quinta-feira

Da Divina Comédia de Dante ao Direito Processual: O Jogo Começou!

Da Divina Comédia de Dante ao Direito Processual: O Jogo Começou! – Por Andreu Sacramento Luz e Ezilda Melo

Por Andreu Sacramento Luz e Ezilda Melo – 17/03/2016
ldi02_012[1]
“POR MIM SE VAI À CIDADE DOLENTE,
POR MIM SE VAI À ETERNA DOR ,
POR MIM SE VAI À PERDIDA GENTE.
JUSTIÇA MOVEU O MEU ALTO CRIADOR,
QUE ME FEZ COM O DIVINO PODER,
O SABER SUPREMO E O PRIMEIRO AMOR.
ANTES DE MIM COISA ALGUMA FOI CRIADA
EXCETO COISAS ETERNAS, E ETERNA EU DURO.
DEIXAI TODA ESPERANÇA, VÓS QUE ENTRAIS!”
(Canto III, A porta do Inferno – Vestíbulo Rio Aqueronte – Caronte) 
Da Divina Comédia de Dante Alighieri à instrução hermenêutica, filosófica e procedimental do Direito Processual. Destaca-se, em sede inaugural, o retrato do poeta no período em que escreveu a obra, bem como a ação “revolucionária” por ele causada, que motivaram, dentre outras estruturas, o nascimento da literatura moderna, haja vista ter sido esta uma das primeiras obras escritas em idioma outro que não fosse o latim.
À época a publicação em livros era inexistente, entretanto as leituras de obras, em praças publicas e outros ambientes, tornou-se frequente. Destarte, posicionando-se em uma dessas leituras de obras, entretanto, fundados na hermenêutica jurídica e na filosofia, ir-se-á pautar à releitura do Direito Processual, sob o prisma da arte e da literatura.
O termo Comédia utilizado por Dante, nasceu numa ordem antípoda à Tragédia, que traz em sua essência um início “bom” e um final “ruim”. Por sua vez a Comédia, apresenta um início doloroso (ruim), passando, ao final de sua essência, ao “bom”. Ressalte-se que o cabeçalho original da obra foi apenas COMÉDIA sendo, em momento posterior à sua primeira edição nos anos de 1555, acrescido o adjetivo “Divina” ao título da obra.
Desde já se pode apresentar os primeiros nexos entre a Comédia de Dante e o Processo, como por exemplo: direito processual nasce, em seu contexto mais estrito, para regular as ações procedimentais dentro do exercício da jurisdição, objetivando o fim da controvérsia que levou os sujeitos da relação à quebra da inércia da Jurisdição Estatal. Neste mesmo sentido conduz o Direito Processual a uma relação conflituosa de interesses, qualificada por uma pretensão resistida (lide), que em sua origem é negativa (ruim), mas que, após um devido processo legal, chegar-se-á a uma verdade (boa) e uma completa solução de conflitos (ironia).
A verdade aqui deve ser relativizada, embora essa não seja a pretensão do Estado, haja vista que para essa ordem, a verdade alcançada pelo processo é a verdade real dos fatos. Entretanto, acrescido de relativização, perceber-se-á que a verdade alcançada no processo é uma verdade processual, que por sua vez não se confunde com a verdade real dos fatos.
O colhimento de provas, bem como todos os procedimentos necessários para o deslinde final numa dada relação processual, coloca os seus sujeitos em uma posição de conflito: de um lado o autor e do outro o réu, jogando em um amplo tabuleiro pelo tão sonhado prêmio (a cabeça decapitada do outro, como fora em João Batista, como forma de demonstração da vitória e soberania da verdade).
A Divina Comédia é uma obra no estilo medieval, principalmente no que diz respeito à sua estrutura, que segue o modo geométrico, estando dividida em trinta e três cantos (exceto o primeiro, este, o inferno, possui trinta e quatro cantos, objetivando um total perfeito de cem cantos), sendo eles divididos em tercetos, perfazendo também um nexo com a Santíssima Trindade. Por sua vez, a organização processual, que também possui a sua estrutura positivada e organizada, contém três efeitos tutelares: tutela de cognição, tutela de execução e tutela cautelar.
Destaca-se com muita relevância a figura angelical, humana e consciente do Anjo Caído, que em telas de Salvador Dalí[2] (pintada depois de pedido especial do governo da Itália) foi retratado com o corpo notadamente gravado por gavetas vazias, do qual pode-se arguir a insuficiência do discurso jurídico e elencar as possibilidades que são abertas pela arte.
Verifica-se que este corpo angelical, aberto às interpretações daquele que o observa, alarga o campo de abordagem politica, social ou jurídica, dos argumentos dogmáticos, bem como da busca incessante por direitos das instituições (módulos/núcleos) que surgem com o passar dos tempos.
O corpo aberto do anjo e da arte reflete a necessidade que tem o Direito de se relativizar quando contraposto às novas instituições. Um corpo liberto de qualquer mácula ou receio de pecado. Um corpo pregado na cruz como forma de protesto na cidade de São Paulo. Um corpo amante e amado, que faz do seu ofício a arte de viver. Um corpo que luta por direitos, como o dos travestis, gays, mulheres, negros, deficientes, bem como de todos os monstros, nos dizes de Antônio Negri, que compõe esta carne social.
Tratando-se então da caminhada Divina, vivida por Dante, cujo ponto inicial é o Inferno, relembra-se o ensinamento de Sartre, quando da sua filosofia de defasa ao existencialismo afirma: “o inferno são os outros”.
Dando início à caminhada, Dante depara-se com o Inferno (rota de fuga por Virgílio oferecida, haja vista que a pretendida pelo poeta estava obstaculizada pelos animais, que nos traços mais remotos nos oferece a ideia dos vetores de pacificação social) onde o caos, motivador da ordem social, ou pelo menos do início da desordem individual, indica o sentido do estreio da lide, que por sua vez representa (necessariamente) o veículo condutor para a prestação jurisdicional do Estado.
Em sua inércia, mesmo ciente do inferno existente, o Estado permanece passível de provocação, cujo objeto imediato será a prestação jurisdicional. A contraprestação do Estado só existirá na ocorrência das condutas tipificadas como ilícitas e enumeradas no rol dos anéis do inferno de Dante.
