de apps de sexo, caos…). Os resultados servirão de fundamentação contextual e analítica para inúmeros outros projetos de pesquisa, decisões no âmbito da comunicação pública e privada, definição de estratégias estéticas no âmbito da Comunicação na interface com as Ciências Sociais, subsídio para conteúdos e matérias jornalísticas, fundamento para desenvolvimento de produtos e serviços entre outras aplicações e desdobramentos em docência e extensão.  Outro projeto de pesquisa interessante é o Resiliência Financeira das Cidades Contemporâneas, do IEA. Estudo da resiliência orçamentária, medidas emergenciais e de contenção da COVID-19 em regiões metropolitanas; resiliência de comunidades fragilizadas na COVID-19: efetividade e consequências do isolamento social e das políticas de proteção do governo federal; resiliência de serviços essenciais em tempos de crise e impactos orçamentários, sob responsabilidade do Prof. André Aquino da Faculdade de Economia e Administração de Ribeirão Preto, e que conta com diversos colaboradores.

Há um estudo em andamento sobre análise do espalhamento da epidemia no interior do país, por meio de dados de GPS de celular de uma empresa privada (InLoco), que colabora com a pesquisa. Com base nesses dados são identificados os padrões de movimentos das pessoas e estima-se para onde há mais probabilidade da epidemia se propagar, sob responsabilidade do Prof. Dr. Pedro da Silva Peixoto (IME).

 Há pesquisa sobre Controle e monitoramento de mães e recém-nascidos suspeitos/confirmados para COVID-19. Trata-se de um estudo epidemiológico que será realizado por meio da análise de dados secundários de recém-nascidos e mães classificados como caso suspeito ou confirmado por COVID-19 nos sistemas de informação eSUS-VE e SIVEP-Gripe, residentes no Ceará, Rio de Janeiro e Ribeirão Preto/São Paulo nos anos de 2020 e 2021 Coordenador: Maria Vera Lúcia Leitão Cardoso, UFC. Participantes: Luciana Mara Monti Fonseca, EERP-USP, Elisa da Conceição Rodrigues, UFRJ, Marialda Moreira Christoffel, UFRJ. Também a pesquisa sobre o Impacto dos protocolos para controle da COVID-19 na instituição do aleitamento materno em população atendida em hospitais brasileiros: projeto BRACOVID – Breastfeeding Brazil COVID. Estudo descritivo prospectivo, nos meses de maio a agosto de 2020 que busca avaliar os níveis de ansiedade, desesperança, a efetividade do aleitamento materno, a viabilidade da execução dos protocolos em domicílio e os índices de aleitamento materno exclusivos, nas mães submetidas as normas dos protocolos de controle da COVID-19, na ocasião do nascimento dos seus neonatos em diferentes instituições pelo Brasil,  coordenadora por Walusa Assad Gonçalves Ferri, FMRP-USP, com a participação de Luciana Mara Monti Fonseca e Edilaine C. Silva Gherardi Donato da EERP-USP, Fábia Martins Pereira Celini e Marisa Mussi da FMRP-USP. E, por último, citamos o Mapeamento e análise das normas jurídicas de enfrentamento da COVID-19 no Brasil: Caracterização, cartografia e potenciais impactos sobre os direitos fundamentais, coordenado pela Profa. Dra. Deisy de Freitas Lima Ventura, Departamento de Saúde Ambiental e Prof. Dr. Fernando Mussa Abujamra Aith, Departamento de Política, Gestão e Saúde, FSP.

Esse volume 01 da Coleção “Pandemia e Mulheres” dialoga com as questões de gênero, classe e raça. Serve como um mapeamento inicial que aglomera várias vozes sobre a questão da mulher no Brasil pandêmico. Será seguido pelo volume 02 desta mesma coleção.

 

Entrevista para a Editora Empório do Direito para divulgação da obra "Arte, emoção e caos no Tribunal do Júri de Ariano Suassuna"

 




1. Qual a proposta do livro "Arte, Emoção e Caos no Tribunal do Júri de Ariano Suassuna", republicado recentemente pela Studio Sala de Aula?

O presente livro tem como objetivo analisar a instituição do Tribunal do Júri e seus personagens do ponto de vista filosófico, jurídico e artístico. Para tanto, verificou-se o Direito como discurso jurídico complexo e transdisciplinar e como uma Obra Aberta. Percebeu-se o Direito pelo paradigma da emoção, subjetividade e incerteza, ao invés da razão, certeza e objetividade, usando para tanto a Teoria do Caos. O Direito foi visto como processo de espetacularização, para tanto usou-se a exploração midiática dos crimes de competência do Tribunal do Júri. Identificou-se as intersecções entre o Tribunal do Júri e a Literatura, no “Auto da Compadecida” de Ariano Suassuna. Metodologicamente a estrutura do presente livro, deu-se em formato de uma peça teatral, sendo composta por um prólogo, três atos e o epílogo. Enveredou-se pelo campo do Direito e Arte, especificamente no dialogismo entre Direito e Literatura, como proposta de perceber o processo criativo-artístico construído na representação do Tribunal do Júri na obra de Ariano Suassuna. Dentre autores de diversas formações científicas, propõe-se um estudo sobre os personagens do Tribunal do Júri, com base numa investigação legislativa brasileira do Código de Processo Penal, como também em Nietzsche, através do método apolíneo-dionisíaco, e em Ariano Suassuna, na obra “Auto da Compadecida”.

