1. Qual a proposta do livro "Arte, Emoção e Caos no Tribunal do Júri de Ariano Suassuna", republicado recentemente pela Studio Sala de Aula?
O presente livro tem como
objetivo analisar a instituição do Tribunal do Júri e seus personagens do ponto
de vista filosófico, jurídico e artístico. Para tanto, verificou-se o Direito
como discurso jurídico complexo e transdisciplinar e como uma Obra Aberta.
Percebeu-se o Direito pelo paradigma da emoção, subjetividade e incerteza, ao
invés da razão, certeza e objetividade, usando para tanto a Teoria do Caos. O
Direito foi visto como processo de espetacularização, para tanto usou-se a
exploração midiática dos crimes de competência do Tribunal do Júri.
Identificou-se as intersecções entre o Tribunal do Júri e a Literatura, no “Auto
da Compadecida” de Ariano Suassuna. Metodologicamente a estrutura do presente livro,
deu-se em formato de uma peça teatral, sendo composta por um prólogo, três atos
e o epílogo. Enveredou-se pelo campo do Direito e Arte, especificamente no
dialogismo entre Direito e Literatura, como proposta de perceber o processo
criativo-artístico construído na representação do Tribunal do Júri na obra de
Ariano Suassuna. Dentre autores de diversas formações científicas, propõe-se um
estudo sobre os personagens do Tribunal do Júri, com base numa investigação
legislativa brasileira do Código de Processo Penal, como também em Nietzsche,
através do método apolíneo-dionisíaco, e em Ariano Suassuna, na obra “Auto da
Compadecida”.
2. Quais as motivações para escrever sobre
este tema?
As motivações surgiram diante de um vazio na
literatura jurídica que não coloca a Arte, a Emoção e o Caos como
significativos para o Direito. Portanto, estudar o instituto do Tribunal do
Júri a partir dessa tríade vem ao encontro de procurar novas vertentes de
explicar o fenômeno jurídico numa visão transdisciplinar.
3. Conte como foi o processo de pesquisa
para escrever.
A pesquisa se originou da Dissertação de
Mestrado que defendi em setembro de 2014 na Universidade Federal da Bahia, sob
orientação do Prof. Nelson Cerqueira. Depois, fiz uma revisão, reescrevi
algumas partes, refleti sobre outras questões, o que culminou no presente
livro. Também durante a pesquisa tive a oportunidade de assistir a penúltima
aula espetáculo de Ariano Suassuna, em julho de 2014, uma semana antes do seu
falecimento.
4. Quais as principais conclusões
adquiridas com a obra?
Neste trabalho teve-se como escopo analisar que
o discurso jurídico é construído e interpretado, tendo como parâmetro principal
de interpretação, a emoção. Entendeu-se
o Direito enquanto processo criativo, através do qual cada personagem exerce
papel importante, em que o leitor ou espectador exerce o ato de interpretar e
julgar. Ao invés de analisar o Direito pelo paradigma da razão, tecnicismo,
objetividade e certezas, analisou-se pela emoção, subjetividade e incertezas.
Percebeu-se que o Tribunal do Júri é um teatro vivo, onde promotores,
advogados, magistrados e jurados participam ativamente, ao decidirem pela
absolvição ou condenação, numa dança viva em que se deparam com a possibilidade
de estabelecer um feixe de relações com base em suas emoções pessoais, muito
próximo do conceito de Obra Aberta de
Eco. No discurso do Tribunal do Júri, o orador é tomado pela palavra e
conduzido por ela a lugares distantes. O bom intérprete no palco do teatro
jurídico é aquele que sente o que foi dito pelas partes conflitantes no ringue
que a oratória propicia. Concluiu-se que a emotividade dá-se na racionalidade
do Tribunal do Júri
Abaixo a apresentação de Alexandre Coutinho Pagliarini,
o Prefácio de Paulo Ferreira da Cunha e o Posfácio de Alexandre Morais da Rosa.
