“a
VIDA DE UMA MULHER” E “uM AMOR IMPOSSÍVEL”: A MATERNIDADE POR TRÁS DO ENREDO
Ezilda Melo[1]
“A vida, que você vê, nunca é tão boa ou tão ruim quanto a que
acreditamos!” - Guy de
Maupassant
“Do estado de
alma que, nesse ano longínquo, não fora senão uma longa tortura, nada restava.
Pois, há no mundo, onde tudo se gasta e tudo perece, algo que tomba em ruínas,
que se destrói ainda mais completamente, deixando menos vestígios até do que a
beleza: é a mágoa”. Christine Angot
Resumo: Trata-se
de um ensaio que mescla os filmes “A vida de uma mulher”, de Stéphane Brizé, e “Amor impossível”, de Catherine
Corsini, ao refletir sobre as questões da maternidade trazidas
nas duas narrativas cinematográficas. Duas sociedades distintas: primeira
metade século XIX e segunda metade do século XX, ambas na França. Primeiramente,
envereda-se por uma leitura sobre adaptação de livros para o cinema, passa para
a figura da mulher francesa em duas sociedades distintas e próximas, ao
concluir sobre a questão da maternidade vivenciada por duas protagonistas que
tiveram suas vidas marcadas pela maternidade.
Palavras-chave:
A vida de uma mulher. Um amor impossível. Cinema Francês. Maternidade.
Violência de gênero
1.
Adaptação de livro para o cinema
A
linguagem literária é uma, a cinematográfica é outra bem distinta. Muitos
livros inspiram a construção de filmes que são feitos de acordo com a
interpretação dos cineastas. Foi isso que ocorreu com o extenso romance “Uma
vida” de Guy de Maupassant[2]
adaptado por Stéphane Brizé[3] que em outros filmes, a exemplo “Mademoiselle
Chambon” e “O Valor de um Homem” já trouxe questões morais muito bem concatenadas.
O livro retrata a sociedade francesa na primeira
metade do século XIX, destacando a nobreza rural normanda, no seio da qual a
história se passa. A trama começa em 1819. O texto que serviu de inspiração ao
filme traz a história da bela, rica, bem-educada, recatada e romântica baronesa
Jeanne Le Perthuis des Vauds que aos 12 anos foi enviada ao tradicional
convento francês “Sacré-Coeur”. Cinco
anos após passar por uma educação dura e severa, temente a Deus, certa de que
suas orações lhe reservariam um bom destino, retorna ao lar dos seus pais que
tudo fazem pela alegria da filha, a baronesa Adélaïde e o seu marido o Barão Simon
Jacques Le Perthuis des Vauds.
Pouco tempo após seu regresso, Jeanne conhece e se apaixona
pelo seu vizinho, o conde arruinado Julien de Lamare,
que se revela, aos poucos, um homem
infiel, avarento que planejara o casamento por interesse pelo dote da
jovem Jeanne que começa uma jornada de suplício e provações, presa aos códigos
de moralidade vigentes.
A crueldade e o sarcasmo de Julien, que existem no romance,
desaparecem da narrativa cinematográfica que foca em mostrar a figura de Jeanne
como melancólica e conformista, ingênua e inerte diante de uma ruína que cresce
à cada cena da narrativa que cobre 30 anos da vida de uma protagonista que
tinha, até se casar, uma visão abstrata da vida. É na vida de casada que Jeanne
poderá confrontar suas teorias ao mundo real repetitivo e cruel. Nas desgraças
que saturam a vida da protagonista, adultério, morte, desonra, abandono,
exclusão, ruína, encontrará tipos humanos que mostram o lado das aparências e
conveniências sociais em aspectos que demonstram graves falhas morais como
hipocrisia, oportunismo, complacência, omissão, intolerância, ganância, inveja,
falsidade e bondade, também.