2. Quais as motivações para escrever sobre este tema?

As motivações surgiram diante de um vazio na literatura jurídica que não coloca a Arte, a Emoção e o Caos como significativos para o Direito. Portanto, estudar o instituto do Tribunal do Júri a partir dessa tríade vem ao encontro de procurar novas vertentes de explicar o fenômeno jurídico numa visão transdisciplinar.

3. Conte como foi o processo de pesquisa para escrever.

A pesquisa se originou da Dissertação de Mestrado que defendi em setembro de 2014 na Universidade Federal da Bahia, sob orientação do Prof. Nelson Cerqueira. Depois, fiz uma revisão, reescrevi algumas partes, refleti sobre outras questões, o que culminou no presente livro. Também durante a pesquisa tive a oportunidade de assistir a penúltima aula espetáculo de Ariano Suassuna, em julho de 2014, uma semana antes do seu falecimento.

4. Quais as principais conclusões adquiridas com a obra?

Neste trabalho teve-se como escopo analisar que o discurso jurídico é construído e interpretado, tendo como parâmetro principal de interpretação, a emoção.  Entendeu-se o Direito enquanto processo criativo, através do qual cada personagem exerce papel importante, em que o leitor ou espectador exerce o ato de interpretar e julgar. Ao invés de analisar o Direito pelo paradigma da razão, tecnicismo, objetividade e certezas, analisou-se pela emoção, subjetividade e incertezas. Percebeu-se que o Tribunal do Júri é um teatro vivo, onde promotores, advogados, magistrados e jurados participam ativamente, ao decidirem pela absolvição ou condenação, numa dança viva em que se deparam com a possibilidade de estabelecer um feixe de relações com base em suas emoções pessoais, muito próximo do conceito de Obra Aberta de Eco. No discurso do Tribunal do Júri, o orador é tomado pela palavra e conduzido por ela a lugares distantes. O bom intérprete no palco do teatro jurídico é aquele que sente o que foi dito pelas partes conflitantes no ringue que a oratória propicia. Concluiu-se que a emotividade dá-se na racionalidade do Tribunal do Júri

Abaixo a apresentação de Alexandre Coutinho Pagliarini, o Prefácio de Paulo Ferreira da Cunha e o Posfácio de Alexandre Morais da Rosa.


APRESENTACAO[1]

 

            “O presente livro se origina de dissertação de mestrado defendida na tradicional Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – UFBA”. Este seria o modo mais vetusto – e chatíssimo! – de dar início a este prefácio; mas aqui não me utilizarei de tal sisudez porque tudo foi tão diferente... Logo, se eu apresentasse algum indício de que aqui eu viria a ser o formal da história, provavelmente não teria sido convidado para prefaciar um escrito que foi apresentado na forma de peça teatral, o que o diferencia – de cara! – das dissertações de mestrado apresentadas diante de bancas formadas por juristas formalistas ou não abertos à interlocução entre Direito e arte. A propósito, de agora em diante não mais escreverei direito com inicial maiúscula porque senão teria de também usar um “a” maiúsculo para a palavra arte!

            Quando criança, logo que pensava em direito, vinha-me à cabeça a cena de algum filme americano em que se digladiavam acusação e defesa para transformar um mero evento ocorrido no mundo físico em fato jurídico a ser levado em conta pelo Tribunal do Júri em seu processo mental decisório.

            Tribunal do Júri... uma coisa leva à outra: passo então a pensar em dois advogados da minha cidade natal, Pouso Alegre, Sul de Minas Gerais. Os nomes deles eram Marçal Etienne-Arreguy e Rômulo Coelho. Ambos gostavam de tomar umas e outras. Marçal fazia isso logo antes de entrar em cena de modo sempre fulminante e arrasador no Tribunal do Júri. Rômulo fazia o mesmo, só que depois da sessão. Marçal era mais intelectual; aliás, Marçal foi o homem mais inteligente que conheci em Pouso Alegre, falava francês com a fleuma de um Voltaire. Rômulo era mais técnico e mais astuto. Marçal gritava contra a promotora recém concursada, dizendo-lhe “auto lá promotora, pela ordem senhor juiz-presidente, esta senhora foi minha aluna e eu não lhe ensinei isso na Faculdade de Direito; que ela respeite-me!”. Rômulo apelava para a emoção e, para levar o Júri às lágrimas numa certa ocasião em que atuava como assistente de acusação, narrava que “aquele mecânico João acordava sempre às seis da manhã para ir consertar carros na oficina, e, antes de voltar para casa doze horas depois, lavava as suas mãos encardidas para poder acariciar o rosto e os cabelos loirinhos de sua filha Maria, de treze anos, até que num triste entardecer não pôde repetir este gesto porque encontrou Maria estuprada e morta por este canalha que se encontra aqui sentado no banco dos réus”. De fato, a promotora novata tremia ao ouvir os berros de seu sábio ex-professor, e isso produzia efeitos no Júri, assim como também de fato todos os jurados populares choravam ao imaginar Maria morta e estuprada nos braços pesarosos de seu desesperado pai João.