Neste ponto de vista realça-se a ordem subversiva da criação do Inferno, pois segundo o poeta, com respaldos bíblicos, Lúcifer, quando expulso do paraíso, arremata consigo uma densa proporção de terras, declinando assim em uma espécie de “funil”, cujo morro ostentava-se o purgatório, e a sua divisão se daria por meio dos círculos onde a gravidade dos pecados (crimes ou atos ilícitos) indicava a posição de cada um. Depois de passado pelo Inferno e Purgatório, chegando ao Jardim do Éden ocorre a despedida de Virgílio, por ser este pagão e não poder adentrar ao mundo das condenações.
Hoje, Virgílio encerra-se na vida daqueles que não podem chegar às barras do Judiciário, bem como daqueles que, mesmo tendo acesso à justiça (Princípio Constitucional do Acesso à Justiça), não a tem como uma ordem justa. Citam-se também aqueles esquecidos, além dos anéis do Estado. Fala-se daqueles marginalizados, excluídos, onde se reproduzem Estamiras, Macabéas e alguns outros personagens da realidade. Beatriz, a inspiração de Dante aparece para lhe conduzir nessa tenebrosa e prazerosa viagem.
Beatriz, a Defensora Pública, ou também particular, cujo objetivo é manter a defesa (mesmo que técnica em alguns casos), do então “sortudo” a caminhar nas esteiras da persecução criminal ou civil.
Caminha o poeta em direção ao purgatório, cuja formação geométrica também se dava em perfil afunilado, contendo agora sete partes (são sete os pecados capitais). Dividindo-se em alto e baixo purgatório, onde, necessariamente, os pecados menos graves (pecados leves ou veniais) são representados no alto purgatório (a exemplo da Orgulho e da Inveja), enquanto os pecados mais graves (pecados mortais) estariam representados no baixo purgatório (como os pecados da Gula e da Luxúria).
Destarte, pode-se por fim compreender que o purgatório é apresentado como um espaço de transição, onde há o Contraditório e Ampla Defesa (princípios norteadores do Direito Processual), individualizado no julgamento particular do sujeito.
Será, então, o momento de toda a instrução processual onde, havendo levantamentos de provas, constará dos autos as suas respectivas informações e, como nos apresentou Santo Agostinho, nas suas Confissões, será feito o levantamento dos ilícitos cometidos durante toda a vida (ousa-se a dizer que desde o nascimento até o momento da morte – o filtro do pecado lava a alma daqueles que ali estão prostrados).
Nessa ordem de transição o objetivo das partes, dentro da ação processual, é de ter o seu direito controvertido em um Processo de garantia, sendo este entendido como o que faz “valer” as indicações constitucionais processuais, bem como o que garante o efetivo cumprimento da ordem justa.
Como alertado acima, a presença de Virgílio limita-se até as sobras da porta do Paraíso Terrestre, tendo sido, a partir de então, conduzido o poeta pela sua “musa literária”, real ou ficcional, mas que lhe eleva à categoria de pureza e misericórdia pela ablução nas águas do rio Lete (representação, na visão dantesca, do rio Tigre e Eufrates, cuja lenda sustenta ser a interseção do paraíso).
No caminho ao Paraíso, será Dante conduzido pela bela e admirável Beatriz (a beatitude), símbolo de uma sociedade “menos misógina”, cuja coroa será concedida, ora por ter suportado o ônus do processo (ou da peregrinação), ora por ter vencido a parte que demandava no polo contrário.
Beatriz é a grande defensora, a mãe desolada e a criatura (amante a amada) que objetiva manter o Devido Processo Legal. Em termos aproximados pela literatura, o perfil de Ariano Suassuna, quando da escrita do Auto da Compadecida, oferece à similar personalidade (A Compadecida) a coroa de glória na busca de uma instrução lastreada na equidade (Princípio da Equidade no Direito Processual).
Cumpre destacar, que a presença de Beatriz se encerra antes da chegada a Deus, tendo em vista que a mesma precisava retornar ao seu lugar de origem (como beata), sendo seguida a viagem então por São Bernardo, que conduz Dante para a visão gloriosa: enxergar o seu Salvador.
A sentença, decisão que põe “fim” à lide, apresenta-se como final da jornada e início de uma vida mais tranquila, cuja harmonia e paz social foram restabelecidas, por intermédio daquele que não deveria fazer faltar, qual seja o Estado (isso sem falar da fase de execução da sentença, ou cumprimento de sentença como prefere os doutrinadores contemporâneos).
Veja-se que o Estado, interventor ou não, e responsável pela manutenção da paz social, após provocação das partes (denúncia, queixa crime, ação ordinária, etc.) mostra-se fiel interessado pelo processamento da lide, bem como pelo estado finalístico que a mesma visa apresentar.
Será então o processo um meio de pacificação social, quando rompido os padrões de normatividade social. Aduz informar que a posição do Estado é, como no jogo de Xadrez, de “xeque”, cuja presença Rainha, deve se encurvar o rei e toda a sua corte.
Como em um jogo de tábua, o Direito Processual está para quem mais sabe jogar. Seria Dante um grande jogador? Ou seria o sonho o maior vilão da história? Em Alice no País das Maravilhas[3], o real e o imaginário se confundem na perpetuação dos interesses da decisão final. Ou ainda seria “Os Sapatos” de Van Gogh o maior símbolo da luta no “octógono” do processo? Sem lutas, sem mãos, sem luvas, está-se a despir o corpo nu da Neguinha do poeta popular. Ou nas palavras de Hans Christian Andersen “O rei está nu”.
Como num processo jurídico que as partes têm esperança, assim anuncia Dante: “deixai toda esperança, ó vós que entrais”. (Inferno III, 7). Como num processo também, A Divina Comédia é uma maneira de ver o cosmo dantesco e reescrever os cantos da vida e da morte. A trilogia que articula o poema inteiro seja na razão – humano –fé; seja no presente – passado – futuro; seja na culpa –redenção- esperança; no inferno – purgatório – céu é o mesmo que articula as partes – a história resumida – a resposta do processo. Do inferno ao paraíso ou um passeio ao contrário do paraíso ao inferno, purgando os pecados no purgatório ou no tempo interminável da longa duração de um processo. Talvez Dalí e Dante receberam aquela luz que ainda hoje brilha em nós: “que, por bastante voltar-me à memória, e nestes versos um pouco soar, mais poderá  estender-se a tua vitória”. As conclusões do processo são de quem tem o poder para tal.