Até a vivência de sua maternidade, em que canaliza toda a sua
atenção a fim de dar um sentido à própria vida, mostra-se cruel porque o filho
torna-se esbanjador, pródigo e leva a família à ruína. É uma saga feminina que
ao mesmo tempo traça um panorama da decadência moral da região da Normandia na
primeira metade do século XIX. Mostra a vida de Jeanne relacionada com a de sua
mãe, de uma empregada, de uma mulher casada que trai seu marido e conclui na
vida de uma bebê, sua neta.
O filme “Um amor impossível” (2019), adaptado por Catherine
Corsini[4], baseia-se na obra “Un amour
impossible” (2015), sem tradução no Brasil, de
Christine Angot[5]. Diferente do primeiro
livro e filme, escrito e dirigido por homens, este filme tem uma cineasta que
se baseia na obra de uma mulher, ambas nascidas no mesmo período que nasce a
filha da protagonista do enredo.
O romance, ambientado em Châteauroux-França do final da
década de 1950, trata da história da secretária Rachel, uma moça judia de 25
anos, de classe média, filha de costureira, criada sem a presença do pai, que
se apaixona por Philippe, um jovem que guarda um segredo do passado, experiente
amante e que seduz pelo grande conhecimento cultural que demonstra ao falar
sobre literatura e filosofia.
A diferença social entre ambos existe, sendo Philippe um
tradutor advindo de uma família burguesa que morava em Paris. A jovem Rachel,
apesar de ter mantido um relacionamento afetivo e duradouro com seu primeiro
namorado, o gentil Charles, ainda não se casara. Na última noite juntos, antes
de regressar à Paris, Rachel engravida e manda a notícia por carta ao homem por
quem é apaixonada.
Porém, Philippe se recusa a casar-se fora de sua classe
social e deixa isso bem claro para a jovem moça que se resigna. Quando sua
filha nasce no ano de 1959, registrada apenas com o seu nome, Rachel começa uma
longa luta pelo reconhecimento paterno no registro de sua filha. Para Rachel,
Chantal é sua grande felicidade, e sua única exigência é que Philippe dê seu
nome à filha. Essa batalha dura doze anos, sendo intercalada por cenas de
verdadeira submissão ao amor ilusório de Rachel em relação a Philippe.
No filme, vemos o amor de mãe e filha, a responsabilidade
feminina sobre uma situação aparentemente comum: mulheres que criam seus filhos
sozinhas. Acompanhamos a descoberta e vivência da gravidez, o parto, os
primeiros meses sem nenhum apoio do pai da criança.
Vemos uma mulher que é responsabilizada pela gravidez, mesmo
sabendo que Philippe tão responsável quanto ela, mas este naturaliza o abandono
afetivo em relação à filha. Uma explicação para isso é o fato de ter sido
criada somente por sua mãe, pois seu pai também a abandonara quando criança.
Philippe aparece quando quer, até comunicar que se casou com
uma moça alemã, que sabe cuidar do marido, de uma abastada família. Ele segue
sua vida sem nenhuma responsabilidade com Chantal. Rachel enfrenta preconceitos
e o descaso do pai da sua filha, segue na luta de ter o direito da filha
reconhecido, nem que seja numa certidão de nascimento, e em alguns momentos
revive cenas de paixão com esse homem.
A resignação de Rachel quanto à questão afetiva entre eles é
explícita, mas é firme em mudar o nome no registro da adolescente, que à essa
altura já tem muitas semelhanças físicas e intelectuais com o pai, e começa a
se rebelar contra a mãe, tratando-a como inferior, vez que tem uma admiração pelo
homem culto que é o genitor, porém o que se esconde é algo que nem Rachel
desconfia.
Trata-se de uma outra saga feminina: a vida de Rachel,
narrada no filme pela sua filha Chantal, e do núcleo feminino da vida delas, a
avó, a tia e o pequeno círculo de amizade.
2.
Jeanne e Rachel – mulheres
de seus tempos
Jeanne é uma mulher da aristocracia francesa do século XIX.