            “O Tribunal do Júri é um teatro vivo!”; estes são dizeres da Ezilda Melo, a menina-mulher que defendeu a dissertação e que a transformou neste maravilhoso livro. Na oportunidade da defesa, cheguei bem cedo à UFBA, cumprimentei a banca composta por Nelson Cerqueira – da área da literatura – e pelos juristas Sebastian Borges de Albuquerque Mello e o meu amigo Alexandre Morais da Rosa. Beijei e abracei Ezilda e coloquei-me sentado exatamente em frente à sua lateral direita. Ela estava altiva, linda, toda de vermelho (lady in red): uma maravilha, que beleza...

            Beleza devia ter sido escolhida pela autora do livro também como uma das palavras chave que compuseram a dissertação original, não só por conta dos atributos internos e externos de Ezilda, mas por causa do que ela escreveu em si. Digo isso porque a audácia de se correlacionar direito e arte numa dissertação de mestrado não é talento que possa ser posto à prova por muitos; portanto, Ezilda é única se eu levar em conta que nunca vi nem ouvi falar que alguém tenha defendido dissertação ou tese de direito na forma metodológica de peça teatral: e ela teve essa cara de pau, e fez isso de modo estupendo.

            A autora analisa o instituto do Tribunal do Júri tendo em mãos os elementos constitutivos da teoria do caos: emoção, subjetividade e incerteza. Tais elementos constitutivos são contrários aos que compõem a teoria positivista de Hans Kelsen e Otto Pfersmann (e minha própria, posto que sou o tradutor deste último em língua portuguesa), quais sejam: razão, certeza e objetividade. Aliás, defendem Kelsen e Pfersmann[2] que a vontade (decorrente do uso da razão) é a base da teoria positivista do direito. A partir de sua base de análise, sem dúvida, a autora trilha um caminho que só pode transcorrer pela teoria do caos num discurso transdisciplinar e complexo que considera o direito como obra aberta; isso significa que Ezilda acertou a estrada e chegou ao destino que havia escolhido. Caso tivesse tomado a estrada positivista, ela teria comprado uma passagem para Paris num avião que fora parar em Tóquio.

            Em certo momento, questiona-se a autora se o teatro que se faz no discurso jurídico – pela defesa e pela acusação – é uma linguagem pela qual o direito caminha para o convencimento dos destinatários da verdade construída: os juízes. Respondo eu que sim; com Lourival Vilanova e Paulo de Barros Carvalho, ouso dizer que direito é linguagem à medida que só terão relevância jurídica os eventos do mundo físico que tiverem sido vertidos em linguagem segundo as normas do próprio direito, de modo que, para a linguagem do direito, a morte da vítima Maria (filha de João) ocorreu no momento em que o Tribunal do Júri condenou o réu – e não no instante do estupro e do estrangulamento em si. Assim, a verdade sempre decorrerá de um relato juridicamente relevante – mas teatralmente vertido em linguagem.

            Emotividade e racionalidade se fundem no Tribunal do Júri; esta é a principal conclusão a que chega este livro em que Foucault foi a base para a análise do discurso jurídico, Nietzsche o fundamento do método apolíneo-dionisíaco e Ariano Suassuna – com o seu incomparável Auto da Compadecida – o pano de fundo para a teatralidade intrínseca ao Tribunal do Júri real.

            Defesa de dissertação assim só podia ter ocorrido na Bahia, o Estado que inventou o Brasil: terra de Castro Alves, da beleza, da emoção, do caos urbano que causa incertezas e da magia da poesia. E já que a Bahia é marcada por tantos elementos e tantas linguagens, em homenagem à imaginação dessa grande autora Ezilda Melo, termino a apresentação de seu livro assim:

“Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa
rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.

'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos — beijá-la.

Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! — tu és a virgem das campinas!
"Virgem! — tu és a flor da minha vida!..."
[3]

 

PREFÁCIO:

Prefácio de Paulo Ferreira da Cunha[4]

LIBERTANDO O DIREITO

 COM ENGENHO E ARTE

 

 

 

Foi para mim um prazer ler esta obra, e é um gosto prefaciá-la.

Este livro insere-se já num tempo novo, um momento significativo de viragem. E uma viragem que anuncia (e já representa) um corte epistemológico muito sério e regenerador. Alguns diriam "pós-moderno", mas tal expressão parece já estar um pouco antiquada, pelo que a evitaríamos.

Há, do princípio ao fim deste texto, não um polvilhar de novidades para doirar o conjunto e eventualmente épater le bourgeois. Há um sopro diferente de renovação, mas o texto já se coloca num outro lugar, já contempla a juridicidade de uma diversa perspectiva.

Não é o adorno do novo sobre o velho, não são odres novos para vinho antigo, é já vinho e odres novos, e com toda a legitimidade que os velhos, vinho e odres.

A sensação de legitimidade da démarche empreendida dá-lhe segurança. Estávamos e ainda estamos a precisar muito de estudos jurídicos inovadores que não sejam tentâmens pomposos ou em bicos-de-pés, trabalhos a um tempo com segurança e sem petulância, com naturalidade. Com segurança e com honesto estudo. Com robustês e agilidade. Afinal, com engenho e arte, como diria Camões. É este um caso. Só que é esta uma segurança não alicerçada meramente no cabedal do passado, mas ancorada igualmente no tipo de trabalhos que se farão no futuro, sem complexos. Não os únicos, mas dando-nos uma amostra iluminadora de uma das formas, modelos, gêneros dos que se farão...

Obviamente que longe de nós saudar simplesmente a novidade pela novidade. Esse é um dos mais correntes e medíocres pecados da nossa contemporaneidade e da crítica normal. Não. O que está aqui em causa é já um livro de um novo tempo e para um novo tempo.