Notas e Referências:
[1] A escolha de “Um Diabo Lógico” para ser a representação da VIII Semana Jurídica da Faculdade Ruy Barbosa e para o presente ensaio deu-se por causa da Exposição “A Divina Comédia” de Dalí, inspirada no clássico homônimo do poeta italiano Dante Alighieri. Cem são os cantos que compõem o Poema Sagrado de Dante, e cem são as aquarelas ambientadas neles. A proposta visual da exposição respeitou a estrutura sequencial dos cem cantos do poema. A primeira sala é dedicada ao Inferno, com 34 imagens, nos dois outros espaços, o Purgatório (ver a construção do Purgatório na obra “Idade Média, idade dos homens”, de George Duby) e o Paraíso com 33 quadros cada. O método paranóico-crítico de Dalí ajuda a analisar a entrada de Dalí para a Commedia de Dante, e assim interpretar até que ponto o “delírio de interpretação” do artista passa a ser uma traição ou uma leitura real do texto, ainda que pessoal. “Um Diabo Lógico”, na divisão tripartite das cenas visuais, pertence à sala reservada ao inferno (“e já se encontra a lua sob nossos pés; pouco é o tempo que nos é concedido e há mais coisas pra ver que estas que vês” – Dante) faz menção a Judas Iscariote, “com as pernas fora e a cabeça abocada”. A lógica, a racionalidade, o corte epistemológico, representados pela cabeça rachada. Onde estará a lógica? Ela entra pelo cérebro e sai pela boca? A Obra é Aberta já diria Umberto Eco na obra do título melhor traduzido (Opera Aperta) e a tentativa foi a de possibilitar uma leitura transdisciplinar do Direito com a literatura, com a pintura, com as artes plásticas e trazer o debate para o que chamam de Lógica, seja ela jurídica, ou não, mesclando tudo isso ao processo brasileiro, que à cada dia e com as alterações novas mais parece um enredo de Kafka.
[2] DALÍ, Salvador. Grandes Mestres. Abril Coleções.
[3] DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Tradução: Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Pespectiva, 2011.
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução e notas de J. P. Xavier Pinheiro com prefácio de Raul de Polillo. W. M. Jackson, Rio de Janeiro, 1960.
BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e Intérpretes: Sobre Modernidade, Pós Modernidade e Intelectuais. Tradução de Renato Aguiar 1ª. Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
DALÍ, Salvador. A Divina Comédia. CAIXA Cultural Salvador 18 de dezembro de 2013 a 23 de fevereiro de 2014.
________________ . Grandes Mestres. São Paulo: Abril Coleções. 2013.
DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. Tradução: Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Pespectiva, 2011.
ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2012.
FOUCAULT, Michel. A ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
GAILLEMIN, Jean-Louis. Dalí El gran paranoico. Barcelona: Blume, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. Tradução de Antônio Carlos Braga. 3ª. ed. São Paulo: Editora Escala, 2009.
____________________. Além do bem e do mal. Trad. PauloCésar de Souza. São Paulo. Companhia das Letras.1998.