APRESENTACAO
“O
presente livro se origina de dissertação de mestrado defendida na tradicional
Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – UFBA”. Este seria o
modo mais vetusto – e chatíssimo! – de dar início a este prefácio; mas aqui não
me utilizarei de tal sisudez porque tudo foi tão diferente... Logo, se
eu apresentasse algum indício de que aqui eu viria a ser o formal da história,
provavelmente não teria sido convidado para prefaciar um escrito que foi
apresentado na forma de peça teatral, o que o diferencia – de cara! – das dissertações
de mestrado apresentadas diante de bancas formadas por juristas formalistas ou
não abertos à interlocução entre Direito e arte. A propósito, de agora em
diante não mais escreverei direito com inicial maiúscula porque senão teria de
também usar um “a” maiúsculo para a palavra arte!
Quando criança, logo que pensava em
direito, vinha-me à cabeça a cena de algum filme americano em que se
digladiavam acusação e defesa para transformar um mero evento ocorrido no mundo
físico em fato jurídico a ser levado em conta pelo Tribunal do Júri em seu
processo mental decisório.
Tribunal do Júri... uma coisa leva à
outra: passo então a pensar em dois advogados da minha cidade natal, Pouso
Alegre, Sul de Minas Gerais. Os nomes deles eram Marçal Etienne-Arreguy e
Rômulo Coelho. Ambos gostavam de tomar umas e outras. Marçal fazia isso logo
antes de entrar em cena de modo sempre fulminante e arrasador no Tribunal do
Júri. Rômulo fazia o mesmo, só que depois da sessão. Marçal era mais
intelectual; aliás, Marçal foi o homem mais inteligente que conheci em Pouso
Alegre, falava francês com a fleuma de um Voltaire. Rômulo era mais técnico e
mais astuto. Marçal gritava contra a promotora recém concursada, dizendo-lhe “auto lá promotora, pela ordem senhor
juiz-presidente, esta senhora foi minha aluna e eu não lhe ensinei isso na
Faculdade de Direito; que ela respeite-me!”. Rômulo apelava para a emoção
e, para levar o Júri às lágrimas numa certa ocasião em que atuava como
assistente de acusação, narrava que “aquele
mecânico João acordava sempre às seis da manhã para ir consertar carros na
oficina, e, antes de voltar para casa doze horas depois, lavava as suas mãos
encardidas para poder acariciar o rosto e os cabelos loirinhos de sua filha
Maria, de treze anos, até que num triste entardecer não pôde repetir este gesto
porque encontrou Maria estuprada e morta por este canalha que se encontra aqui
sentado no banco dos réus”. De fato, a promotora novata tremia ao ouvir os
berros de seu sábio ex-professor, e isso produzia efeitos no Júri, assim como
também de fato todos os jurados populares choravam ao imaginar Maria morta e
estuprada nos braços pesarosos de seu desesperado pai João.
“O Tribunal do Júri é um teatro
vivo!”; estes são dizeres da Ezilda Melo, a menina-mulher que defendeu a
dissertação e que a transformou neste maravilhoso livro. Na oportunidade da
defesa, cheguei bem cedo à UFBA, cumprimentei a banca composta por Nelson
Cerqueira – da área da literatura – e pelos juristas Sebastian Borges de
Albuquerque Mello e o meu amigo Alexandre Morais da Rosa. Beijei e abracei
Ezilda e coloquei-me sentado exatamente em frente à sua lateral direita. Ela
estava altiva, linda, toda de vermelho (lady
in red): uma maravilha, que beleza...
Beleza devia ter sido escolhida pela
autora do livro também como uma das palavras chave que compuseram a dissertação
original, não só por conta dos atributos internos e externos de Ezilda, mas por
causa do que ela escreveu em si. Digo isso porque a audácia de se correlacionar
direito e arte numa dissertação de mestrado não é talento que possa ser posto à
prova por muitos; portanto, Ezilda é única se eu levar em conta que nunca vi
nem ouvi falar que alguém tenha defendido dissertação ou tese de direito na
forma metodológica de peça teatral: e ela teve essa cara de pau, e fez isso de
modo estupendo.
A autora analisa o instituto do
Tribunal do Júri tendo em mãos os elementos constitutivos da teoria do caos:
emoção, subjetividade e incerteza. Tais elementos constitutivos são contrários
aos que compõem a teoria positivista de Hans Kelsen e Otto Pfersmann (e minha
própria, posto que sou o tradutor deste último em língua portuguesa), quais
sejam: razão, certeza e objetividade. Aliás, defendem Kelsen e Pfersmann que a
vontade (decorrente do uso da razão) é a base da teoria positivista do direito.