Virá certamente o dia em que movimentos, correntes, escolas, que foram vanguardistas, que ainda o são, virão a ser ou atirados para o caixote do lixo da História ou incorporados no novum que haja entretanto nascido. O que o livro da Professora Ezilda Melo nos traz é uma antecipação dessa triagem, especialmente com a incorporação sem pompa e com a maior naturalidade do que é bom e está bem, aí onde o encontrou, como diria Van De Velde.

Com efeito, poder-se-ia dizer que este livro, que começa o seu título precisamente por um alargamento do tema Direito & Literatura (Law & Literature), enquanto Direito e Arte, e que logo no título ainda remete para a Emoção (inter alia) e um grande autor como Ariano Suassuna, conhecido sobretudo pelas Letras, se insere precisamente nessa subárea da Filosofia do Direito. Mesmo assumindo-se como de Direito e Arte, não deixaria este escrito de se encontrar, pelo seu conteúdo, mais ligado ao Direito & Literatura.  Ora as relações entre uma e outra coisa (quer se fale de Arte em geral quer de Literatura em particular) foram progredindo desde o posicionar-se o Direito contra a Arte e a Literatura (quantos processos absurdos e inquisitoriais a obra de arte inovadora não suscitou!), em muitos casos, até uma reconciliação integradora, a que já se chamou "Direito com Literatura", depois de várias fases intermediárias.

Mas assim já não é. Já não estamos, nesta obra, quer ela queira quer não (quer ela o desejasse quer não: as obras não são dos seus autores, mesmo durante a feitura, e muito menos depois...), no domínio estrito dessa subárea jurisfilosófica apenas. Pelo contrário, e mais além, encontramo-nos num mundo novo: no terreno vasto e a perder de vista de um Direito, mais que pensado e repensado, libertado[5]. Que obviamente é Direito com Literatura e Arte, e naturalmente convoca a emoção e dá voz e vez aos artistas e à forma mentis artística. E tão naturalmente que o estilo flui sem esforço, e tão obviamente assim é que já nem nos damos conta assim tanto disso.

Sentimo-nos assim transportados a um oásis do direito futuro no nosso tempo e ainda no nosso direito. Não que se trate de ficção ou futurologia. Mas pelo estilo que antecipa a habitualidade de tópicos e formas de abordagem que não são ainda habitualmente os nossos.

Não esperamos dos juristas mais habituados a uma reverência rígida e cadavérica uma adesão muito grande a esta obra, mas ela prescinde bem dessa adesão. Há contudo certas obras de viragem que podem ter virtualidades inusitadas, e insuspeitadas: quais sejam as de prepararem o terreno para a conversão de juristas mais clássicos, mas inteligentes e no fundo inquietos e insatisfeitos, a novos ventos.

Para isso são necessárias obras solidamente engastadoras do futuro no passado. Capazes de mostrar que o seu autor poderia, se quisesse, ter as maiores honras no cursus honorum corrente e tradicional, em sintonia com o estilo rebarbativo imperante, mas que, anão aos ombros de gigantes como diria São Bernardo, foi capaz de subir mais alto e ver mais longe. Achamos que a Professora Ezilda Melo conseguiu isso: prova que é uma jurista perfeitamente formada no arsenal do passado, mas que não se contenta com ele, e sabe que navegar é preciso.

Naveguemos, pois, com esta obra, e mais longe...

Este livro deu-me uma grande alegria, porque me transportou para um mundo futuro do Direito com cultura, com arte, com literatura, com ciências sociais, não como postiços para impressionar alguns, mas como parte de um saber jurídico global, holístico e até pós-disciplinar, para lembrar os estudos do catalão Mayos, aliás também grande amigo do Brasil.

Por coincidência, esta sensação, este estado de espírito, parece-nos abeirar-se muito da aproximação à noção de valor em Johannes Hessen. Porque, com a leitura desta obra, nos quedamos com uma sensação de plenitude: uma felicidade calma, não de contemplação acrítica e de adesão cega, mas a sensação de que as coisas estão bem e fazem sentido.

Não sei que valor concretamente se encarna nesta obra. Mas certamente algo terá a ver com a Justiça, que é um pleno, perpétuo e contante suum cuique. Aqui há um dar o seu a seu dono num estudo de Direito, mas um Direito que convive com a vida, real e epistémica, com naturalidade e com sentido da complexidade e vastidão do Mundo... Porém, sente-se aqui também, ao menos, um latejar em pano de fundo de verdade e de beleza...

Um Direito destes, remetendo para tais valores, é o Direito por que andamos lá fora a batalhar: de um novo paradigma fraterno e humanista[6].

Fraterno no sentido político de ir até mais além (conciliando-as) a liberdade e a igualdade, que separadas só fabricam infernos.

Humanista quer no sentido social de Humanidade e humanização, como no sentido epistémico de enciclopédica, racional e jubilosa nova Renascença, de cultivo dos cânones que valem a pena cultivar, como os clássicos, e de profunda inovação, com obstinado rigor leonardiano, com a magia de um Rafael que tira a estátua da sua prisão de mármore...

É numa prisão, não de mármore mas de granito, sólido e escurecido pela patine do tempo, que tem vivido o Direito nos seus tempos de clausura: primeiro objetivista romanista e depois de subjetivismo burguês, em todos os casos materialistas. O Direito que se nos anuncia não renuncia a um vasto património, a uma História fascinante, mas encontra-se mais além...