Fome de pessoas integrais

Fome de pessoas integrais – De Ezilda Melo, Karelayne Coelho e Wendel Machado


Por Ezilda Melo, Karelayne Coelho e Wendel Machado – 13/03/2016
“Bebida é água! Comida é pasto! Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte. A gente não quer só comida. A gente quer saída para qualquer parte. A gente não quer só comida. A gente quer bebida, diversão, balé. A gente não quer só comida. A gente quer a vida como a vida quer. Bebida é água! Comida é pasto! Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? A gente não quer só comer. A gente quer comer e quer fazer amor. A gente não quer só comer. A gente quer prazer pra aliviar a dor. A gente não quer só dinheiro. A gente quer dinheiro e felicidade. A gente não quer só dinheiro. A gente quer inteiro e não pela metade. Bebida é água! Comida é pasto! Você tem sede de quê? Você tem fome de quê?…”[1]
Tem-se fome de comida porque é naturalmente orgânico para qualquer ser humano. Comer é essencial para que se tenha força para desenvolver qualquer atividade, como também é imprescindível para continuar vivo. Pode-se comer desde a mais suculenta e cara refeição até os restos orgânicos despejados no lixão. Há quem coma somente vegetais e legumes, comidas orgânicas (que estão na moda e são caras); há quem coma também carnes, peixes, crustáceos, leguminosas, doces, enlatados, refrigerantes e toda a espécie de nociva à saúde existente no supermercado mais próximo. Seja qual alimento for estará classificado como proteína, carboidrato, gordura, vitamina e sais minerais. A CF, em seu artigo 6º, garante como um dos direitos sociais o direito à alimentação. Alimentar-se bem está totalmente interligado ao fato de se ter saúde, que também é um direito social previsto no mesmo artigo já mencionado.
Então, questiona-se: mas por que comer comidas orgânicas está na moda? E seria por isso que elas são mais caras? Primeiramente, analisa-se a atual conjuntura: o crescimento de ONGs em defesa dos animais e por um planeta mais sustentável nas últimas duas décadas, aliado às constantes (e cada vez mais conclusivas) pesquisas acerca dos alimentos produzidos em escala industrial e seus riscos à saúde fizeram amadurecer em nós a vontade de preservar o Planeta e cuidar da nossa alimentação. Isto, imediatamente, faz crescer o interesse por produtos orgânicos. Ocorre que, com pequena produção e todas as burocracias enfrentadas pelos produtores para legalizar seus produtos, automaticamente há a elevação no preço da alimentação orgânica, fazendo com que ainda seja um grande empecilho para que se alimente apenas dela ou que ela esteja presente na mesa de todos os brasileiros. Dito isto, vale salientar as recentes denúncias acerca da comercialização de falsos orgânicos, o que também colocou em descrédito os produtos que poderiam ainda estar sendo vendidos num preço melhor nas feiras livres, sem o selo de inspeção, mas que se garantiam serem orgânicos.
Apesar de todas as burocracias ainda enfrentadas pelos produtores de orgânicos para conseguirem o selo de inspeção de seus produtos no Brasil, o Governo Federal reconhece a importância de uma alimentação livre de agrotóxicos, pesticidas e antibióticos e que proteja o meio ambiente. Embora ainda não haja um grande esforço para tornar isto realidade, em 2014 o Governo Federal (através do Ministério da Saúde, da Secretaria de Atenção à Saúde e do Departamento de Atenção Básica) lançou o Guia Alimentar para a População Brasileira, com o intuito de conscientizar a população brasileira sobre os cuidados com a alimentação e de apresentar ao Brasil a sua “cultura gastronômica”, privilegiando alimentos nativos e encontrados em abundância em cada região do País. Na apresentação do Guia, uma afirmação muito importante:
“As principais doenças que atualmente acometem os brasileiros deixaram de ser agudas e passaram a ser crônicas. Apesar da intensa redução da desnutrição em crianças, as deficiências de micronutrientes e a desnutrição crônica ainda são prevalentes em grupos vulneráveis da população, como em indígenas, quilombolas e crianças e mulheres que vivem em áreas vulneráveis. Simultaneamente, o Brasil vem enfrentando aumento expressivo do sobrepeso e da obesidade em todas as faixas etárias, e as doenças crônicas são a principal causa de morte entre adultos. O excesso de peso acomete um em cada dois adultos e uma em cada três crianças brasileiras.” [2]
Ora, então significa que o Governo Federal conhece os problemas da má alimentação no Brasil? Conhece e reconhece suas deficiências, uma vez que há tantos projetos cheios de boas intenções, que no fundo só visam se aproveitar das verbas federais, como foi o caso o Manifesto lançado por um grupo de chefs brasileiros (“Eu como cultura”, lançado através do Instituto ATA), pelo reconhecimento da gastronomia nacional como cultura e pedia que ingredientes, receitas e pesquisas relacionadas à cultura gastronômica brasileira recebessem incentivos vindos da Lei Rouanet recentemente. Por sorte, o manifesto não obteve êxito e a Lei não foi modificada a favor de um projeto que tem amplas condições de mover-se por si só, a começar pela promoção, através dos próprios chefs, de eventos gastronômicos acessíveis que valorizem os ingredientes e as receitas das regiões brasileiras. Com o dinheiro arrecadado e campanhas populares para doações, o projeto teria perfeitas condições para adentrar as camadas mais humildes da sociedade, pois não se pode esperar que o Estado, nas condições em que se encontra, banque com todas as melhores intenções por aí.
Bem, depois de feita a digestão, consequentemente termina-se o caminho percorrido pelo alimento e o mesmo se transforma em lixo expelido naturalmente pelo corpo humano. Esse lixo vai para algum lugar, que geralmente são os esgotos públicos. Noutros casos mais graves, falta saneamento básico e esse lixo pode acarretar doenças.
Existe, portanto, um ciclo do alimento, que começa com a sua produção e termina com a sua expulsão do corpo. Quanto mais natural for o alimento, melhor absorvido será pelo corpo humano e fará bem à saúde. Quanto mais industrializado ou modificado artificialmente mais prejuízos acarreta ao ser humano.
Vive-se num país democrático onde se elege, de acordo com as opções que se tem para votar, em representantes políticos, estes por sua vez têm grande importância para a construção das leis, como também por sua execução. Um legislativo que aprova benesses para grandes indústrias de alimentos e não se preocupa com os venenos que chegam à população é o mesmo legislativo que não apresenta proposta de resolução dos esgotos a céu aberto; é o mesmo que não se importa se a comida que faz mal durante anos causará um câncer ou outra doença, porque não se interessa pelas pessoas agoniadas nas filas do SUS. Por isso, a fome que se tem é de pessoas integrais nos cargos públicos. Integral no aspecto mais amplo que se dá à expressão que hoje é famosa entre os adeptos de uma alimentação saudável. Um ser humano integral se preocupa com os problemas da sociedade.
O Estado, portanto, é consciente das necessidades da população, sobretudo neste caso em que não se alimentar bem pode gerar consequências terríveis para o próprio Estado. Então, por que o investimento na prevenção ainda é tão pouco se comparado ao que o poder público gasta com tratamento dessas mesas pessoas que ele já assumiu que se alimentam mal? Se os representantes políticos de fato fossem integrais, teríamos grandes e eficientes incentivos à melhor alimentação (refere-se, sobretudo, ao uso de agrotóxicos, à produção aceleradíssima de transgênicos e à pecuária desastrosa desse país, que desmata e gera milhares de gases poluentes – tudo está sendo produzido de maneira equivocada no Brasil ou – pior ainda – de maneira a beneficiar grandes empresas ou empresários). Como não se segue padrões que hoje já se sabe que dão certo (como é o caso dos incentivos aos pequenos produtores na França, como é o caso dos produtos de denominação de origem, que podem ser comercializados inclusive sob modelo exportação e trazem muitos lucros para o País – vejam o caso da falta de incentivo dos órgãos públicos ao queijo de cabra de uma certa Fazenda na PB, que poderia competir no mercado externo sem deixar nada a desejar com os bons queijos franceses). Aqui, prefere-se gastar fortunas com a saúde pública, prefere-se pensar que está-se de fato investindo corretamente quando não se opta pelo incentivo ao agricultor, mas pelo remédio contra o câncer causado por uso de agrotóxicos e que, muitas vezes, não estão disponíveis nos hospitais, devido à quantidade absurda com que são a cada dia mais requisitados.  Será que não sairia muito mais barato negociar com pequenos produtores de orgânicos, incentivando a agricultura de subsistência e dando aparato financeiro para famílias que vivem com tão pouco (eis um programa social que traria retorno: o incentivo à produção agrícola orgânica) a estar-se sempre fechando acordos com grandes representantes farmacêuticos para tratar males muitas vezes intratáveis e nos tornando reféns de nossa teimosia?
Não se aguenta viver mais de pão e circo, essa política já não surte efeitos há séculos. Nem só de pão e vinho também. Diz o adágio que o tempero para a comida é fome e que quando se está com ela se come até pedra. Não é à toa, que no século dos corpos talhados pelas academias, vive-se de dietas restritas com uso muito prolongado de suplementos vitamínicos para ganho de massa muscular. Tem-se fome de pessoas integrais que invistam em educação. Está-se sobrando calorias nas contas de quem tira da população em benefício próprio. Por isso, não se espante em saber que há pessoas que morrem pela boca ou de fome.
Uma poesia que integra esse ensaio:
Fome Integral
Por Wendel Machado
Sobre a mesa,
Campesinas refeições,
Pequenas colheres:
Feijão e farinha,
Grande fome,
Falta o pão
Sobram valores
princípios.
Sobre a mesa,
A pena e a lei,
Fartas porções
Legisladores e intérpretes
Célebres banquetes:
Nos pratos carnes, queijos,
Grana, fama.
Na vida:
fome integral,
falta integral,
carência integral!
No sonho:
Pessoas íntegras,
Viver integral!

Notas e Referências:
[1] ANTUNES, Arnaldo; FROMER, Marcelo; BRITO, Sérgio. Comida.
[2] Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Guia alimentar para a população brasileira / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à saúde, Departamento de Atenção Básica. – 2. ed. – Brasília: Ministério da Saúde, 2014.