A partir de sua base de análise, sem dúvida, a autora trilha um caminho que só
pode transcorrer pela teoria do caos num discurso transdisciplinar e complexo
que considera o direito como obra aberta; isso significa que Ezilda acertou a
estrada e chegou ao destino que havia escolhido. Caso tivesse tomado a estrada
positivista, ela teria comprado uma passagem para Paris num avião que fora
parar em Tóquio.
Em certo momento, questiona-se a
autora se o teatro que se faz no discurso jurídico – pela defesa e pela
acusação – é uma linguagem pela qual o direito caminha para o convencimento dos
destinatários da verdade construída: os juízes. Respondo eu que sim; com
Lourival Vilanova e Paulo de Barros Carvalho, ouso dizer que direito
é linguagem à medida que só terão relevância jurídica os eventos do
mundo físico que tiverem sido vertidos em linguagem segundo as normas do
próprio direito, de modo que, para a linguagem do direito, a morte da vítima
Maria (filha de João) ocorreu no momento em que o Tribunal do Júri condenou o
réu – e não no instante do estupro e do estrangulamento em si. Assim, a verdade
sempre decorrerá de um relato juridicamente relevante – mas teatralmente
vertido em linguagem.
Emotividade e racionalidade se
fundem no Tribunal do Júri; esta é a principal conclusão a que chega este livro
em que Foucault foi a base para a análise do discurso jurídico, Nietzsche o
fundamento do método apolíneo-dionisíaco e Ariano Suassuna – com o seu
incomparável Auto da Compadecida – o pano de fundo para a teatralidade
intrínseca ao Tribunal do Júri real.
Defesa de dissertação assim só podia
ter ocorrido na Bahia, o Estado que inventou o Brasil: terra de Castro Alves,
da beleza, da emoção, do caos urbano que causa incertezas e da magia da poesia.
E já que a Bahia é marcada por tantos elementos e tantas linguagens, em
homenagem à imaginação dessa grande autora Ezilda Melo, termino a apresentação
de seu livro assim:
“Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.
'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.
De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos — beijá-la.
Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...
Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!
E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...
Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! — tu és a virgem das campinas!
"Virgem! — tu és a flor da minha vida!..."
PREFÁCIO:
Prefácio
de Paulo Ferreira da Cunha
LIBERTANDO
O DIREITO
COM ENGENHO E ARTE
Foi para
mim um prazer ler esta obra, e é um gosto prefaciá-la.
Este
livro insere-se já num tempo novo, um momento significativo de viragem. E uma
viragem que anuncia (e já representa) um corte epistemológico muito sério e
regenerador. Alguns diriam "pós-moderno", mas tal expressão parece já
estar um pouco antiquada, pelo que a evitaríamos.
Há, do
princípio ao fim deste texto, não um polvilhar de novidades para doirar o
conjunto e eventualmente épater le
bourgeois. Há um sopro diferente de renovação, mas o texto já se coloca num
outro lugar, já contempla a juridicidade de uma diversa perspectiva.
Não é o
adorno do novo sobre o velho, não são odres novos para vinho antigo, é já vinho
e odres novos, e com toda a legitimidade que os velhos, vinho e odres.
A
sensação de legitimidade da démarche
empreendida dá-lhe segurança. Estávamos e ainda estamos a precisar muito de
estudos jurídicos inovadores que não sejam tentâmens pomposos ou em
bicos-de-pés, trabalhos a um tempo com segurança e sem petulância, com
naturalidade. Com segurança e com honesto estudo. Com robustês e agilidade.
Afinal, com engenho e arte, como diria Camões. É este um caso. Só que é esta
uma segurança não alicerçada meramente no cabedal do passado, mas ancorada
igualmente no tipo de trabalhos que se farão no futuro, sem complexos. Não os
únicos, mas dando-nos uma amostra iluminadora de uma das formas, modelos,
gêneros dos que se farão...
Obviamente
que longe de nós saudar simplesmente a novidade pela novidade. Esse é um dos
mais correntes e medíocres pecados da nossa contemporaneidade e da crítica
normal. Não. O que está aqui em causa é já um livro de um novo tempo e para um
novo tempo.