Disse uma vez Ariano Suassuna: "Arte pra mim é missão, vocação e festa". Poderá um dia não diríamos o Direito vivido e sofrido, mas ao menos o Direito pensado, estudado e em criação sê-lo também?

É nessas caminhadas que se insere este livro. Por vezes acreditando tanto no caminho que tememos aqui e ali vá depressa demais... Mas não vai. Já vamos todos atrasados.

 

 

POSFÁCIO:

Posfácio de Alexandre Morais da Rosa - Doutor em Direito (UFPR). Juiz de Direito (TJSC). Professor Adjunto (UFSC e UNIVALI)

 

 

Ousadia é a marca do livro de Ezilda Cláudia de Melo. Transitando pelo Direito protagoniza a colocação do mestre Ariano Suassuna no ambiente kafkiano do julgamento em plenário de Júri. A partir do “Auto da Compadecidade” e seus personagens, resgatando suas falas e defesas, de alguma forma as profanando, também, desloca os sentidos que podem ser invocados, a cada momento, no jogo de argumentos que é o julgamento em plenários, com suas reviravoltas e surpresas. O livro antes opera uma discussão entre uma compreensão apolínea e dionísica do mundo. Nessa dicotomia, contudo, não podemos suportar, por ser demais, a morte que se avizinha em Dionísio e seu excesso, bem assim tolerar a vida arrumadinha e certinha de Apolo, dentro da luz e da ordem, por ser de menos. A ambivalência Apolo-Dionísio parece ser o estratagema de quem consegue sustentar seu desejo, embora não seja, claro, fácil. O discurso jurídico, por sua vez, apresenta-se na forma racional, apolínea, cheia de consciência, ordem e progresso. E é muito chato. Aprendemos com Luis Alberto Warat que o discurso da ciência é importante, ainda que não possa dar conta de tudo. Há um resto de desejo que sempre nos move adiante. O discurso com Dionísio concede o para além do prazer, da ordem do gozo. A promessa de um dia sermos feliz, embora seja sempre um sonho a se realizar, pois nunca chega. Do livro que o leitor pode ter acesso, talvez a primeira leitura não faça Justiça a todo o enredo. É preciso certo tempo para poder o saborear...

            Somos legatários de Luis Alberto e Warat na interlocução entre Direito e Literatura. Por isso seguirei Warat em Dona Flor e Seus dois maridos[7]. Autorizado pelo autor, no início de seu livro, seguirei parafraseando/copiando sem aspas, tornando a leitura mais escorreita: mais gostosa. Warat percebe em Dona Flor a heroína da poligamia dos significados e do imaginário erotizado que sobreviveu/resplandeceu frente a tantas tentativas de castração, feitas em nome de uma cultura aparentemente sem manchas. E a castração é, sobretudo, a poda do desejo, cabendo-nos questionar o tido por inquestionável. Em Vadinho o solto, preguiçoso, cara de pau, jogador e perdulário que vai até o fundo dessa malandra experiência que é estar vivo; sentindo-se parte desse mundo louco da razão. Já Teodoro Madureira é o meticuloso, insosso, dono de uma cultura sem surpresas, um homem que nunca sai de suas gavetas, tedioso, que pede permissão e hora para amar, dono de uma mania cartesiana de etiquetar tudo. Com Vadinho tudo pode ser misturado, o prazer surge, ressurge, renasce, mistura irresponsabilidade com desejos, fantasias, malandragem. O jogo de incertezas. Vadinho é capaz de mostrar o sentido erótico da vida, transformando o racional em erótico. Dona Flor deseja o novo, a vida em movimento. Com Teodoro Madureira a vida perde seu movimento, seu brilho, seu ardor. Torna-se a univocidade de atos e de desejos, repetidos no dia-a-dia. Respeitam-se tanto que nem se relacionam e, sem mistura não há relação. Vadinho faz aparecer a necesssidade/possibilidade de se desejar o novo, o desconhecido, o resgate da sedução. Invocando o carnaval diz que talvez possamos concentrar em Vadinho o carnaval e a folia, e em Teodoro Madureira a quaresma, os dias em que nossas vidas funcionam como uma oficina de controles inúteis, mas que servem, per se para justificar sua existência e bem alimentar os que nela mandam. Assim é que com Vadinho existe a presença constante do inesperado. Seu retorno da morte é o símbolo de como, pelo fantástico, podemos manter uma relação adúltera como real. É o marido sem o espírito da legalidade que a mulher sonha ter, para temperar a alquimia de ternura e segurança do desejo instituído. A volta de Vadinho permite a Dona Flor romper os ímpetos do desejo com o dever, aceitando o adultério como condição natural do casamento. É que não existe democracia sem marginalidade (adultério), sem uma louca cavalgada, o delírio febril, os ais do amor que vêm da experiência comum da gente, surgida nos momentos primordiais do cotidiano.

Existem coisas que se fazem e que não se pode ver”, diz Teodoro Madureira a Dona Flor, enquanto apaga a luz para amá-la. Toda uma cultura do pecado, que marca gerações desde o momento em que se concebe. A maioria de nós, filhos do segredo. Opondo Teodoro Madureira e Vadinho encontram-se definidos, para o imaginário de Dona Flor, os lugares do dever e do prazer. O prazer por prazer e por obrigação. Warat considera que o amor, em nossas sociedades, é burocrático e repressivo por apresentar um excesso de deveres. E o amor será um exercício democrático do prazer, quando se liberar de suas proibições e inocentar o prazer realizado fora do dever. 