Percebe-se uma mentalidade que romantiza o casamento, uma decisão feita em
família, na situação dela, ao aceitar um casamento com um homem arruinado que
recebe, em detrimento do casamento, um grande dote. Após casar-se, Jeanne percebe
que seu marido é controlador do dinheiro e não permite que tenha determinados
gastos que era acostumada, a exemplo de aquecer a casa. Ao descobrir a primeira
traição do seu marido com Rosalie, sua dama de companhia e irmã de leite, fica doente,
encontra refúgio na Igreja para confessar a traição do marido.
Apesar dos pais se colocarem à disposição para receberem de
volta ao lar, o conselho que recebe, proveniente de seu confessor, é que perdoe
o marido, pois o perdão é valor cristão. Dentro deste plano, o marido se mostra
arrependido, os pais dela voltam a confiar no genro, somem com a empregada e o
filho, considerado ilegítimo para os padrões da época. O alto grau da
hipocrisia e moralismo que massacra as mulheres por terem filhos sem serem
casadas e não pune os homens que chegam a estuprar suas empregadas porque as
considera sem valor algum, até para rejeitar o sexo forçado, demonstra o grande
abismo que separava as ações sexuais de homens e mulheres na França do século
XIX.
Passada a primeira traição, conforme a narrativa fílmica,
Jeanne volta a sorrir e a confiar. Seu marido parece um homem mudado,
arrependido, temente a Deus e quer recomeçar.
O casal começa a
frequentar a casa de amigos num verão bastante animado. A utilização do
colorido e da sombra mostra a mudança grande do estado de espírito da
protagonista que no luto de sua mãe, descobre a segunda traição, desta feita
com uma grande amiga, uma mulher casada. Decide calar-se e não contar nada a
ninguém ou fazer qualquer escândalo, mas fica muito abalada e novamente doente,
até que na confissão revela o que descobriu e o reverendo se mostra contrário
ao fato dela não contar nada ao marido traído de sua amiga.
Sem respeitar a decisão de Jeanne, que falara em confiança
confessional, o reverendo vai até a casa do homem traído e este, após o grande
abalo emocional sofrido, planeja a morte do casal de amantes e o seu próprio
fim, com um suicídio. Uma tragédia para qualquer época.
Neste momento, seu o pai de Jeanne? pai lhe acolhe com seu
filho, que pouco depois vai para o convento receber uma educação típica da
burguesia do período.
Intercalando as cenas de Jeanne plantando com seu pai, no
jardim da fazenda que residem, o garoto Paul cresce e aos 20 anos já começa a
se endividar. O que parece uma família muito em sintonia, avô, filha e neto,
aos poucos se revela um problema bastante grave: a prodigalidade de seu filho
que ao ir para Londres começa a gastar e mandar pedidos continuados de cifras
altas, sendo necessário começar a vender fazendas para arcar com as dívidas.
O pai de Jeanne morre e todos os pedidos de seu filho são
atendidos, até ficar na total penúria, sendo acudida pela sua fiel ajudante
Rosalie que volta para trazer-lhe apoio quando não tinha mais dinheiro ou
proteção de ninguém.
O filme encerra com Jeanne recebendo em seus braços a sua
neta, filha de Paul. Uma narrativa lenta, mas que consegue trazer questões
importantes para reflexão. Sendo a primeira delas a questão do casamento e a
não possibilidade de divórcio pelas mulheres. Pelo contrário, eram incentivadas
a perdoarem as traições. Já a traição feminina, considerada tão grave e imperdoável,
levava a Igreja denunciá-las, o que quase sempre as condenava à morte diante
dos maridos que lavavam sua “honra” com sangue.
Percebe-se claramente que o estatuto feminino é delimitado
por muitas regras morais, sociais, familiares e morais.
No filme “Um amor impossível” percebemos um filme feminino,
escrito por mulher, dirigido por mulher, protagonizado por mulheres, que tem
como pano de fundo o romance entre Rachel e Philippe, sendo a relação da
protagonista com sua mãe, sua irmã, suas amigas e mais tarde com sua filha, o
principal do filme. Os homens têm papel secundário na obra. É um drama sobre
relações familiares.