Virá
certamente o dia em que movimentos, correntes, escolas, que foram
vanguardistas, que ainda o são, virão a ser ou atirados para o caixote do lixo
da História ou incorporados no novum
que haja entretanto nascido. O que o livro da Professora Ezilda Melo nos traz é
uma antecipação dessa triagem, especialmente com a incorporação sem pompa e com
a maior naturalidade do que é bom e está bem, aí onde o encontrou, como diria Van De Velde.
Com
efeito, poder-se-ia dizer que este livro, que começa o seu título precisamente
por um alargamento do tema Direito & Literatura (Law & Literature), enquanto Direito e Arte, e que logo no
título ainda remete para a Emoção (inter
alia) e um grande autor como Ariano Suassuna, conhecido sobretudo pelas
Letras, se insere precisamente nessa subárea da Filosofia do Direito. Mesmo
assumindo-se como de Direito e Arte, não deixaria este escrito de se encontrar,
pelo seu conteúdo, mais ligado ao Direito & Literatura. Ora as relações entre uma e outra coisa (quer
se fale de Arte em geral quer de Literatura em particular) foram progredindo
desde o posicionar-se o Direito contra
a Arte e a Literatura (quantos processos absurdos e inquisitoriais a obra de
arte inovadora não suscitou!), em muitos casos, até uma reconciliação
integradora, a que já se chamou "Direito com Literatura", depois de várias fases intermediárias.
Mas
assim já não é. Já não estamos, nesta obra, quer ela queira quer não (quer ela
o desejasse quer não: as obras não são dos seus autores, mesmo durante a
feitura, e muito menos depois...), no domínio estrito dessa subárea
jurisfilosófica apenas. Pelo contrário, e mais além, encontramo-nos num mundo
novo: no terreno vasto e a perder de vista de um Direito, mais que pensado e
repensado, libertado. Que
obviamente é Direito com Literatura e Arte, e naturalmente convoca a emoção e
dá voz e vez aos artistas e à forma
mentis artística. E tão naturalmente que o estilo flui sem esforço, e tão
obviamente assim é que já nem nos damos conta assim tanto disso.
Sentimo-nos
assim transportados a um oásis do direito futuro no nosso tempo e ainda no
nosso direito. Não que se trate de ficção ou futurologia. Mas pelo estilo que
antecipa a habitualidade de tópicos e formas de abordagem que não são ainda
habitualmente os nossos.
Não
esperamos dos juristas mais habituados a uma reverência rígida e cadavérica uma
adesão muito grande a esta obra, mas ela prescinde bem dessa adesão. Há contudo
certas obras de viragem que podem ter virtualidades inusitadas, e
insuspeitadas: quais sejam as de prepararem o terreno para a conversão de
juristas mais clássicos, mas inteligentes e no fundo inquietos e insatisfeitos,
a novos ventos.
Para
isso são necessárias obras solidamente engastadoras do futuro no passado.
Capazes de mostrar que o seu autor poderia, se quisesse, ter as maiores honras
no cursus honorum corrente e
tradicional, em sintonia com o estilo rebarbativo imperante, mas que, anão aos
ombros de gigantes como diria São Bernardo, foi capaz de subir mais alto e ver
mais longe. Achamos que a Professora Ezilda Melo conseguiu isso: prova que é
uma jurista perfeitamente formada no arsenal do passado, mas que não se
contenta com ele, e sabe que navegar é preciso.
Naveguemos,
pois, com esta obra, e mais longe...
Este
livro deu-me uma grande alegria, porque me transportou para um mundo futuro do
Direito com cultura, com arte, com literatura, com ciências sociais, não como
postiços para impressionar alguns, mas como parte de um saber jurídico global,
holístico e até pós-disciplinar, para lembrar os estudos do catalão Mayos,
aliás também grande amigo do Brasil.
Por
coincidência, esta sensação, este estado de espírito, parece-nos abeirar-se
muito da aproximação à noção de valor em Johannes Hessen. Porque, com a leitura
desta obra, nos quedamos com uma sensação de plenitude: uma felicidade calma,
não de contemplação acrítica e de adesão cega, mas a sensação de que as coisas
estão bem e fazem sentido.
Não sei
que valor concretamente se encarna nesta obra. Mas certamente algo terá a ver
com a Justiça, que é um pleno, perpétuo e contante suum cuique. Aqui há um dar o seu a seu dono num estudo de Direito,
mas um Direito que convive com a vida, real e epistémica, com naturalidade e
com sentido da complexidade e vastidão do Mundo... Porém, sente-se aqui também,
ao menos, um latejar em pano de fundo de verdade e de beleza...