Esse livro demonstra, faz aparecer, o paradoxo entre o prazer/fruição e os deveres reproduzidos pela sociedade gregária de uma moral cristã que ajusta nossos desejos ao modelo de ordem e legalidade racionalizado, escamoteando os sentimentos: o amor e a sedução. Ariano Suassuna apostou na salvação milagrosa. Não sei se teremos as mesmas chances. Enquanto isso, no binômio Apolo-Dionísio e Teodoro Madureira/Vadinho, tenhamos coragem para sustentar nossos desejos. É o que resta. E não é pouco.

 



[1] Alexandre Coutinho Pagliarini – Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa. Doutor e Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP.

[2] PFERSMANN, Otto. Positivismo jurídico e justiça constitucional no século XXI. 1 ed. Tradução e coordenação: Alexandre Coutinho Pagliarini. Prefácio: Jorge Miranda. Apresentação: Francisco Rezek. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 63.

[3]Antônio Frederico de Castro Alves (Baiano de Curralinho, nascido a 14 de março de 1847. Morreu em Salvador em 6 de julho de 1871). Foi um dos mais importantes poetas brasileiros. Disse uma vez: "Considero-me um poeta. Integrado no meu tempo. Cantei a natureza, a mulher, o amor e vivi a causa do meu século: entreguei-me inteiro à causa dos escravos". Castro Alves viveu pouco, porém, intensamente. É patrono da cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras. O poeta, que sofria de tuberculose, morreu prematuramente aos 24 anos. A cidade onde nasceu, hoje, chama-se Castro Alves.

 

[4] Paulo Ferreira da Cunha. Membro do Comité ad hoc para o Tribunal Constitucional Internacional. Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

 

[5] Mais recentemente, desenvolvemos esta última ideia no nosso livro Iniciação à Metodologia Jurídica. 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2014, máx. p. 165 ss.. E em Libertar o Direito. Do Problema Metodológico-Jurídico do nosso Tempo, "International Studies on Law and ducation", vol. XIX, http://www.hottopos.com/isle19/27-36PFC.pdf

[6] Para uma fundamentação e história destes conceitos: AYRES DE BRITO, Carlos. O Humanismo como Categoria Constitucional. Belo Horizonte: Forum, 2007. Idem. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 3.ª reimp. da 1.ª ed., 2006, p. 216 ss.; BITTAR, Eduardo C. B.. O Direito na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005. Idem. Razão e Afeto, Justiça e Direitos Humanos: Dois Paralelos Cruzados para  Mudança Paradigmática. Reflexões Frankfurtianas e a Revolução pelo Afeto. in Educação e Metodologia para os Direitos Humanos. São Paulo: Quartier Latin, 2008; CARDUCCI, Michele. Por um Direito Constitucional Altruísta, trad. port., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003; CARNEIRO, Maria Francisca. Direito, Estética e Arte de Julgar. Núria Fabris Editora: Porto Alegre, 2008; KUENG, Hans. Das Christentum. Wesen und Geschiche. trad. do fr. de Gemeniano Cascais Franco. O Cristianismo. Essência e História. Lisboa: Círculo de Leitores, 2012, p. 673 ss.; RESTA, Eligio. Il Diritto Fraterno. Roma/Bari: Laterza, 2002; STOLLEIS, Michael. Vormodernes und Postmodernes Recht, in “Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno”, Universidade de Florença, vol. 37, 2008; WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma Nova Cultura no Direito, 3.ª ed., São Paulo: Alfa-Omega, 2001 (1.ª ed. 1999); ZAGREBELSKY, Gustavo. Il Diritto Mite. Turim: Einandi, 1992. E o nosso livro Geografia Constitucional. Sistemas Juspolíticos e Globalização. Lisboa: Quid Juris, 2009, máx. p. 289 ss..

[7] WARAT, Luis Alberto. A ciência Jurídica e seus dois maridos. Santa Cruz do Sul: Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul, 1985.

segunda-feira

Artigo publicado no site Empório do Direito

 Publicação de artigo:

ORIGEM JUDAICA, ARTÍSTICA, NORDESTINA, JURÍDICA NO CENTENÁRIO DE CLARICE LISPECTOR E LOURDES RAMALHO - Empório do Direito (emporiododireito.com.br)


Texto completo:

ORIGEM JUDAICA, ARTÍSTICA, NORDESTINA, JURÍDICA NO CENTENÁRIO DE CLARICE LISPECTOR E LOURDES RAMALHO

 

Ezilda Melo[1]

 

“Há mulheres na vida real que são grandes genitoras de gerações de ideias, processos, genealogias, criaturas, períodos da sua própria arte, sempre se tornando mais sábias e se manifestando dessa forma”. Clarissa Pinkola Estés. In: A ciranda das mulheres sábias

 

Em dezembro de 2020, em homenagem ao centenário de Clarice Lispector, 36 autores da área jurídica fizeram nascer a coletânea “Por uma estética jusliterária clariciana: diálogos entre Direito, Literatura e Arte”. Nesse breve ensaio, proponho algumas linhas aproximativas entre Clarice Lispector Lourdes Ramalho, festejada teatróloga paraibana que também completou o centenário ano passado.