Legisladores e intérpretes: quebra de paradigma na interpretação jurídica brasileira? – Um diálogo com Bauman, Nietzsche e Umberto Eco a partir do exemplo da união estável

Legisladores e intérpretes: quebra de paradigma na interpretação jurídica brasileira? – Um diálogo com Bauman, Nietzsche e Umberto Eco a partir do exemplo da união estável – De Andreu Sacramento Luz e Ezilda Melo


Por Andreu Sacramento Luz e Ezilda Melo – 10/03/2016
“A tendência a empregar o teatro como uma instituição para a formação moral do povo, que no tempo de Schiller foi tomada a sério, já é contada entre as incríveis antiguidades de uma cultura superada. Enquanto a crítica chegava ao domínio no teatro e no concerto, o jornalista na escola, a imprensa na sociedade, a arte degenerava a ponto de se tornar um objeto de entretenimento da mais baixa espécie, e a crítica estética era utilizada como meio de aglutinação de uma sociabilidade vaidosa, dissipadora, egoísta e, ademais, miseravelmente despida de originalidade.”
(Friedrich Nietzsche: O nascimento da tragédia, op. cit., pp. 135-136)
A Era Moderna definiu-se como reino da razão e da racionalidade. A referida afirmação encontra seu fundamento no processo de luta travado entre a razão e as convicções advindas de um período influenciado pela moralidade cristã e arraigado numa cultura de pensamentos dogmatizados. O Iluminismo ou “Século das Luzes”, como fora conhecido, trouxe como objetivo a busca e a ascensão da razão, asseverando a superioridade da mesma frente às convicções religiosas, superstições, dentre outros paradigmas do período medieval. Para Bauman “essa foi a primeira e a mais básica das conceituações a fornecer para a modernidade sua autodefinição” (BAUMAN.2010.p.157).
Foi considerada também a mais favorável época para aqueles que elaboravam os conceitos, posicionando-se assim em um patamar superior, de onde nasciam as correntes positivistas e dogmáticas da “verdade”, e apontavam os caminhos a se percorrer em busca da mudança.
Interessante mostrou-se a repercussão acadêmica, política ou jurídica, enfim, institucionalizada da verdade. Nessas transversais do mundo, as flexibilizações das instituições fizeram-se repensar por inúmeras vezes as definições da verdade.
Em uma análise epistemológica do termo “verdade”, cujas origens remontam-se na construção da vernácula latina, encontrar-se-á na mitologia cristã a condenação do verídico. Destarte, os eventuais ciclos que foram elaborados no mundo, dentro de um contexto de verdades absolutas, ou, como prefere a ciência jurídica, verdade real dos fatos, mostra-se justificado na construção complexa da busca pela verdade.
Afinal, alerte-se a título de complementação, que a verdade está na busca dos seus interesses. Quando em As Dores do Mundo, Arthur Sochepenauer, elenca que a natureza primordial do homem encontra-se assentada nas relações egoístas que lhe permeia (em natural), consegue-se compreender com clareza e sem dificuldades que nos dias de hoje, bem como nos tempos mais remotos, a pura e real relativização da verdade.
Tem-se, portanto a criação das conceituações e a caracterização da modernidade. Cumpre salientar, que próximo ao final do século XIX a ascensão dos conceitos de Razão Absoluta, ainda apresentava-se com muita confusão dentro a elite intelectual. Em particular, havia uma busca da materialização da Razão Absoluta, que por sua vez instaurava-se com certa reserva e lentidão. A Razão era o veículo de dominação dos conceituadores e, agora frente a esta confusão tinha-se tal domínio como uma ferramenta distante.
Por sua vez, A Queda do Legislador, é provocada por um mecanismo que auto se destrói, o que é comum da modernidade. Frente ao processo alongado da afirmação absoluta, “a conceituação adquirira um matiz dramático” (BAUMAN. 2010 p. 159), causando o entusiasmo negativista dos intelectuais, instaurando-se uma crise e apresentando dificuldades aos intelectuais de prostrarem-se frente a uma conduta que anteriormente era tida como tradicional, o papel de conceituar.
Crise na conceituação, crise do intelectual que dita e afirma os conceitos e verdades. Dar-se assim vazão a chegada do intelectual como intérprete e não mais como legislador.
Dentro de uma concepção teológica, como a tida no período medieval, o dogmatismo da igreja buscava afirmar a verdade absoluta e inquestionável sobe determinado fato, como por exemplo, a unidade de Deus. Esse mesmo dogma declina no momento que se tem a possibilidade dos intelectuais pensarem e debaterem a respeito da possibilidade, neste caso em concreto, da existência de outros deuses e formar um panteão politeísta.
Frente a posicionamentos como estes, há afirmativas de que o Estado está perdendo o seu poder, logo é necessário afirmar e definir fundamentos imutáveis para que a situação não chegue a um patamar crítico e irreversível, de forma que Bauman, em “Legisladores e Intérpretes”, nos apresenta a seguinte afirmativa:
A questão é que o Estado não está necessariamente mais fraco por causa desta falência de autoridade; ele simplesmente achou modos melhores, mais eficientes de reproduzir e impor seu poder; a autoridade tornou-se redundante, e a categoria especializada em manter a reprodução da autoridade tornou-se supérflua (BAUMAN. 2010. p. 171)
Deste modo não condiz com as vias racionais de organização política, administrativa, legislativa e judiciária, afirmar que o Estado está passando por um procedimento de “falência de autoridade”, haja vista que o pleito corrente é a busca por alargado crescimento da hermenêutica jurídica, social e legislativa, não sendo, dessa forma e moldes, um corte a autoridade estatal.
O império da Lei, ou melhor, do Princípio da Legalidade, teve a sua queda com a ascensão do Estado Democrático de Direito. Nesse diapasão o material legislativo passou a ser relativizado, nos viabilizando, no auge da pós modernidade que beira a sociedade contemporânea, a declaração da falência legal (e não de autonomia), para a superação da interpretação do vasto campo material, que encontra-se positivado no ornamento jurídico pátrio.
Encerrando a dialética da expectativa de novas interpretações, seja na seara legislativa ou constitucional, Bauman (2010. P. 170) nos salienta da seguinte forma: “O mundo contemporâneo é impróprio para os intelectuais como legisladores”.
Desta afirmativa, consegue-se extrair o entendimento de que há uma abertura de caminhos para a ascensão de novas representações, que vem a ser a possibilidade de aplicação de novas técnicas.
Verifica-se que na construção do pensamento moderno, valorizava-se as pessoas que conceituavam, isto é, a elite dominadora preocupava-se exclusivamente em ditar o conceito do que era correto ou não. Com a falência da conceituação (por se ter uma implantação da Razão absoluta de forma retardada), abriu-se espaço para a crescente presença do intérprete, ou seja, o intelectual agora não é mais o que dita (legislador) e sim o que interpreta.
A hermenêutica toma um novo rumo e na Ciência do Direito abre-se uma nova possibilidade, o considerado “intelectual” que antes se dedicava exclusivamente em escrever ou advogar em sentido legis, é deposto do seu “cargo”, por ver crescer os métodos de interpretação utilizados na busca de uma atualização mais célere do que foi legislado. Nada mais que acompanhar, a passos paralelos, as exigências legais da sociedade que vive na era da subjetividade.
Por meio da interpretação que se dar sentido a criação. Eco em “Obra Aberta”, afirma o sentido que se deve denotar na apreciação da obra. A interpretação, pessoal, coletiva, está fundada nas influências da cultura, religião, família dentre outras instituições. Em outra obra intitulada de Limites da Interpretação, Eco nos salienta que os interesses continuam relacionados à abertura da interpretação embora o foco seja diferente:
Trinta anos atrás (…) eu me preocupava em definir uma espécie de oscilação ou de equilíbrio instável entre iniciativa do interprete e fidelidade à obra. No correr desses trinta anos, a balança pendeu excessivamente para o lado da iniciativa do intérprete. O problema agora não é fazê-la pender para o lado oposto e, sim, sublinhar uma vez mais a ineliminabilidade da oscilação. (ECO, 2004, p. XXII)
Logo, quando se fala em Hermenêutica Jurídica, deve-se perceber que o seu principal objetivo é entender o direito. Nessa perspectiva, tem-se como foco objetivo da Hermenêutica Jurídica o entendimento do Direito e como foco subjetivo o sujeito que interpreta o Direito. Por exemplo, ao se estudar as fontes[1] formais indiretas (ou mediatas) do direito, sejam elas a doutrina e a jurisprudência, entende-se como métodos distintos de interpretações de uma elite intelectual do Direito, neste caso estarão presentes o foco objetivo (estará interpretando o Direito) e subjetivo (quem o interpreta são estudiosos do Direito) da Hermenêutica Jurídica.
Destarte, uma parcela de intérpretes do Direito tem com objeto de interpretação recortes da realidade. Apresenta-se aqui a figura do magistrado, que como representante do Estado Juiz deve dar provimento jurisdicional por meio da sentença[2], no processo de conhecimento, para que haja resolvido uma lide (conflito de interesse).
A Sentença redigida pelo magistrado deve seguir os requisitos essenciais definidos pelo artigo 458 do Código de Processo Civil, quais sejam: O relatório; os fundamentos de fato e de direito (motivação); o dispositivo (conclusão). Dentro da exposição de fato e de direito, que o juiz irá interpretar o Direito e apresentar para as parte o seu entendimento frente ao litígio. O Estado-Juiz irá interpretar o direito objetivo, e aplicar as consequências que da analise ensejar frente ao direito material arguido no processo, que fora instaurado por meio do direito subjetivo público de ação.
Destarte, amparado por todas as contribuições elencadas nos parágrafos anteriores, bem como se acostando à metodologia do amor e nos pensamentos desenvolvidos por Nietzsche, é-se possível fazer-se uma análise da situação ocorrida no Judiciário brasileiro no ano de 2011, causando uma revolução no direito constitucional e civil pátrio, em que fez destacar-se a importância da Hermenêutica Jurídica e os métodos interpretativos do direito brasileiro para abonar prerrogativas constitucionais garantidas aos cidadãos.
Utilizando-se de uma prerrogativa a ele concedida, o Procurador Geral da República encaminhou para o Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade[3] (ADI) nº4277 em conjunto com a ADPF nº132, buscando que fosse feito um julgamento, observando o recorte da realidade social atual, do artigo 1.723 do Código Civil e artigo 226 § 3º da Constituição Federal que tratam da composição da união estável.
Com a promulgação do Código de 2002 sedimentou-se o avanço por todos esperado, tanto da doutrina quanto da jurisprudência, que foi consideração codificada da União Estável. Esperando que o cenário jurídico brasileiro fosse ficar neutro e pacificado, começaram a surgir questionamentos da sociedade quanto à nomenclatura utilizada pelo Código Civil, que segue um entendimento constitucional (artigo 226), ao afirmar que é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento.
Frente ao exposto questiona-se: Como se aplica a lei aos casos de união entre pessoas do mesmo sexo, uma vez que tanto a Constituição, quanto o Código Civil vem definindo que apenas homes e mulheres constituem-se sujeitos para a formação de família?
A esta resposta Cunha Jr. afirma que:
“A constituição não recusou reconhecimento à união estável formada entre pessoas do mesmo sexo, a chamada relação homoafetiva, que, a nosso sentir, tem amparo constitucional manifesto, em face, basicamente, do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da liberdade de opção sexual (art. 3º, IV).”
Por sua vez, os positivistas e legalistas, apresentam o entendimento de que:
A interpretação científica é pura determinação cognoscitiva do sentido das normas jurídicas. Diferentemente da interpretação feita pelos órgãos jurídicos, ela não é criação jurídica. A ideia de que é possível, através de uma interpretação simplesmente cognoscitiva, obter Direito novo, é o fundamento da chamada jurisprudência dos conceitos, que é repudiada pela Teoria Pura do Direito. A interpretação simplesmente cognoscitiva da ciência jurídica também é, portanto, incapaz de colmatar as pretensas lacunas do Direito, O preenchimento da chamada lacuna do Direito é uma função criadora de Direito que somente pode ser realizada por um órgão aplicador do mesmo e esta função não é realizada pela via da interpretação do Direito vigente. (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p.250).
Como foi exposto em tela, a visão positivista de Kelsen não permite que haja uma legitimidade de interpretação do direito pelos órgãos do Judiciário. Ao seguir este conceito, devem-se fixar os olhares ao pensamento legislativo engessado no código, não possibilitando nenhuma interpretação que vise criar um “direito novo”, ou sanar uma lesão ao direito do outro (também cidadão).
Frente ao avanço da Hermenêutica Jurídica este pensamento perde total eficácia, pois a ideia da interpretação preenche a lacuna deixada pelo Legislativo, ficando mais fácil que o Judiciário adeque o Direito à realidade social, como foi empregada no julgamento do STF cuja pauta foi à união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Além de adequar o Direito à realidade social, o STF ao julgar pelas vias interpretativas o assunto em tela, assegura a toda sociedade os direitos e garantias reservados pela Constituição, quais sejam a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a liberdade, e a igualdade. Princípios constitucionais que eram violados, quando o Estado-Juiz tinha que aplicar o direito tipificado no código.
Tomando como referência os ensinamentos de Bauman, perceptível se torna a conclusão que aponta para o efeito não positivo do engessamento do Direito. Em busca da pacificação dos conflitos sociais e garantia de todos os direitos dos cidadãos brasileiros, o Direito volve os seus olhares para o recorte social e busca interpreta-los para melhor se aplicar.
Verificando que não havia harmonia entre a realidade social na constituição da união estável, o Supremo Tribunal Federal interpreta a norma tipificada, causando uma revolução no Direito pátrio, e afirma que como entidade familiar entende-se também os casais homoafetivos.
Legisladores não acatam a legitimidade dos intérpretes do Direito. Afirmam que o discurso deve ficar estático, surtindo efeitos específicos, até que haja um processo legislativo, por meio de votos que até a década passada não eram revelados para a sociedade, e que busque revogar o contesto anterior e trajar, com nova roupagem, o direito atual. Traje formal e indiscutível, refletindo uma posição privilegiada e elitista. Felizmente a Hermenêutica Jurídica prega a interpretação correta e coerente do Direito, tendo-se a queda do legislador que impõe e a ascensão do jurista interpreta. Parafraseando o título do livro de Umberto Eco, a “Obra é Aberta”; neste sentindo entende-se como obra a legislação e como correta a interpretação dada pelo STF em analisar que família é um conceito muito mais amplo do que a entidade formada por pai, mãe e filho.