O filme trata do amor de mãe e filha, desde as dificuldades e
exaustão encontradas na maternidade solo, terminologia moderna para uma
situação antiga, quanto de problemas advindos da aproximação danosa ocorrida
após Philippe ter assumido Chantal como filha em cartório.
Philippe é cruel com mãe e filha, recebe apoio de seu pai, mas
o amor que Rachel sente parece encobrir essa realidade, mistura-se às questões
de mentalidade e somos levados a crer que tudo que faz é diante de um contexto
cultural onde os homens podiam relativizar sua paternidade.
O lado cruel dele não é o abandono, a rejeição, a humilhação,
não é se casar com outra, preterir Rachel por causa de dinheiro, relegá-la à
condição de amante, mesmo já tendo filha muito antes de ter conhecido sua
futura esposa. É pior.
Depois da morte de Philippe, vemos duas mulheres machucadas
pelo tempo que não conseguem dialogar, que não conseguem se entender. A filha
com mágoa da mãe por ter amado demais um pai que fez um estrago emocional em
ambas.
A obra se converte em estudo sobre comportamento
humano e entra numa visão psicanalítica das personagens. Não é um processo de
reconhecimento de filha que está diante dos nossos filhos. É a complexidade de
violências cruéis que deixam marcas profundas em mães e filhas quando se está
diante de homem-pai abusivo, violador de normas legais e morais. Esses homens
sempre existiram.
Que códigos de convivência humana os embrutece a
esse ponto de negar o amor, rejeitar a paternidade? Nem a liberdade, proclamada
por Philippe, ao citar Nietzsche, dá conta de explicar.
3.
Da maternidade com
homens destrutivos
O filme “A vida de uma mulher”, ao contrário do que podemos
imaginar, não é sobre violência física, psicológica, sexual ou financeira, vez
que já se revelou tantas características negativas de Julien no início deste
ensaio.
A obra cinematográfica não dá elementos suficientes para
fazer essa análise, apesar de reconhecermos comportamentos abusivos dele, ao
fazer grosserias que a faziam chorar, traí-la, ou se apossar do dinheiro do
dote. No entanto, não vemos cena de sexo forçado, nem com ela, com a empregada
ou a segunda amante, nem tampouco agressões físicas.
O dote era dele por direito, o que já mostra que vem de
longas datas, o homem aumentar seu patrimônio com o casamento. No geral, eles
só casavam com quem tivesse mais condições financeiras. Não é sobre divórcio ou
mudança de leis, não é sobre uma mulher combativa que faz mudanças
significativas no entorno que vivia. Jeanne é resignada e frágil, muitas vezes
infantil. É sobre a maternidade de Jeanne que se concentra essa análise.
Apesar da dureza da traição, é no amor materno que Jeanne
sofre as maiores dores no filme. Uma mãe resignada a aceitar todas as vontades
de um filho até chegar à ruína, mostra que há limites, que não tem amor
próprio, vontade, ao aceitar todas as chantagens do filho.
Jeanne recebeu apoio do avô da criança e não o criou sozinha.
Paul também contou com uma rigorosa educação, mesmo assim trazia uma revolta e
uma falsidade com sua mãe, escrevendo e jurando amor somente quando precisava
de dinheiro. Dois homens, pai e filho, que a quiseram por causa da questão
financeira repercutindo do pai até o filho o comportamento abusivo para com a
mãe, que ao invés de rechaçar, não percebia maldade no que o filho fazia. A
constelação familiar é uma possibilidade de reconhecer a fidelidade a padrões
que se repetem em família, conforme já anunciou Bert Hellinger[6].
Ao comparar com o outro enredo cinematográfico, uma passagem
muito interessante da obra “Um amor impossível” é a conversa de Rachel com o
seu psicanalista ao questionar se ela tem medo de sua filha. Ao que responde
que sim.