A vida se conta no instante do ocorrido e para além da memória de que se deixa tocar. Rememorar 100 anos é lembrar, apontar um farol, um porto, um caminho, uma dimensão, é reflexão, é singularidade, inscrição, exercício de interpretação. Organizar uma obra jurídica tomando como fio condutor a literatura de Clarice Lispector para homenageá-la em seu centenário é, antes de mais nada, um sinal de reconhecimento, seja pela escritora, mulher, artista, pensadora, intelectual, jornalista, mãe, pessoa, que deixou um legado.

Uma família em fuga do antissemitismo no leste europeu aportou em Maceió com uma criança nascida em 1920. Clarice, um dos maiores nomes da literatura brasileira, chegou ao Brasil para fugir da morte, da perseguição, da marca ancestral de separação da fraternidade entre as pessoas no mundo. Os fatos marcantes da vida pessoal da escritora giram em torno de mudanças e deslocamentos, de perseverança e pioneirismo, de textos e palavras que nos levam à outra dimensão. Viveu 57 e cada década de sua vida poderia ser retratada em filmes de época que prendem os espectadores do início ao fim.

Uma escritora sertaneja, que passou parte de sua vida produzindo sobre a influência das ibéricas, mouras e judaicas[2] no Nordeste, foi Lourdes Ramalho que nasceu em agosto de 1920, na cidade de Jardim do Seridó, no sertão potiguar. Ela e Clarice possuem em comum, para além da literatura,  e do centenário, a origem judaica. Um paralelo sobre as fases distintas da entrada dos judeus no Brasil e sua influência na literatura brasileira, ainda não tem investigação completa, apesar do trabalho de Regina Igel[3] sobre a produção literária dos judeus no Brasil nos últimos cem anos, destacando a temática judaica, que não foi o foco principal da obra de Lourdes Ramalho, nem de Clarice, por exemplo, já que nenhuma das duas se converteu ao judaísmo.

Lourdes Ramalho investigou sua origem genealógica e descobriu que seus ascendentes chegaram ainda no século XVII e praticavam a religião judaica no mais absoluto sigilo, no interior de suas casas, transmitindo o judaísmo secreta e oralmente, propiciando que se identifique o mimetismo, o silenciamento e não o pertencimento dos habitantes do sertão potiguar e paraibano, herdeiros do judaísmo. Lourdes Ramalho destacou que no Estado da Paraíba, nasceu a lenda da jovem Branca Dias, que aos 18 anos foi acusada[4] de judaísmo e queimada pela Inquisição. Apesar da grande quantidade de obras, a produção de Lourdes Ramalho continua desconhecida do grande público brasileiro, apesar de valorizada em Portugal e Espanha, o que por si só é demonstrativo da diferença de recepção das obras produzidas por mulheres e o silêncio na escrita especialmente quando se fala de um espaço geográfico discriminado historicamente como é o caso do sertão nordestino, onde o destaque que se tem, em regra geral, é para a autoria masculina. Para ter reconhecimento dentro da literatura brasileira não se pode exigir a masculinidade hetenormativa, a branquitude, as condições econômicas, nem que os escritores morem e sejam publicados apenas no eixo Rio-São Paulo. Fala-se em racismo epistêmico misógino e racista. Esse racismo também pode ser visto dentro de uma vertente geográfica.

 Quem fala sobre essa “clandestinidade”, no Prefácio da obra inédita “Chã dos Esquecidos”, edição comemorativa do centenário de Lourdes Ramalho, é uma estudiosa de sua obra, a Professora Valéria Andrade[5].  Diante da necessidade de valorização e visibilidade da escrita feminina, o referencial literário da escritora Lourdes Ramalho serve para verificação de formação identitária da mulher sertaneja, seja a retirante, a cigana, a negra estuprada, as tantas mulheres que possuem voz, vida, lamúrias, tristezas, reinvidicações. Ao se ampliar o olhar para um feminismo literário que trata das narrativas das mulheres, de modo que se olhe para a história sobre suas especificidades existenciais, seus corpos e das violências institucionalizadas sobre elas, tem-se um alargamento do debate e das fontes de representação sobre os direitos das mulheres.

E, mais do que isso, entender que até dentro de pequenos grupos, as mulheres são diversas e quando falamos de uma, é necessário que nos perguntemos criticamente, assim como nos lembra Sueli Carneiro, “de que mulheres estamos falando?”.   As mulheres sertanejas pobres, negras, da zona rural, ciganas, judias do sertão são uma pluralidade de mulheres que foram silenciadas, seja pela escrita dos escritores regionalistas que as enquadraram dentro de dois arquétipos (santa-pecadora), seja pela própria falta de reivindicação de seus direitos humanos e isso se encontra dentro de uma leitura histórica dos direitos das mulheres que tem a inquisição e a expulsão dos cristãos-novos da Europa como fundante para entender essa formação identitária que a escritora Lourdes Ramalho apresenta no conjunto de sua obra.

Os estudos sobre a violência de gênero, especialmente dirigida à mulher, compõem um campo linguístico e narrativo, por contribuírem para a nominação e intervenção do fenômeno na esfera política.O caráter simbólico da linguagem no discurso jurídico permite uma interpretação da imagem social da mulher, sendo a legislação de proteção aos direitos das mulheres, em âmbito internacional e nacional, documentos que possibilitam informações que norteiam casos concretos e compõem fundamentação jurídica para condenar ou absolver o agressor, mas não são suficientes para exterminar o problema da violência de gênero, da desigualdade de classe e do racismo.