Notas e Referências:
[1]Cumpre salientar que para Kelsen, a norma fundamental (a constituição) é a fonte primordial do direito, segundo a qual emana todo o ordenamento jurídico e o mesmo deve respeito.
[2] “É emitida como prestação do Estado, em virtude da obrigação assumida na relação jurídico-processual (processo), quando a parte ou as partes vierem a juízo, isto é, exercem a pretensão à tutela jurídica”. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974, v.V, p395.
[3]Lecionando sobre Ação Direta de Inconstitucionalidade, Dirley da Cunha Jr. nos ensina que “cuida-se de uma de uma ação de controle concentrado-principal de constitucionalidade concebida para a defesa genérica de todas as normas constitucionais, sempre que violadas por alguma lei ou ato normativo do poder público. Por isso mesmo é também conhecida como ação genérica.” (JÚNIOR, Dirley da Cunha. 2012. p. 358).
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2. d. revista e ampliada. São Paulo: Celso Ribeiro Bastos Editor, 1999.
BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e Interpretes: Sobre Modernidade, Pós Modernidade e Intelectuais. Tradução de Renato Aguiar 1ª. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
BARROSO, LUIS ROBERTO. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 3. São Paulo: Saraiva,2001.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Ética Jurídica: Ética Geral e Profissional. 10ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. Rio Grande do Sul: Sergio Antonio Fabris, 1997.
ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2012.
FOUCAULT, Michel. A ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. De Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Mourão. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1994
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 6a edição, 5ª tiragem, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia da moral. Tradução de Antônio Carlos Braga. 3ª. ed. São Paulo: Editora Escala, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Trad. PauloCésar de Souza. São Paulo. Companhia das Letras.1998.
SCHOPENHAUER, Arthur. Dores do Mundo. Rio de Janeiro: EDIPRO, 2013.
VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Tradução de Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.

Direito Fundamental à Água? Quando o Brasil vivencia “Vidas Secas” e a água não brota das leis

Direito Fundamental à Água?  Quando o Brasil vivencia “Vidas Secas” e a água não brota das leis – De Ezilda Melo e Wendel Machado



Saiu no site da Empório do Direito:

Ezilda Melo e Wendel Machado – 04/03/2016
“Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas”.
Graciliano Ramos
Não é novidade para qualquer cidadão atento, quanto mais para os militantes do Direito, que de um modo muito amplo a Constituição Federal de Brasil de 1988 traz imediatamente em seu artigo primeiro, como princípio fundamental do Estado: “a dignidade da pessoa humana”. Deste mandamento decorre toda uma ramificação de direitos e garantias que perpassam o texto constitucional e irradiam para moldar um complexo jurídico capaz de possibilitar o cumprimento do conteúdo axiológico aí expresso.  Assim, encontram estabelecidas as diversas gerações (ou dimensões) de Direitos Fundamentais que são caracterizados, nos dizeres de Karl Loewenstein, como “[…] princípios superiores à ordem jurídica positiva…”. Nesta perspectiva, os direitos fundamentais são plenamente afetos à própria existência humana, guardando estrita relação de essência com Direitos Humanos que, como afirma Dirley Cunha Jr., pretendem conferir “a todos, universalmente, o poder de existência digna, livre e igual”.
No contexto das Ciências Naturais a proposição de água como bem indispensável à manutenção da vida humana é indiscutível. É inteiramente perceptível, até mesmo pelo senso comum, que sua escassez inviabiliza a existência de vida saudável. Por uma aplicação de silogismo simples, pode-se concluir facilmente que essa relevância implica em essencialidade à condição humana e que, certamente, é um bem que se encontra nesta categoria de direitos essenciais firmados na dignidade do homem.
“(…) Tinham deixado os caminhos cheios de espinho e seixos, fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e rachada que escaldava os pés”.
Ainda que se possa chegar a tal conclusão com tamanha celeridade, beirando a obviedade, o reconhecimento dessa premissa é envolta em incertezas e controvérsias que se perpetuaram por muitos anos sem chegar a um consenso pacífico, pois, seja no campo internacional ou interno, não há a clara e inequívoca definição da água como direito essencial. Mesmo não havendo menção expressa, aplicando o conceito de Loewenstein, este direito fundamental existe e goza de tanta força vinculativa quanto qualquer outro da mesma categoria. Entretanto, o que aqui se debate não é a letra da Constituição, mas a defesa desse direito frente às ações e políticas públicas.
Hodiernamente, o tema voltou a ganhar relevância pela crise hídrica que incide sobre as várias regiões do Brasil que convive com a estiagem duradoura, a mesma velha conhecida do semiárido nordestino desde tempos longínquos. Já nos idos do Império se debatia a questão de distribuição de águas do Rio São Francisco, sem que isso também fosse muito além dos debates e de obras não conclusas. A grande diferença, desta vez, é que há estiagem onde antes havia abundância: de água e, principalmente, de poder econômico. O problema então se generaliza: todo o país vivencia “Vidas Secas”.
Não por coincidência, “Vidas Secas” é a opus magna de Graciliano Ramos, publicada originalmente em 1938. O romance que é centrado na experiência da seca pela família de Fabiano, segue o itinerário da desconstrução dos carácteres de humanidade das personagens frente a um sertão com aridez de solo e de vida. A falta de água é a própria ausência de vitalidade, de seres que se arrastam pelas planícies, em que as crianças são destituídas do primeiro elemento identitário: o nome. Como se houvesse uma forma de coisificação semovente as crianças não são nomeadas. A vida desta família então se desprende do senso de humanidade e muito mais do valor da dignidade. Os caminhos percorridos são “terra sem lei”, onde a única manifestação estatal é a autoridade policial arbitrária. São seres. Existem apenas para suas vidas. Estão absortos de um arcabouço social que lhes permita amparo. Há Direito, mas não há direitos. Mesmo o mínimo existencial é subvertido. São homens porque há Direito, mas sua fala é reproduzida através de grunhidos, pois não há direito a voz. Apenas existem. A água do sertão existe, mas também há a cerca, a propriedade, o limite do poder estabelecido. Há poder e controle porque há Direito. Direito sempre há, mas não há defesa do Direito, nem dos direitos. Ainda aí afora encontramos Fabianos, Sinhas Vitórias, Baleias, e, principalmente meninos sem nome, em todos os lugares e partes. A realidade narrada no livro nunca atribuiu topônimo: é universal, pode ser qualquer lugar, qualquer instante. Não é como um código legislativo que perece; é a-temporal como as obras-primas são. A arte é eterna, já o direito legislado é momentâneo, datado, tem prazo de validade. 
“(…) Eles estavam perguntadores, insuportáveis. Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha…”
A intertextualidade nos permite observar que mesmo que a gênese de tal colapso tenha explicações geográficas e climáticas, a aridez escancara a infertilidade jurídica para a defesa de virtudes primárias, enquanto se embriaga na mera proliferação de textos legais. A falta do Direito para além da letra da lei não garante acesso à água por parte da população. Não basta que haja o elemento natural em si; há um caráter adjetivo a ser lembrado: água digna, ou seja, de boa qualidade, potável, própria para o consumo humano em sentido plural. Aqui se vê que, mesmo com previsão de instrumentos para defesa dos direitos difusos e coletivos, há de se questionar a efetividade de sua proteção e que aqueles que deveriam oferecer proteção, são apenas perpetuadores da situação estabelecida.
Não se pode furtar, também, à percepção de que, como um bem sujeito a escassez, há um valor econômico intrínseco e, por isso, está submeto aos ditames da propriedade e do mercado. Assumir tal acepção aduz à necessidade de formular uma gestão racional que vise à eficiência, especialmente no que diz respeito à atuação da Administração Pública em relação à gestão das águas sob sua competência, afinal eficiência é um dos princípios insculpidos no art. 37 da Carta Magna. Não é ilógico pensar, então, que há o estrito compromisso do gestor com os recursos hídricos, do mesmo modo como outros bens por si geridos, não apenas porque também constitui bem público, mas porque é essencial à vida. Poderia, sem risco de equívoco, mesmo dizer que há uma função social da água.
A função social da água é o entendimento de que esta não pode ser aplicada sem que se tenha em consciência que é um bem de interesse público e, seu uso indiscriminado e sem parâmetros, constitui violação à própria sociedade como organismo global. Sua função social é revestida da universalização do seu acesso, mas ainda negação à gestão irresponsável para que não seja admitido que ‘cerca’ – a manifestação do poder dos detentores dos recursos – não provoque a seca.
“(…) Um dia… Sim, quando as secas desaparecessem e tudo andasse direito… Seria que as secas iriam desaparecer e tudo andaria certo? Não sabia…”
Provimento jurídico algum parece ser capaz de gerar a distribuição hídrica em equilíbrio, isso porque o dever ser está aquém das necessidades da materialidade ontológica; a deontologia não se basta em si. Contudo, o dever ser é capaz de mudar a realidade do ser, isso porque as condutas condicionadas pelas normas são executadas na realidade sensível. Assim, a questão da seca, é também questão jurídica, porque as normas jurídicas deveriam ser capazes de promover e vincular a adoção de posturas determinantes para a promoção da dignidade da pessoa humana. Em primeiro momento, há a vinculação da atuação Estatal, já que os Direitos Fundamentais não são meramente programáticos, são, sobretudo, obrigatórios em ações e política públicas que os tragam ao campo da vivência material de maneira efetiva. Depois, porque também é interesse público, ou seja, é a própria sociedade que consagra a dignidade humana e a ela mesma cabe sua promoção, e nisso inclui a defesa da água como parte do meio ambiente, mas também como um direito social, assim como a saúde, o trabalho.
Debater crise hídrica sob essa perspectiva é perceber que se deve regar o próprio Direito para que enxergar além das fronteiras das leis; apreender que os Direitos Fundamentais permanecem porque guardam estrita relação com a existência humana e que são basilares porque reconhecemos como o mínimo para a manutenção daquilo que é humano em nós. Debater a água no direito é ter a noção de que “Vidas Secas” é logo aqui e também, ainda que não somente, problema jurídico, pois se envolve poder e controle, é jurídico também.
A falta de água no Nordeste[1] e em outras regiões insere-se perfeitamente numa questão político-jurídica. Politicamente, o discurso do combate à seca ainda elege muitos dos representantes populares e, juridicamente, a Constituição Federal além de garantir esse direito fundamental, deveria ter criado meio assecuratório de concretização. O Brasil tem grandes mananciais aquíferos. As pessoas têm o direito de permanecer nas regiões que se identificam cultural e socialmente. Portanto, a grande batalha que se deve travar é fazer com o direito à água seja de todos. Efetivamente, de todos. Juridicamente, portanto, a Constituição Federal garante o direito à água como um direito fundamental, que deve ser efetivado[2]. Mas, na prática o estio permanece secando corações e entristecendo o país.
Uma poesia para o tema que pode ser trabalhada em sala de aula:
Ser tão vida seca[3] 
Suor, calor,
Cansaço, fome,
Terra árida onde cresce o atraso e o desamor. 
Terra Seca,
Seca Terra,
Vidas Secas,
Secas Vidas.
Vidas secas, como a terra seca
Que seca as vidas. 
No pingo do meio-dia,
Com o sol escaldante,
A quentura nos consume,
Dentro de um forno ardente e quente,
Capaz de secar nossa última semente. 
Terra Seca,
Seca Terra,
Vidas Secas,
Secas Vidas.
Secas de uma vida
Que secou pelas secas da vida. 
Terra seca que dá risada,
Alegra-se nos pingos que caem da chuva.
E o agricultor fica feliz vendo sua terra molhada,
Sabendo que não vai morrer sua vaca malhada. 
Terra Seca,
Seca Terra,
Vidas Secas,
Secas Vidas.
Terra Seca que floresce
no orvalho da madrugada.
Outro artigo relacionado com a temática:

Notas e Referências:
[1] ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes; prefácio de Margareth Rago. 5ª edição – São Paulo: Cortez, p.343: “O Nordeste, assim como o Brasil, não são recortes naturais, políticos ou econômicos apenas, mas, principalmente, construções imagético-discursivas, constelações de sentido. (…) O Nordeste, na verdade, está em toda parte desta região, do país, e em lugar nenhum, porque ele é uma cristalização de estereótipos que são subjetivados como característicos do ser nordestino e do Nordeste. Estereótipos que são operativos, positivos, que instituem uma verdade que se impõem de tal forma, que oblitera a multiplicidade das imagens e das falas regionais, em nome de um feixe limitado de imagens e falas-clichês, que são repetidas ad nausem, seja pelos meios de comunicação, pelas artes, seja pelos próprios habitantes de outras áreas do país e da própria região”.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. Ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012.
[3] Poesia de Ezilda Melo.