O espaço para diálogos fortes sobre a maternidade, seguido de
uma explicação sobre o abuso físico, psicológico e sexual sofrido pela filha ao
questionar o porquê de a mãe ter escolhido um tipo cruel para se relacionar ao
invés de ter casado com um outro homem, Charles, mais bonito e gentil. É
importante esse diálogo para que reflitamos sobre relacionamentos afetivos e
sintomas dos envolvidos na relação.
As experiências de abuso, abandono, rejeição, a sensação de
não ser amada podem levar uma criança a desenvolver modos de se comportar e
pensar que se repetem ao longo da vida. Essa perspectiva se aproxima de uma
leitura psicológica do que Rachel havia passado na infância ao ser abandonada
pelo pai e pela forma de se sentir inferior ao se apaixonar por um rapaz
abusivo, cruel, pervertido, que lhe diminua a autoestima e lhe inferiorizava
sempre.
Como essa situação do abandono filial se dá na década de 70
do século passado, somos levados a acreditar, como espectadores, que seja em
razão da sociedade do período aceitar determinados comportamentos machistas. No
entanto, aparece uma situação inconcebível em sociedade: o incesto.
A violência sexual incestuosa não ocorre de repente, ao
acaso, como preceitua Penso, Costa, Almeida, Ribeiro[7].
A personagem Rachel após a descoberta do incesto contra sua filha, silencia,
não enfrenta a questão, teme olhar de frente, sendo preciso Chantal crescer e
virar uma intelectual para explicar o que foi a relação das duas com Philippe.
4.
Considerações
finais
As protagonistas de ambos os filmes são mães que enfrentam
dilemas com suas respectivas maternidades. Enquanto, a redenção de Jeanne vem
com a chegada de sua neta, uma incógnita de como será aquele destino, Chantal
também passa a ser mãe e começa a vestir azul, a cor que mais sua mãe usava, ao
invés de vermelho que era a sua cor desde a infância.
Não há menção à esposa de Philippe, não a vemos, não sabemos
quantos filhos teve com ela. Mas, é Chantal que propicia o diálogo mais
revelador sobre o lugar da maternidade e da cegueira do romantismo exagerado
quando faz uma série de proposições à sua mãe:
- Por que você não viu nada?
- Eu estava cega. Me arrependo. Mas, entendi depois.
- Você entendeu o que?
- Parei de acreditar
no nosso amor. Pensei que estava cansada de mim, que não me amava mais.
- Há uma lógica nisso tudo. Uma grande jornada de rejeição
social, psicológica, desejada, organizada, inclusive o que ele fez comigo.
- Não entendi direito.
- Vocês dois pertenciam a dois mundos diferentes,
completamente estranhos. Você era sozinha, pobre, judia, bonita, diferente das
outras. Isso é importante. É relevante. O intuito era fazer você perder. É a
história da rejeição social. Era preciso que continuassem separados
socialmente. Tudo piorou com o “pai desconhecido”. Você não aguentou isso.
- Eu não podia... eu achava injusto, falso.
- Mas, se eu tivesse o nome dele não haveria mais separação
entre seus mundos. E você meteu na cabeça... queria o nome dele na minha
certidão.
- Porque é a verdade.
- Então, passo a ser reconhecida como filha dele.
- Você é filha dele.
- Pois é. Mas, não era a regra do campo deles. O que ele
poderia fazer? Bom, ele encontrou algo a fazer. E ignorou a proibição
fundamental de pais terem relações sexuais com os filhos. Não era da conta
dele. Para ele, não. Como se não fosse meu pai e eu não fosse filha dele. Ele
estava acima disso, de você, de nós, das regras sociais
- Você acha?
- Sim, acredito nisso.
- Ele foi o
responsável por algo muito grave.
- O que ele fez a mim foi o que ele fez a você, antes de mais
nada. Para humilhar, o melhor é fazer passar vergonha. O que é mais vergonhoso
do que isso? Se tornar, mesmo quando achava que estava melhor, mãe de uma filha
cujo pai faz isso?
E Chantal finaliza:
- Demos a vota por cima. Nossa vida não acabou.