Um
Direito destes, remetendo para tais valores, é o Direito por que andamos lá
fora a batalhar: de um novo paradigma fraterno e humanista.
Fraterno no
sentido político de ir até mais além (conciliando-as) a liberdade e a igualdade,
que separadas só fabricam infernos.
Humanista quer no
sentido social de Humanidade e humanização, como no sentido epistémico de
enciclopédica, racional e jubilosa nova Renascença, de cultivo dos cânones que
valem a pena cultivar, como os clássicos, e de profunda inovação, com obstinado
rigor leonardiano, com a magia de um Rafael que tira a estátua da sua prisão de
mármore...
É numa
prisão, não de mármore mas de granito, sólido e escurecido pela patine do tempo, que tem vivido o
Direito nos seus tempos de clausura: primeiro objetivista romanista e depois de
subjetivismo burguês, em todos os casos materialistas. O Direito que se nos
anuncia não renuncia a um vasto património, a uma História fascinante, mas
encontra-se mais além...
Disse
uma vez Ariano Suassuna: "Arte pra mim é
missão, vocação e festa". Poderá um dia não diríamos o Direito vivido e
sofrido, mas ao menos o Direito pensado, estudado e em criação sê-lo também?
É nessas
caminhadas que se insere este livro. Por vezes acreditando tanto no caminho que
tememos aqui e ali vá depressa demais... Mas não vai. Já vamos todos atrasados.
POSFÁCIO:
Posfácio
de Alexandre Morais da Rosa - Doutor em Direito (UFPR). Juiz de Direito (TJSC).
Professor Adjunto (UFSC e UNIVALI)
Ousadia
é a marca do livro de Ezilda Cláudia de Melo. Transitando pelo Direito
protagoniza a colocação do mestre Ariano Suassuna no ambiente kafkiano do
julgamento em plenário de Júri. A partir do “Auto da Compadecidade” e seus
personagens, resgatando suas falas e defesas, de alguma forma as profanando,
também, desloca os sentidos que podem ser invocados, a cada momento, no jogo de
argumentos que é o julgamento em plenários, com suas reviravoltas e surpresas.
O livro antes opera uma discussão entre uma compreensão apolínea e dionísica do
mundo. Nessa dicotomia, contudo, não podemos suportar, por ser demais, a morte
que se avizinha em Dionísio e seu excesso, bem assim tolerar a vida arrumadinha
e certinha de Apolo, dentro da luz e da ordem, por ser de menos. A ambivalência
Apolo-Dionísio parece ser o estratagema de quem consegue sustentar seu desejo,
embora não seja, claro, fácil. O discurso jurídico, por sua vez, apresenta-se
na forma racional, apolínea, cheia de consciência, ordem e progresso. E é muito
chato. Aprendemos com Luis Alberto Warat que o discurso da ciência é
importante, ainda que não possa dar conta de tudo. Há um resto de desejo que
sempre nos move adiante. O discurso com Dionísio concede o para além do prazer,
da ordem do gozo. A promessa de um dia sermos feliz, embora seja sempre um
sonho a se realizar, pois nunca chega. Do livro que o leitor pode ter acesso,
talvez a primeira leitura não faça Justiça a todo o enredo. É preciso certo
tempo para poder o saborear...
Somos legatários de Luis Alberto e
Warat na interlocução entre Direito e Literatura. Por isso seguirei Warat em Dona Flor e Seus dois maridos.
Autorizado pelo autor, no início de seu livro, seguirei parafraseando/copiando
sem aspas, tornando a leitura mais escorreita: mais gostosa. Warat percebe em
Dona Flor a heroína da poligamia dos
significados e do imaginário erotizado que sobreviveu/resplandeceu frente a
tantas tentativas de castração, feitas em nome de uma cultura aparentemente sem
manchas. E a castração é, sobretudo, a poda do desejo, cabendo-nos questionar o
tido por inquestionável. Em Vadinho o solto, preguiçoso, cara de pau, jogador e
perdulário que vai até o fundo dessa malandra experiência que é estar vivo;
sentindo-se parte desse mundo louco da razão. Já Teodoro Madureira é o meticuloso, insosso, dono de uma cultura sem
surpresas, um homem que nunca sai de suas gavetas, tedioso, que pede permissão
e hora para amar, dono de uma mania cartesiana de etiquetar tudo. Com Vadinho
tudo pode ser misturado, o prazer surge, ressurge, renasce, mistura
irresponsabilidade com desejos, fantasias, malandragem. O jogo de incertezas.