Ao dar destaque ao protagonismo feminino, na escrita das histórias narradas, o modo como a figura da mulher e como seus direitos, ou a falta deles, são representados nas obras de Clarice Lispector e de Lourdes Ramalho, apresenta-se um exercício de dar voz, de resgatar histórias, de reencontrar fios da origem judaica, e suas perseguições históricas, na formação do povo brasileiro. O sertão, as nordestinas, estão interligadas nessa dimensão de uma história mundial que ainda não recebeu a investigação necessária e a percepção que estamos a falar sobre história dos direitos humanos, desde a questão da fuga, quanto à questão da perseguição, até chegar ao direito humano da sobrevivência e de viver com dignidade, que permite, inclusive, a inclusão cultural, em tantas localidades pobres e desassistidas culturamente, sem museus, bibliotecas, livrarias, saraus, eventos artísticos, exposições, concursos, incentivos à arte, sem direito à educação e o combate à violência de gênero, em cidades que sequer possuem infraestrutura de delegacia da mulher.

Após a leitura dos 19 artigos que compõem o livro-homenagem à Clarice Lispector, com um olhar jurídico, questiona-se sobre o direito à igualdade, liberdade, fraternidade, um tripé de direitos reinvidicados desde o século XVIII. Direitos tão falhos, esparsos, descumpridos, chorosos, famintos, tristes, injustiçados, calados, silenciados, escondidos. Perceber na escrita de Clarice esse formigamento sobre a justiça social é reencontro com o humano, é perceber que a história é muito ampla e que muitos quadros ainda não foram investigados, pensados, problematizados e resolvidos.

Propor um movimento dentro do direito e arte, mais especificamente no campo do direito e literatura brasileira, dando evidência à obra de uma escritora centenária, feitiçeira das palavras, lendária e apaixonante desde a primeira leitura, é deixar registros da importância da valorização de nossa história, de nossas produções literárias e culturais; é resgatar o sentir; é uma procura pelo sentimento do direito.

 O Direito é, antes de tudo, uma produção cultural e social. É na arte que encontramos o sopro da vida. Do verbo se fez carne, da palavra se faz um itinerário de buscar uma empatia social que almeja uma sociedade plural e respeitosa. Em um ano tão difícil para toda a humanidade, como foi o o de 2020, com tantas mortes e dores, festejar Clarice  é valorizar a importância da literatura enquanto direito das gerações que foram e que virão. Que a literatura seja esse lastro de propulsões vibrantes em cada ser. Que Clarice seja lida, relida e que a história das perseguições aos grupos vulnerados receba alguma reparação. Que viver não seja tão doloroso para grupos desafortunados historicamente.

Pela construção de uma estética clariciana no direito brasileiro, esse direito que ainda tem tanto para resgatar e referenciar mulheres, seja na literatura, na arte, na própria existência. O direito misógino, racista, classista não cabe mais.

 



[1] Advogada. Historiadora. Professora Universitária. Mestra em Direito Público pela UFBA. Organizadora da obra “Por uma estética jusliterária clariciana: diálogos entre Direito, Literatura e Arte”, disponível na Amazon. E-mail: ezildamelo@gmail.com

[2] RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes. Raízes ibéricas, mouras e judaicas do Nordeste. João Pessoa: UFPB/Editora Universitária, 2002, p. 77-78: “durante a ocupação árabe, a península ibérica abrigou, também, a maior população judaica da Europa (...) E quando aconteceu a violenta perseguição feita aos judeus, em Portugal, para o Brasil se encaminhou uma corrente contínua de israelitas, em busca de abrigo.

[3] IGEL, Regina. Imigrantes judeus, escritores brasileiros: o componente judaico na literatura brasileira. São Paulo: Editora Perspectiva. 1997

[4] RAMALHO, Maria de Lourdes Nunes. Raízes ibéricas, mouras e judaicas do nordeste. João Pessoa: UFPB/Editora Universitária, 2002, p. 86

[5] ANDRADE, Valéria. Prefácio. Chã dos Esquecidos. Chã dos esquecidos. [Livro eletrônico]. ∕ Maria de Lourdes Nunes Ramalho; organização e aparato crítico de: Diógenes Maciel e Valéria Andrade. Campina Grande: EDUEPB, Editora União, 2020. p. 17: “Assusta-me, sempre, apurar que, diferentemente das outras autoras suas contemporâneas, naquelas décadas de 1960-70, referidas em estudos alentados sobre o teatro brasileiro, Lourdes Ramalho continua mantida em situação ‘clandestina’ no quadro autoral do nosso teatro – inclusive aos olhos da crítica voltada para os textos escritos por mulheres –, a despeito de seu percurso, tão longo quanto farto de textos e montagens icônicas. Tenho sempre chamado atenção para tal situação, pois ela parece ser um desdobramento nocivo da condição ‘marginal’ dos textos de dramaturgia de autoria feminina no cânone brasileiro: esta sorte de textos não circula como material impresso, em razão de uma clara prática discriminatória do mercado editorial. Em outras palavras, para esta parte de nossa produção literária e teatral, um prejuízo grave da condição de ‘fora-da-lei’ é não poder adentrar os muros da ‘cidade editorial’, ou seja, não ser publicado e, portanto, não participar da vida pública e da própria sociedade.