Chantal,
portanto, resume que ambas, mãe e filha, foram vítimas de rejeição social. Vincular o incesto à luta das classes é muito
interessante, além da leitura marxista, possibilita considerações sobre o poder
nas relações humanas e nas questões afetivas no trinômio pai-mãe-filha.
Nos dois enredos, as personagens, são vistas como heroínas.
Os homens são tratados como culpados e têm uma morte dura: Julien é assassinado
e Philippe morre vítima de Alzheimer.
Em ambas podemos questionar: deram mesmo a volta por cima? A
mensagem é otimista para as protagonistas: têm vida diante de si. “Enquanto há
vida há esperança”, clichê ou não, temos essa perspectiva de futuro nos filmes
analisados.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Amor
Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução Carlos Alberto
Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
BURKE, Kenneth. Teoria
da Forma Literária. São Paulo: Editora Cultriz.1953
ECO, Umberto. Confissões
de um jovem romancista. Tradução de Clóvis Marques. 1ª edição. Rio de
Janeiro: Record, 2018.
HELLINGER, Bert, TEN
HOVEL, Gabriele. Constelações familiares: o reconhecimento das ordens do
amor. Tradução: Eloisa Giancoli Tironi, Tsuyuko Jinno-Spelter. São Paulo:
Cultrix, 2007.
OLIVEIRA, Ligia
Ziggiotti. Olhares feministas sobre o direito das famílias contemporâneo:
perspectivas críticas sobre o individual e o relacional em família. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2016.
[1] Professora Universitária.
Advogada. Mestra em Direito Público pela UFBA. Ex-coordenadora de cursos de
graduação jurídica. Idealizadora do projeto “feminismos, artes e direitos das
humanas”. Autora de “Tribunal do Júri: arte, emoção e caos” e de “Águas de
mim”. Organizadora e uma das coordenadoras da coletânea “Direito e Cinema
Brasileiro”. E-mail: ezildamelo@gmail.com
[2] Nasceu na França em 1850. Na década de 1870, conviveu em
Paris com Gustave Flaubert, Émile Zola e com os grandes escritores realistas e
naturalistas da época. Notabilizou-se como autor de romances e de mais de 300
narrativas curtas, sendo considerado um mestre desse gênero. Morreu em um
manicômio, aos 42 anos, vitimado pela sífilis.
[3] É
um cineasta, produtor cinematográfico, roteirista e ator francês, nascido em
1966.
[4] Nascida em 1956, é uma roteirista, cineasta e atriz francesa.
[5] Nascida em 1959, é uma escritora
e romancista francesa.
[6] HELLINGER, Bert; TEN HOVEL, Gabriele. Constelações
familiares: o reconhecimento das ordens do amor. Tradução:
Eloisa Giancoli Tironi, Tsuyuko Jinno-Spelter. São Paulo: Cultrix, 2007.
[7] Maria Aparecida Penso; Liana Fortunato Costa; Tânia
Mara Campos de Almeida; Maria Alexina Ribeiro. Abuso sexual intrafamiliar na
perspectiva das relações conjugais e familiares. Aletheia, Canoas, n° 30, dez.
2009. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-03942009000200012.
Acesso em: 07 mai. 2020: A violência sexual incestuosa não ocorre de repente,
ao acaso. Não é espontânea ou imprevisível. Ao contrário, utiliza-se de enredos
e cenários gerados nos próprios processos de construção das subjetividades, nas
frestas familiares presentes e passadas. As condições e a lógica que a produzem
vão sendo tramadas e produzidas ardilosamente no interior dos sujeitos
inseridos nas famílias, muitas vezes de gerações em gerações. Assim, a prática
da violência sexual não é improvisada, não é um acidente. Ela se anuncia, vai
sendo tecida de diferentes maneiras, utilizando-se de códigos socioculturais,
sinais de ameaças, mensagens de insegurança, segredos, afetos e jogos psíquicos
que, instalados no seio familiar, começam a atuar orquestradamente ao menor
descuido.
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