Vadinho é capaz de mostrar o sentido erótico da vida, transformando o racional
em erótico. Dona Flor deseja o novo, a vida em movimento. Com Teodoro Madureira
a vida perde seu movimento, seu brilho, seu ardor. Torna-se a univocidade de
atos e de desejos, repetidos no dia-a-dia. Respeitam-se tanto que nem se
relacionam e, sem mistura não há relação. Vadinho faz aparecer a necesssidade/possibilidade de se desejar o novo, o
desconhecido, o resgate da sedução. Invocando o carnaval diz que talvez possamos concentrar em Vadinho o carnaval e
a folia, e em Teodoro Madureira a quaresma, os dias em que nossas vidas
funcionam como uma oficina de controles inúteis, mas que servem, per se para justificar sua existência e
bem alimentar os que nela mandam. Assim é que com Vadinho existe a presença
constante do inesperado. Seu retorno da morte é o símbolo de como, pelo
fantástico, podemos manter uma relação adúltera como real. É o marido sem o
espírito da legalidade que a mulher sonha ter, para temperar a alquimia de
ternura e segurança do desejo instituído. A volta de Vadinho permite a Dona
Flor romper os ímpetos do desejo com o dever, aceitando o adultério como
condição natural do casamento. É que não existe democracia sem marginalidade
(adultério), sem uma louca cavalgada, o delírio febril, os ais do amor que vêm da experiência comum da gente, surgida nos
momentos primordiais do cotidiano.
“Existem coisas que se fazem e que não se
pode ver”, diz Teodoro Madureira a Dona Flor, enquanto apaga a luz para
amá-la. Toda uma cultura do pecado, que marca gerações desde o momento em que
se concebe. A maioria de nós, filhos do segredo. Opondo Teodoro Madureira e
Vadinho encontram-se definidos, para o imaginário de Dona Flor, os lugares do
dever e do prazer. O prazer por prazer e por obrigação. Warat considera que o
amor, em nossas sociedades, é burocrático e repressivo por apresentar um
excesso de deveres. E o amor será um exercício democrático do prazer, quando se
liberar de suas proibições e inocentar o prazer realizado fora do dever.
Esse
livro demonstra, faz aparecer, o paradoxo entre o prazer/fruição e os deveres
reproduzidos pela sociedade gregária de uma moral cristã que ajusta nossos
desejos ao modelo de ordem e legalidade racionalizado, escamoteando os
sentimentos: o amor e a sedução. Ariano Suassuna apostou na salvação milagrosa.
Não sei se teremos as mesmas chances. Enquanto isso, no binômio Apolo-Dionísio
e Teodoro Madureira/Vadinho, tenhamos coragem para sustentar nossos desejos. É
o que resta. E não é pouco.
Antônio
Frederico de Castro Alves (Baiano de Curralinho, nascido a 14
de março de 1847. Morreu em Salvador em 6 de julho de 1871). Foi um dos mais
importantes poetas brasileiros. Disse uma vez: "Considero-me um poeta.
Integrado no meu tempo. Cantei a natureza, a mulher, o amor e vivi a causa do
meu século: entreguei-me inteiro à causa dos escravos". Castro Alves viveu
pouco, porém, intensamente. É patrono da cadeira 7 da Academia Brasileira de
Letras. O poeta, que sofria de tuberculose, morreu prematuramente aos 24 anos.
A cidade onde nasceu, hoje, chama-se Castro Alves.
Paulo Ferreira da Cunha. Membro do Comité ad hoc para o Tribunal Constitucional
Internacional. Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade do
Porto.
Mais recentemente, desenvolvemos esta última ideia no
nosso livro Iniciação à Metodologia
Jurídica. 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2014, máx. p. 165 ss.. E em Libertar o Direito. Do Problema
Metodológico-Jurídico do nosso Tempo, "International Studies on Law
and ducation", vol. XIX, http://www.hottopos.com/isle19/27-36PFC.pdf